Elon Musk e Trump: as faces sem máscaras da
ideologia californiana
No já longínquo ano de 1995, o sociólogo britânico Richard
Barbrooke e seu colega Andy Cameron escreveram um artigo que viria a ter
razoável repercussão, embora não tanta consequência prática: “A ideologia
californiana” (“The CalifornianIdeology”). Nele descreviam a ascenção, nos
Estados Unidos, mais precisamente no Vale do Silício, de uma “nova classe”
destinada a reinar no mundo capitalista: a “classe virtual” (“virtual class”).
Quatro anos depois Barbrooke voltou à carga, agora com um texto em estilo
panfletário, provocativa e ironicamente intitulado “Manifesto Cibercomunista”
(“Cyber-Communist Manifesto”). Abriu o texto parafraseando a muito
conhecida sentença de Marx e Engels: “Um espectro assombra a Net: o espectro do
comunismo”.
Neste segundo artigo, Barbrooke apontava uma curiosa
coincidência entre a ideologia que então se espalhava da Califórnia para o
mundo e aquela que motivara e impulsionara a Revolução Russa e outras
revoluções socialistas: a crença saintsimoniana no desenvolvimento das forças
produtivas como fundamento do progresso geral da humanidade, sobretudo rumo a
maior bem estar social, igualdade e liberdade. Na União Soviética, o progresso
era medido em número de tratores por habitantes. Para os ideólogos
californianos, em número de laptops e outros gadgets por
habitante, por escola, ou estatísticas similares. Na União Soviética, o
progresso era liderado pela vanguarda ilustrada do Partido. Para os ideólogos
californianos, seria liderado por essa classe que, nesse “Manifesto
Cibercomunista”, Barbrooke alcunha digirati, contração de “digital”
com “literati”, ou seja, “ilustrados digitais”. Na União Soviética, a ideologia
era pregada e disseminada pelo Pravda. A ideologia californiana
estava sendo pregada e disseminada pela revista Wired. Seguiam-se
outras irônicas comparações.
Mas o que ele e seu colega Cameron já estavam apontado há 30
anos era a emergência de um estrato social oriundo da academia e das finanças
que, impulsionando o desenvolvimento das novas tecnologias digitais de
informação e comunicação (NTICs), percebia essas novas tecnologias como meio de
renovar o então periclitante capitalismo estadunidense às voltas com a crise
kondratieviana dos anos 1970, e, ao mesmo tempo, como ideologia que,
se conquistasse corações e mentes da maioria social, lhes permitiria remodelar
a sociedade ao seu gosto – sobretudo o gosto de fazer muito dinheiro.
Há uma crença que as mentes brilhantes do Vale do Silício seriam
existencialmente liberal-progressistas, no sentido que Nancy Fraser dá a esta
expressão, ou ligeiramente esquerdistas como, no geral, traduzimos
políticamente o seu significado. Uma crença muito bem disseminada por
profusão de autores como Manuel Castells, Pierre Levy, YochaiBenkler (e não
citarei os/as brasileiros/as porque são boas pessoas…) que ignorando a
sociedade capitalista real na qual essas tecnologias eram e são germinadas,
queriam acreditar e nos fazer acreditar em seus poderes libertadores – como se
a tecnologia determinasse os rumos da sociedade, não o contrário. De repente,
percebeu-se que não é bem assim. O colunista de O Globo, Pedro
Dória, em crônica de 5 de novembro último (“A democracia e o Vale do
Silício”), descobriu que o Vale está politicamente rachado entre
trumpistas reacionários e democratas progressistas. De fato, os dois grandes
polos da política estadunidense grangearam apoios entre os líderes da indústria
digital. Mas daí dizer que o “Vale sempre foi progressista” depende do que
entendamos por “progressista”. Será onde Barbrooke e Cameron ainda podem muito
nos ajudar.
·
As aparências.
Estes autores, relidos agora, nos fazem recordar que a
miniaturização dos componentes digitais que daria origem aos microcomputadores
e outros gadgets de consumo de massa e às fábulas dos
inventores de garagem, coincide, no tempo, com a ascenção política de uma nova
geração universitária que lutava contra a Guerra do Vietnã, o racismo, outras
mazelas do capitalismo estadunidense. As lutas incorporavam novos
comportamentos e expressões culturais opostos à padronizada vida cotidiana
fordista de seus pais e, pela própria natureza dessas lutas, contra os poderes
estatais constituídos. Nascia uma Nova Esquerda (ou “New
Left”). E uma “contracultura”. Por motivos cuja discussão transcederiam as
dimensões de um artigo como este, essa Nova Esquerda esvaiu-se e a
contracultura acabou diluída no chamado “movimento hippie”.
Ao mesmo tempo, adotando os cabelos cumpridos, as roupas
desbotadas, outras tantas aparências da contracultura, incluindo ambientes
empresariais menos hierarquizados e mais “divertidos”, digamos assim, muitos
outros jovens se mostravam bem mais interessados em explorar as oportunidades
que chips e demais microcomponentes pareciam lhes abrir para vencer na
vida. Alguns deles venceram tão bem vencido que se tornaram ícones destes
novos atuais tempos: Steve Jobs, Bill Gates, Mark Zuckerberg…
Nessa mesma época – anos 1970-1980 – percebendo a necessidade de
o capitalismo estadunidense se renovar, intelectuais e acadêmicos buscarão
associar aquele dinamismo cultural e tecnológico a um novo projeto de
sociedade: “pós-industrial”, “informacional”… Fazem sucesso as obras de Daniel
Bell, Alvin Toffler, Marshall McLuhan, dentre outros. “Há quase três décadas”,
escreveram Barbrooke e Cameron, citando esses e outros nomes, “os gurus
conservadores vêm prevendo que a nova classe dominante será composta de
capitalistas de investimentos, cientistas inovadores, hackers, gênios, astros
da mídia e ideólogos neoliberais – os ‘digirati’ ou ilustrados digitais”.
Posteriormente, no livro Futuros imaginários, Barbrooke
dissecaria o pensamento de cada um deles e de outros, demonstrando também suas
estreitas relações com o Departamento de Estado e até com a CIA: tratava-se de
elaborar uma ideologia como ares de teoria séria, oposta aos conservadores
políticos e comportamentais, por isso “liberal”, que pudesse competir com a
então hegemônica teoria e ideologia socialista, de fundo marxiano, abraçada por
qualquer intelectual ou militante político que lutasse pela transformação da
sociedade estadunidense e Ocidental. O liberalismo progressista, denunciado por
Fraser, tem origem aí – e seu êxito, muito ajudado pela derrocada da União
Soviética em 1991, é inegável. As consequências – Trump, Bolsonaro… – também.
Prosseguem Barbrooke e Cameron:
Buscando popularizar suas previsões, eles sempre afirmam que
todo profissional de alta tecnologia tem a oportunidade de integrar-se a essa
nova aristocracia. Dentro das indústrias convergentes, trabalhadores
qualificados são essenciais para o desenvolvimento de produtos originais, tais
como programas de software e criação de sites. Como acontece com muitos de seus
pares, a maioria dos artesãos digitais convive com a insegurança do trabalho
por contrato. Ao mesmo tempo, porém, são mais bem pagos e têm mais autonomia em
seu trabalho. Como no passado, essa posição social ambígua pode encorajar a
ingenuidade e credulidade em relação ao modernismo reacionário. Perseguindo o
sonho americano, muitos trabalhadores de alta tecnologia nutrem a esperança de
ganhar milhões, fundando sua empresa própria. Em lugar de identificar-se com
seus colegas trabalhadores, anseiam por penetrar nas fileiras dos ilustrados
digitais, a nova tecnocracia da Internet.
Em 1995, já estavam antecipando o “pobre de direita”…
Adiante:
Com o tempo, vão transformar as restrições do fordismo nas
liberdades da sociedade da informação. As conciliações e os acordos da
democracia representativa serão substituídos pela participação pessoal no
interior da “Câmara Municipal eletrônica”. Os limites impostos à criatividade
pessoal pela mídia existente serão superados por formas interativas de
expressão estética. Até mesmo os limites físicos do corpo serão transcendidos
no ciberespaço. Na ideologia californiana, a autocracia de poucos, a curto
prazo, é necessária para que se possa alcançar a libertação de muitos a longo
prazo. Não mais “os que têm” e “os que não têm”, mas “os que têm agora” e “os
que terão mais tarde”.
No “Manifesto Cibercomunista”, Barbrooke deixa ainda mais claro:
Apesar da retórica digital, esses especialistas conservadores
estão antes de mais nada interessados em provar que as tecnologias de
informação forçarão a privatização e desregulação de toda atividade econômica.
O futuro pós-Fordista é o retorno ao passado liberal. Com a popularização da
Internet, tal fundamentalismo do livre mercado será rapidamente adaptado para
se ajustar a essa nova situação. Notoriamente, Wired argumenta
que o “nova paradigma” da competição desregulada entre ciber-empreendedores
ampliará a liberdade individual e encorajará a inovação tecnológica nos Estados
Unidos. Na medida em que a Internet se estenda pelo mundo, os neoliberais
valores materiais e espirituais estadunidenses serão impostos a toda humanidade.
Para confirmar o que afirma, Barbrooke cita Louis Rossetto,
fundador da Wired:
Esse novo mundo da Internet é caracterizado por uma nova
economia global que é inerentemente anti-hierárquica e descentralizada, não
respeita fronteiras nacionais ou o controle de políticos e burocratas… e por
uma consciência reticular global que causará a morte definitiva das falidas
políticas eleitorais.
Não vem a ser exatamente esse o discurso de um Elon Musk ou
Pavel Durov?
Essas ideias foram formalizadas em 8 de fevereiro de 1996 pelo
poeta John Barlow, na grande reunião anual do mundo das finanças em Davos,
Suíça. Numa tão grandiloquente quanto onírica “Declaração da Independência do
Ciberespaço”, Barlow sentencia: “Governos do mundo industrial, gigantes
fatigados de carne e aço, eu venho do ciberespaço, a nova morada do espírito”.
Adiante, insiste: “Os governos tiram seu poder legítimo do consentimento dos
governados. Não pedistes esse poder e nós não o concedemos”. Não satisfeito,
acrescenta mais à frente: “Vossas noções jurídicas de propriedade, de
expressão, de identidade, de movimento, de contexto não se aplicam a nós. Elas
baseiam-se na matéria. Aqui não há matéria”.
Os banqueiros e super-ricos que ouviram essas palavras,
adoraram.
Uma característica dessa nova camada dirigente do capitalismo é
se apresentar como representativa dos interesses do “povo”, evitando ser vista
como uma classe “dominante” e “opressora”. Explica Barbrooke, no “Manifesto
Cibercomunista”:
Diferentemente das formas anteriores de conservadorismo, a
ideologia californiana não expressa abertamente o seu desejo de dominar os
outros. Ao contrário, os seus gurus garantem que as regras dos digiratis
beneficiarão todo mundo pois para estes destinam-se suas máquinas sofisticadas
e seus métodos de produção. Eles são pioneiros em serviços de alta tecnologia
que serão eventualmente desfrutados pelo conjunto da população. Ao mesmo tempo,
os digirati transformarão as restrições do fordismo nas liberdades da sociedade
da informação. Os compromissos da democracia representativa serão substituídos
pela participação pessoal no interior da ágora eletrônica. Os limites à
criatividade pessoal na mídia serão ultrapassados pelas formas interativas de
expressão estética. Até mesmo o confinamento do corpo será transcedido dentro
do ciberespaço.
Porém…
Na ideologia californiana, a autocracia de uns poucos no curto
prazo é necessária para a libertação de muitos, no longo prazo.
·
Capital
financeiro.
Quando escrevia essas palavras, Barbrooke parecia ser uma voz
quase isolada. E, embora as experiências em comercialização da internet já
estivessem num estágio avançado, a exemplo do Yahoo!, My Space, AOL etc.,
o modelo de negócios ideal ainda não havia sido encontrado: a
monetização dos dados de bilhões de pessoas que viria a ser introduzido pelo
Google no inicio do século XXI. Aliás, o próprio Richard Barbrooke, na
sequência do seu “Manifesto Cibercomunista”, parece acreditar que os então
comportamentos de compartilhamento gratuito de arquivos através de protocolos
como o BitTorrent, afetando duramente as indústrias fonográfica e audiovisual,
abria caminho para a construção política de um programa contrário ao dos
digirati. Seu objetivo ao escrevê-lo seria denunciar as falácias da ideologia
californiana na expectativa da elaboração de um discurso e projeto
alternativos. Se era isso, frustrou-se.
Ao contrário, nessa mesma época, aqueles jovens hackers de
aparência riponga (mas só aparência) exameavam em torno de especuladores
financistas como moscas à volta do lixo. Não basta inventar uma maquineta
promissora ou escrever um software disruptivo. Precisa-se de muito dinheiro
para transformar essas criações em real indústria. A maioria desses jovens,
mesmo oriundos de famílias bem estabelecidas de classe média, não tinha o capital inicial
para deslanchar uma empresa. Quase nenhum era, como Elon Musk, herdeiro de
fortunas. Para sorte deles, no Vale do Silício não existem só empresas de
produtos digitais mas também dezenas de especuladores com muito dinheiro para
apostar no possível sucesso de jovens criativos concluindo seus TCCs ou
doutorados nas renomadas universidades da Califórnia. Especializam-se em
identificar, não raro por aspectos meramente subjetivos, projetos que poderiam
prometer grandes lucros num prazo de dois a três anos. Perdem dinheiro, como
qualquer especulador, mas um único projeto de sucesso lhes devolve, com enormes
ganhos, a soma de algumas apostas negativas. Arthur Rock investiu meros
USD 57,6 mil numa tal de Apple, criada pelos jovens Steve Jobs e Steve Wosniak,
da qual se retira, dois anos depois, levando USD 14 milhões. Andy Bechtolsheim
deu um cheque de USD 100 mil para dois rapazes de nome Larry Page e Sergei
Brinn, que sequer tinham conta bancária na ocasião, para que eles pudessem dar
início a um projeto que facilitaria as buscas na internet – o Google. São
alguns notáveis exemplos. No Vale do Silício, do total das apostas, 5% deram
retornos superiores a 500% do investimento inicial; 25% duplicaram a aposta;
45% deram retornos modestos ou mesmo negativos; 25% fracassaram.
Uma vez o negócio tenha conseguido deslanchar, a fase seguinte é
abrir o capital, colocar ações na bolsa de valores. Todas essas grandes
corporações cujos nomes brilham hoje em dia na economia digital, têm mais de
80%, até 90%, das suas ações girando no mercado acionário, sendo que cerca de
25% a 30% estão concentrados num punhado de grandes gestores de ativos
financeiros: Vanguard, Fidelity, Black Rock, Geode, JP Morgan, State Street.
Pode ser que um Zuckerberg prefira Trump ou Bill Gates tenha optado por Kamala
Harris. São ambos financistas, intimamente sócios de uma ínfima minoria de
oligarcas capitalistas.
·
Irmãos Koch.
No dia 20 de janeiro de 2009, Barack Obama tomou posse como 44º
presidente dos Estados Unidos e primeiro negro a alcançar esse posto de homem
mais poderoso do mundo. Uma semana depois, na fazenda dos irmãos Charles e
David Koch, na Califórnia, reuniu-se um grupo de multimilionários para discutir
a constituição de um fundo financeiro destinado a financiar a mobilização da direita
estadunidense contra os planos de Obama e o que mais identificavam a
“comunismo” ou negação dos “ideais americanos”. Entre estes, Robert Mercer, “um
excêntrico cientista da computação que fez fortuna empregando sofisticados
algoritmos no mercado de ações”. Além de enfrentar problemas com o Fisco,
Mercer temia, como outros presentes a esse encontro, que Obama viesse a impor
alguma regulação a um mercado quase totalmente liberado de maiores controles
estatais, desde o governo Reagan. O que, aliás, acabou não fazendo.
Veio de Mercer o dinheiro que, junto com Steve Bannon, financiou
a ascensão do Breitbart News como um dos principais
porta-vozes da direita estadunidense. Bannon, por sua vez, fez fortuna
investindo em papéis das indústrias cinematográfica e de jogos eletrônicos. Com
certeza, boa parte da cornucópia que banca hoje em dia os discursos de ódio, o
negacionismo, obscurantismo nas “redes sociais”, veio do fundo financeiro
constituído naquela reunião na fazenda dos Koch. Ou seja, o que há de comum entre
os Koch, Mercer, Bannon ou Musk é formarem uma oligarquia financeira cuja
riqueza e poder se apoiam num regime político-econômico o mais desregulado e
desregrado possível: o sonho daqueles libertários do Vale do Silício nos
primórdios da indústria e economia digitais. Já eram de direita, apenas não
sabiam. Até porque não tinham então qualquer preocupação política e deviam
olhar com algum desprezo para os outros cabeludos que preferiam fazer política
em diretório estudantil a construir alguma maquineta original em seus
alojamentos de estudantes.
Agora adultos e bilionários, tiraram as máscaras. Eles podem
estar circunstancialmente divididos entre democratas e republicanos mas, como
bem esclarece Pedro Dória no artigo citado, “todos acreditam em ambição pessoal,
em trabalhar para crescer, na vitória do talento individual. Mas a partir daí,
quem constrói algo que leva à capacidade de influir sobre o futuro de toda a
sociedade pode tomar sozinho decisões a respeito de para onde vamos
coletivamente?”. Talvez a resposta de cada um dependa mais do estilo pessoal,
do que de reais diferenças ideológicas. Convenhamos, com Trump ou Harris, nada
muda para esses bilionários, nem para os seus negócios. Pode ser que Musk,
assim como também Jeff Bezos, interessados em automóveis elétricos e foguetes,
vejam vantagens nas propostas protecionistas de Trump, enquanto que Gates ou
Laurene Jobs, viúva do fundador da Apple, ainda prefiram o culturalmente
sofisticado ambiente liberal progressista das elites urbanas de Nova York ou
Los Angeles. Mas para o mundo, como mostra um conhecido meme, a diferença entre
um bombardeiro B-52 republicano e o democrata são apenas as faixas arco-íris do
estabilizador vertical do avião democrata.
Fonte: Por Marcos Dantas, no Blog da Boitempo
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