Racismo
ambiental: 60% dos estudantes de escolas que ficam em áreas de risco são negros
Para quase meio milhão de
crianças e adolescentes, estar na escola pode significar uma ameaça à vida.
Mais de 431 mil estudantes da educação infantil, do ensino fundamental e do
ensino médio frequentam escolas nas capitais do país que ficam em áreas de
risco para deslizamentos de terra, inundações e enxurradas.
A cor da pele de quem estuda
nesses locais vulneráveis a eventos extremos aponta para o racismo ambiental
existente na educação. Enquanto os estudantes que se declaram pretos ou
pardos são 42,52% dos 8 milhões total de matriculados nas capitais; nas escolas
em áreas de risco, essa proporção é muito maior: 59,58%. São 257 mil estudantes
pretos ou pardos vulneráveis aos riscos climáticos.
Os dados foram tabulados
pela Agência
Pública a partir da recém-lançada pesquisa O acesso ao verde e a resiliência climática nas escolas das capitais
brasileiras, feita pelo Instituto Alana, pela Fiquem Sabendo e
pelo MapBiomas.
O levantamento identificou
1.383 escolas em áreas de risco para inundações, enxurradas ou deslizamentos de
terra, ou uma a cada 15 escolas das capitais. 89,58% delas ficam dentro de
favelas ou a no máximo 500 metros de distância de uma.
A maior parte dessas escolas
são negras, ou seja, a quantidade de estudantes que se declaram pretos e pardos
é superior a 60% do total de matriculados. São 709 escolas em áreas de
risco com maioria de alunos negros, ou 51,2% do total.
“Muitas pessoas refutam o
conceito de racismo ambiental e dizem que não existem dados, que não é bem
assim. Esse estudo mostra que a cor do risco é negra. O racismo ambiental
é uma realidade que também está presente na infraestrutura escolar e afeta
diretamente as crianças e os adolescentes”, afirma Maria Isabel Barros,
especialista em natureza e crianças do Instituto Alana e uma das coordenadoras
da pesquisa.
O estudo cruzou dados do
Censo Escolar 2023 de mais de 20 mil escolas públicas e particulares das 27
capitais com a Base Territorial Estatística de Áreas de Risco (Bater),
produzida em 2018 pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres
Naturais (Cemaden) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE).
Salvador (BA) é a capital
com maior proporção de escolas inseridas em áreas de risco: são 470 de 935
instituições, metade do total. Em Vitória (ES), uma a cada quatro escolas está
nessa condição, situação similar à de Recife (PE), com 23,4%. Belo Horizonte
(MG) e Natal (RN) completam as cinco primeiras posições, com 14,1% e 13,4% das
escolas em áreas de risco, respectivamente.
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Proporção
de escolas negras em áreas de risco é maior do que em toda a cidade
Para analisar a dimensão do
racismo ambiental nas escolas das capitais, a Pública acessou os microdados da pesquisa e comparou a proporção de escolas
negras em áreas de risco com a quantidade de instituições com esse perfil
racial em toda a cidade. Assim, foi possível observar o quanto a prevalência de
escolas negras em áreas de risco destoa do resto do município.
Ao todo, 14 de 18 capitais
têm proporcionalmente mais escolas negras em áreas de risco do que na cidade
inteira. Nove cidades não foram contabilizadas, seja porque não possuem
escolas em áreas de risco, não possuem escolas com maioria de alunos negros, ou
não possuem escolas negras em áreas de risco.
“As escolas reproduzem as
desigualdades que já estão postas em relação à incidência de áreas de risco nas
cidades. Sabemos que os bairros mais vulneráveis aos desastres climáticos são
de maioria negra, e com esse estudo descobrimos que as escolas que estão em
áreas de risco também têm predominância de alunos negros”, analisa Maria Isabel
Barros.
A campeã de racismo
ambiental na educação é Vitória. A cidade tem a maior discrepância entre
as escolas negras dentro de áreas de risco em relação ao total do município:
enquanto pouco mais da metade das escolas têm a maioria dos estudantes pretos
ou pardos, 34 das 39 escolas nas regiões vulneráveis aos riscos climáticos são
negras.
Porto Velho (RO) possui duas
escolas localizadas em áreas de risco e ambas são negras. Já em Macapá (AP), a
única escola da cidade que está dentro de área de risco é negra. E das 245
escolas de Florianópolis, apenas duas são negras, e ambas estão inseridas em
áreas de risco.
“Quando uma escola está
localizada em um lugar que promove risco à vida das crianças e adolescentes, em
um território sem infraestrutura adequada e segurança climática, isso é racismo
ambiental. Quando a escola precisa ser fechada em momentos de enchentes e calor
extremo por falta de infraestrutura, isso também é racismo ambiental”, explica
Mariana Belmont, pesquisadora e organizadora do livro “Racismo Ambiental e
Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023).
Para Belmont, dados de
pesquisas como a do Instituto Alana precisam ser compartilhados com toda a
comunidade escolar, incluindo os estudantes e os gestores das escolas, para
fortalecer a pressão pública por segurança climática nas escolas. “É
fundamental que o racismo ambiental seja parte do conteúdo tratado nas salas de
aula, para que os alunos entendam seu contexto territorial”, complementa.
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Escolas
negras afetadas por eventos extremos têm dificuldade para voltar à normalidade
A Escola Estadual Maria José
Mabilde, que fica em Porto Alegre, no bairro Arquipélago, está em área de risco
hidrológico e ficou três meses sem aulas após o desastre que atingiu o Rio Grande do Sul em maio deste
ano. As chuvas sem precedentes causaram uma inundação jamais vista antes na
unidade de ensino.
“Em dez anos que trabalho na
escola, o máximo de água que eu já vi dentro da escola foi na altura da
cintura. Dessa vez, o nível da água passou de 2 metros. Quando teve a previsão
de chuvas, nós colocamos as coisas para cima, mas ninguém podia imaginar que
seria a maior cheia da história”, contou à Pública o diretor da unidade de ensino, Daniel Pereira de
Carvalho.
“Perdemos tudo. Todas as
fotos, arquivos, materiais, móveis, o histórico inteiro da escola”, lamenta.
A Maria José Mabilde fica na
Ilha da Pintada, um local que Carvalho define como “a periferia da periferia”
de Porto Alegre. A maioria dos estudantes é parda. No início de 2024, 151
alunos estavam matriculados na escola. Agora, no final do ano letivo, somente
80 crianças estudam no local, e apenas 45 frequentam as aulas presenciais. As
outras 35 têm aulas remotas.
“Muitas famílias saíram da
ilha depois das últimas chuvas, são pessoas que não estão mais dispostas a
passar por aquilo. Os que ficaram, vivem com medo. A escola já voltou a
funcionar, mas a comunidade está muito prejudicada até agora”, diz o diretor.
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Escola Estadual Maria José Mabilde ficou três meses
sem aulas após o desastre que atingiu o Rio Grande do Sul em maio
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Escola Estadual Maria José Mabilde ficou três meses
sem aulas após o desastre que atingiu o Rio Grande do Sul em maio
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Escola Estadual Maria José Mabilde ficou três meses
sem aulas após o desastre que atingiu o Rio Grande do Sul em maio
Quanto aos alunos que
seguiram tendo aulas na escola, Carvalho conta que os traumas não estão
aparentes. “A maioria das crianças parece estar bem, brincando
normalmente. Mas, por dentro, sei que elas estão sofrendo. Quando chove, as
crianças menores começam a chorar. Muitas ficaram com depressão depois do que
presenciaram durante o desastre.”
A unidade de ensino está a
menos de 10 metros de distância do rio Jacuí e foi construída sobre um terreno
arenoso, o que amplia sua vulnerabilidade, explica o diretor. A força das águas
causa o deslocamento constante de parte da areia que está sob a escola, gerando
uma série de instabilidades físicas.
Outra escola estadual da
ilha, a Almirante Barroso, sofreu rachaduras depois das chuvas de maio e está
interditada até hoje. Por conta disso, os cerca de 350 estudantes da unidade
foram remanejados para a Maria José Mabilde. “Nós dividimos a escola, o pessoal
do Almirante fica no térreo e nós no andar de cima. Isso só funciona porque
metade dos nossos alunos parou de vir para a escola, mas mesmo assim gera um
desgaste para todo mundo”, afirma.
A Secretaria de Educação do
Rio Grande do Sul liberou R$ 300 mil para a reconstrução da Maria José Mabilde.
Segundo o dirigente, o valor é inferior ao total de prejuízos com a inundação.
Em Vitória, a Escola
Municipal Paulo Reglus Neves Freire, que fica no bairro Inhanguetá, está em
área de risco para enxurradas ou inundações. Pretos e pardos são a maioria dos
estudantes. A Pública conversou com uma servidora da instituição, que
preferiu manter a condição de anonimato.
“A região onde
nossa escola fica é muito vulnerável a enchentes. Antes os alunos tinham aula
num barracão, e dois anos atrás ele foi demolido e construíram a escola no
mesmo lugar. Ainda não tivemos problemas depois da reforma, mas o barracão
alagou muitas vezes”, disse a funcionária.
Em Salvador, a
Escola Municipal Padre Manuel Correa de Sousa alagou em abril deste ano, como
mostrou reportagem do telejornal
Bahia Meio Dia, da TV Globo. A instituição fica no bairro Mussurunga, às
margens de um córrego que transborda com frequência e causa enchentes em toda a
região, segundo moradores ouvidos na matéria. A Pública tentou
contato com a instituição para entender se o cenário continua se repetindo, mas
não houve retorno.
Sandra Moraes, vice-gestora
da Escola Municipal Waldemar Valente, que fica no Recife, diz estar aliviada
por não ter precisado fechar a escola em 2024 por conta das chuvas, algo que
havia acontecido nos anos anteriores. O pior episódio foi em 2022, quando os
estudantes ficaram mais de 15 dias sem aulas por conta de um alagamento extenso
que tomou conta do entorno da escola e impediu o deslocamento dos alunos até a
instituição.
“Depois do alagamento, as
crianças voltaram para a escola muito diferentes, não socializavam, falavam
pouco, estavam tímidas e introspectivas. A comunidade toda foi muito
abalada, e os alunos ainda estavam se recuperando das perdas da pandemia, então
a chuva foi mais um prejuízo para o aprendizado deles”, afirma Moraes.
A Waldemar Valente não
chegou a ser incluída como uma das instituições em área de risco para
inundações na pesquisa do Instituto Alana. Segundo Maria Isabel, isso pode ser
um efeito da falta de atualização da base de dados do Cemaden e do IBGE.
“Precisamos ter dados melhores, porque é possível que haja muito mais escolas
em áreas de risco, já que a informação mais recente que temos é de 2018”, diz a
pesquisadora do Instituto Alana.
O Cemaden aguarda a
divulgação dos dados do Censo 2022 por face de quadra para atualizar o
mapeamento de áreas de risco.
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O
que deve ser feito com as escolas que estão em áreas de risco?
O diretor da Escola Maria
José Mabilde, na periferia de Porto Alegre, mostra preocupação com o futuro da
instituição que comanda. “As cheias do rio vão acontecer sempre, e a tendência
é que piorem a cada ano. E não vejo nenhuma obra de contenção sendo feita para
evitar que [a inundação] aconteça de novo no ano que vem. Se for para passar
por isso toda vez, não tem condição de as crianças ficarem três meses sem aula
por ano”, pondera Daniel Pereira de Carvalho.
Para Maria Isabel, é urgente
que as escolas em áreas de risco recebam mais atenção nas políticas públicas de
educação e nos planos de adaptação climática das cidades, que devem fortalecer
as escolas e torná-las mais resistentes aos riscos. E somente nos casos em que
isso não for possível é que deve se considerar a construção de novas unidades
de ensino em áreas mais seguras, na visão da especialista.
“As crianças e suas famílias estão enraizadas
nos lugares perto das escolas. Elas têm seus trabalhos, suas relações sociais.
Tem que ser avaliado caso a caso, mas em geral, é muito ruim deslocar uma
escola inteira para outra área. Essa tem que ser a última solução, a
preferência deve ser fazer com que as escolas fiquem mais seguras e desenvolver
protocolos para caso os desastres aconteçam “, diz.
Mariana Belmont defende o
mesmo posicionamento. “É preciso olhar para o território pensando em como
remover o risco e adaptá-lo para que a comunidade permaneça no seu espaço de
convivência, preservando suas relações comunitárias e seus direitos básicos
garantidos. Adaptação às mudanças climáticas é readequar o local para se
preparar para os eventos climáticos, mas é também um impulso para promover os
direitos básicos da população, inclusive a educação”, afirma.
Fonte: Por Gabriel Gama, da Agencia Pública
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