terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Elon Musk e Trump: as faces sem máscaras da ideologia californiana

No já longínquo ano de 1995, o sociólogo britânico Richard Barbrooke e seu colega Andy Cameron escreveram um artigo que viria a ter razoável repercussão, embora não tanta consequência prática: “A ideologia californiana” (“The CalifornianIdeology”). Nele descreviam a ascenção, nos Estados Unidos, mais precisamente no Vale do Silício, de uma “nova classe” destinada a reinar no mundo capitalista:  a “classe virtual” (“virtual class”). Quatro anos depois Barbrooke voltou à carga, agora com um texto em estilo panfletário, provocativa e ironicamente intitulado “Manifesto Cibercomunista” (“Cyber-Communist Manifesto”). Abriu o texto parafraseando a muito conhecida sentença de Marx e Engels: “Um espectro assombra a Net: o espectro do comunismo”.

Neste segundo artigo, Barbrooke apontava uma curiosa coincidência entre a ideologia que então se espalhava da Califórnia para o mundo e aquela que motivara e impulsionara a Revolução Russa e outras revoluções socialistas: a crença saintsimoniana no desenvolvimento das forças produtivas como fundamento do progresso geral da humanidade, sobretudo rumo a maior bem estar social, igualdade e liberdade. Na União Soviética, o progresso era medido em número de tratores por habitantes. Para os ideólogos californianos, em número de laptops e outros gadgets por habitante, por escola, ou estatísticas similares. Na União Soviética, o progresso era liderado pela vanguarda ilustrada do Partido. Para os ideólogos californianos, seria liderado por essa classe que, nesse “Manifesto Cibercomunista”, Barbrooke alcunha digirati, contração de “digital” com “literati”, ou seja, “ilustrados digitais”. Na União Soviética, a ideologia era pregada e disseminada pelo Pravda. A ideologia californiana estava sendo pregada e disseminada pela revista Wired. Seguiam-se outras irônicas comparações.

Mas o que ele e seu colega Cameron já estavam apontado há 30 anos era a emergência de um estrato social oriundo da academia e das finanças que, impulsionando o desenvolvimento das novas tecnologias digitais de informação e comunicação (NTICs), percebia essas novas tecnologias como meio de renovar o então periclitante capitalismo estadunidense às voltas com a crise kondratieviana dos anos 1970, e, ao mesmo tempo, como ideologia que, se conquistasse corações e mentes da maioria social, lhes permitiria remodelar a sociedade ao seu gosto – sobretudo o gosto de fazer muito dinheiro.

Há uma crença que as mentes brilhantes do Vale do Silício seriam existencialmente liberal-progressistas, no sentido que Nancy Fraser dá a esta expressão, ou ligeiramente esquerdistas como, no geral, traduzimos políticamente o seu significado. Uma crença muito bem disseminada por profusão de autores como Manuel Castells, Pierre Levy, YochaiBenkler (e não citarei os/as brasileiros/as porque são boas pessoas…) que ignorando a sociedade capitalista real na qual essas tecnologias eram e são germinadas, queriam acreditar e nos fazer acreditar em seus poderes libertadores – como se a tecnologia determinasse os rumos da sociedade, não o contrário. De repente, percebeu-se que não é bem assim. O colunista de O Globo, Pedro Dória, em crônica de 5 de novembro último (“A democracia e o Vale do Silício”), descobriu que o Vale está politicamente rachado entre trumpistas reacionários e democratas progressistas. De fato, os dois grandes polos da política estadunidense grangearam apoios entre os líderes da indústria digital. Mas daí dizer que o “Vale sempre foi progressista” depende do que entendamos por “progressista”. Será onde Barbrooke e Cameron ainda podem muito nos ajudar.

·        As aparências. 

Estes autores, relidos agora, nos fazem recordar que a miniaturização dos componentes digitais que daria origem aos microcomputadores e outros gadgets de consumo de massa e às fábulas dos inventores de garagem, coincide, no tempo, com a ascenção política de uma nova geração universitária que lutava contra a Guerra do Vietnã, o racismo, outras mazelas do capitalismo estadunidense. As lutas incorporavam novos comportamentos e expressões culturais opostos à padronizada vida cotidiana fordista de seus pais e, pela própria natureza dessas lutas, contra os poderes estatais constituídos. Nascia uma Nova Esquerda (ou “New Left”). E uma “contracultura”. Por motivos cuja discussão transcederiam as dimensões de um artigo como este, essa Nova Esquerda esvaiu-se e a contracultura acabou diluída no chamado “movimento hippie”.

Ao mesmo tempo, adotando os cabelos cumpridos, as roupas desbotadas, outras tantas aparências da contracultura, incluindo ambientes empresariais menos hierarquizados e mais “divertidos”, digamos assim, muitos outros jovens se mostravam bem mais interessados em explorar as oportunidades que chips e demais microcomponentes pareciam lhes abrir para vencer na vida. Alguns deles venceram tão bem vencido que se tornaram ícones destes novos atuais tempos: Steve Jobs, Bill Gates, Mark Zuckerberg…

Nessa mesma época – anos 1970-1980 – percebendo a necessidade de o capitalismo estadunidense se renovar, intelectuais e acadêmicos buscarão associar aquele dinamismo cultural e tecnológico a um novo projeto de sociedade: “pós-industrial”, “informacional”… Fazem sucesso as obras de Daniel Bell, Alvin Toffler, Marshall McLuhan, dentre outros. “Há quase três décadas”, escreveram Barbrooke e Cameron, citando esses e outros nomes, “os gurus conservadores vêm prevendo que a nova classe dominante será composta de capitalistas de investimentos, cientistas inovadores, hackers, gênios, astros da mídia e ideólogos neoliberais – os ‘digirati’ ou ilustrados digitais”. Posteriormente, no livro Futuros imaginários, Barbrooke dissecaria o pensamento de cada um deles e de outros, demonstrando também suas estreitas relações com o Departamento de Estado e até com a CIA: tratava-se de elaborar uma ideologia como ares de teoria séria, oposta aos conservadores políticos e comportamentais, por isso “liberal”, que pudesse competir com a então hegemônica teoria e ideologia socialista, de fundo marxiano, abraçada por qualquer intelectual ou militante político que lutasse pela transformação da sociedade estadunidense e Ocidental. O liberalismo progressista, denunciado por Fraser, tem origem aí – e seu êxito, muito ajudado pela derrocada da União Soviética em 1991, é inegável. As consequências – Trump, Bolsonaro… – também.

Prosseguem Barbrooke e Cameron:

Buscando popularizar suas previsões, eles sempre afirmam que todo profissional de alta tecnologia tem a oportunidade de integrar-se a essa nova aristocracia. Dentro das indústrias convergentes, trabalhadores qualificados são essenciais para o desenvolvimento de produtos originais, tais como programas de software e criação de sites. Como acontece com muitos de seus pares, a maioria dos artesãos digitais convive com a insegurança do trabalho por contrato. Ao mesmo tempo, porém, são mais bem pagos e têm mais autonomia em seu trabalho. Como no passado, essa posição social ambígua pode encorajar a ingenuidade e credulidade em relação ao modernismo reacionário. Perseguindo o sonho americano, muitos trabalhadores de alta tecnologia nutrem a esperança de ganhar milhões, fundando sua empresa própria. Em lugar de identificar-se com seus colegas trabalhadores, anseiam por penetrar nas fileiras dos ilustrados digitais, a nova tecnocracia da Internet.

Em 1995, já estavam antecipando o “pobre de direita”…

Adiante:

Com o tempo, vão transformar as restrições do fordismo nas liberdades da sociedade da informação. As conciliações e os acordos da democracia representativa serão substituídos pela participação pessoal no interior da “Câmara Municipal eletrônica”. Os limites impostos à criatividade pessoal pela mídia existente serão superados por formas interativas de expressão estética. Até mesmo os limites físicos do corpo serão transcendidos no ciberespaço. Na ideologia californiana, a autocracia de poucos, a curto prazo, é necessária para que se possa alcançar a libertação de muitos a longo prazo. Não mais “os que têm” e “os que não têm”, mas “os que têm agora” e “os que terão mais tarde”.

No “Manifesto Cibercomunista”, Barbrooke deixa ainda mais claro:

Apesar da retórica digital, esses especialistas conservadores estão antes de mais nada interessados em provar que as tecnologias de informação forçarão a privatização e desregulação de toda atividade econômica. O futuro pós-Fordista é o retorno ao passado liberal. Com a popularização da Internet, tal fundamentalismo do livre mercado será rapidamente adaptado para se ajustar a essa nova situação. Notoriamente, Wired argumenta que o “nova paradigma” da competição desregulada entre ciber-empreendedores ampliará a liberdade individual e encorajará a inovação tecnológica nos Estados Unidos. Na medida em que a Internet se estenda pelo mundo, os neoliberais valores materiais e espirituais estadunidenses serão impostos a toda humanidade.

Para confirmar o que afirma, Barbrooke cita Louis Rossetto, fundador da Wired:

Esse novo mundo da Internet é caracterizado por uma nova economia global que é inerentemente anti-hierárquica e descentralizada, não respeita fronteiras nacionais ou o controle de políticos e burocratas… e por uma consciência reticular global que causará a morte definitiva das falidas políticas eleitorais.

Não vem a ser exatamente esse o discurso de um Elon Musk ou Pavel Durov?

Essas ideias foram formalizadas em 8 de fevereiro de 1996 pelo poeta John Barlow, na grande reunião anual do mundo das finanças em Davos, Suíça. Numa tão grandiloquente quanto onírica “Declaração da Independência do Ciberespaço”, Barlow sentencia: “Governos do mundo industrial, gigantes fatigados de carne e aço, eu venho do ciberespaço, a nova morada do espírito”. Adiante, insiste: “Os governos tiram seu poder legítimo do consentimento dos governados. Não pedistes esse poder e nós não o concedemos”. Não satisfeito, acrescenta mais à frente: “Vossas noções jurídicas de propriedade, de expressão, de identidade, de movimento, de contexto não se aplicam a nós. Elas baseiam-se na matéria. Aqui não há matéria”.

Os banqueiros e super-ricos que ouviram essas palavras, adoraram.

Uma característica dessa nova camada dirigente do capitalismo é se apresentar como representativa dos interesses do “povo”, evitando ser vista como uma classe “dominante” e “opressora”. Explica Barbrooke, no “Manifesto Cibercomunista”:

Diferentemente das formas anteriores de conservadorismo, a ideologia californiana não expressa abertamente o seu desejo de dominar os outros. Ao contrário, os seus gurus garantem que as regras dos digiratis beneficiarão todo mundo pois para estes destinam-se suas máquinas sofisticadas e seus métodos de produção. Eles são pioneiros em serviços de alta tecnologia que serão eventualmente desfrutados pelo conjunto da população. Ao mesmo tempo, os digirati transformarão as restrições do fordismo nas liberdades da sociedade da informação. Os compromissos da democracia representativa serão substituídos pela participação pessoal no interior da ágora eletrônica. Os limites à criatividade pessoal na mídia serão ultrapassados pelas formas interativas de expressão estética. Até mesmo o confinamento do corpo será transcedido dentro do ciberespaço.

Porém…

Na ideologia californiana, a autocracia de uns poucos no curto prazo é necessária para a libertação de muitos, no longo prazo.

·        Capital financeiro. 

Quando escrevia essas palavras, Barbrooke parecia ser uma voz quase isolada. E, embora as experiências em comercialização da internet já estivessem num estágio avançado, a exemplo do Yahoo!, My Space, AOL etc., o modelo de negócios ideal ainda não havia sido encontrado: a monetização dos dados de bilhões de pessoas que viria a ser introduzido pelo Google no inicio do século XXI. Aliás, o próprio Richard Barbrooke, na sequência do seu “Manifesto Cibercomunista”, parece acreditar que os então comportamentos de compartilhamento gratuito de arquivos através de protocolos como o BitTorrent, afetando duramente as indústrias fonográfica e audiovisual, abria caminho para a construção política de um programa contrário ao dos digirati. Seu objetivo ao escrevê-lo seria denunciar as falácias da ideologia californiana na expectativa da elaboração de um discurso e projeto alternativos. Se era isso, frustrou-se.

Ao contrário, nessa mesma época, aqueles jovens hackers de aparência riponga (mas só aparência) exameavam em torno de especuladores financistas como moscas à volta do lixo. Não basta inventar uma maquineta promissora ou escrever um software disruptivo. Precisa-se de muito dinheiro para transformar essas criações em real indústria. A maioria desses jovens, mesmo oriundos de famílias bem estabelecidas de classe média, não tinha o capital inicial para deslanchar uma empresa. Quase nenhum era, como Elon Musk, herdeiro de fortunas. Para sorte deles, no Vale do Silício não existem só empresas de produtos digitais mas também dezenas de especuladores com muito dinheiro para apostar no possível sucesso de jovens criativos concluindo seus TCCs ou doutorados nas renomadas universidades da Califórnia. Especializam-se em identificar, não raro por aspectos meramente subjetivos, projetos que poderiam prometer grandes lucros num prazo de dois a três anos. Perdem dinheiro, como qualquer especulador, mas um único projeto de sucesso lhes devolve, com enormes ganhos, a soma de algumas apostas negativas. Arthur  Rock investiu meros USD 57,6 mil numa tal de Apple, criada pelos jovens Steve Jobs e Steve Wosniak, da qual se retira, dois anos depois, levando USD 14 milhões. Andy Bechtolsheim deu um cheque de USD 100 mil para dois rapazes de nome Larry Page e Sergei Brinn, que sequer tinham conta bancária na ocasião, para que eles pudessem dar início a um projeto que facilitaria as buscas na internet – o Google. São alguns notáveis exemplos. No Vale do Silício, do total das apostas, 5% deram retornos superiores a 500% do investimento inicial; 25% duplicaram a aposta; 45% deram retornos modestos ou mesmo negativos; 25% fracassaram.

Uma vez o negócio tenha conseguido deslanchar, a fase seguinte é abrir o capital, colocar ações na bolsa de valores. Todas essas grandes corporações cujos nomes brilham hoje em dia na economia digital, têm mais de 80%, até 90%, das suas ações girando no mercado acionário, sendo que cerca de 25% a 30% estão concentrados num punhado de grandes gestores de ativos financeiros: Vanguard, Fidelity, Black Rock, Geode, JP Morgan, State Street. Pode ser que um Zuckerberg prefira Trump ou Bill Gates tenha optado por Kamala Harris. São ambos financistas, intimamente sócios de uma ínfima minoria de oligarcas capitalistas.

·        Irmãos Koch. 

No dia 20 de janeiro de 2009, Barack Obama tomou posse como 44º presidente dos Estados Unidos e primeiro negro a alcançar esse posto de homem mais poderoso do mundo. Uma semana depois, na fazenda dos irmãos Charles e David Koch, na Califórnia, reuniu-se um grupo de multimilionários para discutir a constituição de um fundo financeiro destinado a financiar a mobilização da direita estadunidense contra os planos de Obama e o que mais identificavam a “comunismo” ou negação dos “ideais americanos”. Entre estes, Robert Mercer, “um excêntrico cientista da computação que fez fortuna empregando sofisticados algoritmos no mercado de ações”. Além de enfrentar problemas com o Fisco, Mercer temia, como outros presentes a esse encontro, que Obama viesse a impor alguma regulação a um mercado quase totalmente liberado de maiores controles estatais, desde o governo Reagan. O que, aliás, acabou não fazendo.

Veio de Mercer o dinheiro que, junto com Steve Bannon, financiou a ascensão do Breitbart News como um dos principais porta-vozes da direita estadunidense. Bannon, por sua vez, fez fortuna investindo em papéis das indústrias cinematográfica e de jogos eletrônicos. Com certeza, boa parte da cornucópia que banca hoje em dia os discursos de ódio, o negacionismo, obscurantismo nas “redes sociais”, veio do fundo financeiro constituído naquela reunião na fazenda dos Koch. Ou seja, o que há de comum entre os Koch, Mercer, Bannon ou Musk é formarem uma oligarquia financeira cuja riqueza e poder se apoiam num regime político-econômico o mais desregulado e desregrado possível: o sonho daqueles libertários do Vale do Silício nos primórdios da indústria e economia digitais. Já eram de direita, apenas não sabiam. Até porque não tinham então qualquer preocupação política e deviam olhar com algum desprezo para os outros cabeludos que preferiam fazer política em diretório estudantil a construir alguma maquineta original em seus alojamentos de estudantes.

Agora adultos e bilionários, tiraram as máscaras. Eles podem estar circunstancialmente divididos entre democratas e republicanos mas, como bem esclarece Pedro Dória no artigo citado, “todos acreditam em ambição pessoal, em trabalhar para crescer, na vitória do talento individual. Mas a partir daí, quem constrói algo que leva à capacidade de influir sobre o futuro de toda a sociedade pode tomar sozinho decisões a respeito de para onde vamos coletivamente?”. Talvez a resposta de cada um dependa mais do estilo pessoal, do que de reais diferenças ideológicas. Convenhamos, com Trump ou Harris, nada muda para esses bilionários, nem para os seus negócios. Pode ser que Musk, assim como também Jeff Bezos, interessados em automóveis elétricos e foguetes, vejam vantagens nas propostas protecionistas de Trump, enquanto que Gates ou Laurene Jobs, viúva do fundador da Apple, ainda prefiram o culturalmente sofisticado ambiente liberal progressista das elites urbanas de Nova York ou Los Angeles. Mas para o mundo, como mostra um conhecido meme, a diferença entre um bombardeiro B-52 republicano e o democrata são apenas as faixas arco-íris do estabilizador vertical do avião democrata.

 

Fonte: Por Marcos Dantas, no Blog da Boitempo

 

Nenhum comentário: