Michael Roberts: Javier Milei – um ano de governo
Faz um ano que o autoproclamado “anarcocapitalista” Javier Milei se
tornou presidente da Argentina. Ele assumiu o poder em um país em que a
inflação anual estava em 160%, mais de quatro em cada 10 pessoas estavam abaixo
da linha da pobreza e o déficit comercial era de US$ 43 bilhões. Além disso,
havia uma dívida assustadora de US$ 45 bilhões com o Fundo Monetário
Internacional, além de US$ 10,6 bilhões a serem pagos ao credor multilateral e
aos credores privados.
O governo peronista anterior falhou miseravelmente em entregar expansão
econômica, uma moeda estável e inflação baixa. Ademais, também não conseguiu
acabar com a pobreza e reduzir a desigualdade. A taxa oficial de pobreza da
Argentina subiu para 40% no primeiro semestre de 2023. De acordo com dados
disponíveis de desigualdade mundial, o 1% mais rico dos argentinos tinha 26% de
toda a riqueza pessoal líquida, os 10% mais ricos tinham 59%, enquanto os 50%
mais pobres tinham apenas 5%! Em termos de renda, o 1% mais rico obtinha 15%,
os 10% mais ricos arrumavam 47% e os 50% mais pobres ficavam apenas com 14%.
O plano de Javier Milei era claro (pelo menos em sua própria mente de
tecnocrata). Ele desmantelaria o setor estatal da Argentina; “liberaria” também
os mercados de regulamentação para que as grandes empresas e os investidores
estrangeiros pudessem obter lucros. Ele pretendia desvalorizar a moeda com o
objetivo final de chegar à dolarização completa da economia argentina. Tudo
isso porque confiava no capitalismo irrestrito como um meio para resolver a
longa crise dessa economia periférica.
Javier Milei não vacilou diante desse experimento extremista: ele
implementou uma política extremada de livre mercado e, assim, ele se
diferenciou do keynesianismo reformista ou moderadamente intervencionista, o
qual fora adotado pelas administrações anteriores.
Para tanto, ao assumir o poder, Javier Milei tomou uma série de medidas
de austeridade, incluindo cortes de subsídios de energia e transporte, demissão
de dezenas de milhares de funcionários públicos, congelamento de projetos de
infraestrutura pública e imposição de congelamento de salários e pensões abaixo
da inflação.
O resultado tem se mostrado brutal. A economia entrou em profunda
recessão. O FMI prevê uma contração de 3,5% em 2024. Parece pouco, mas essa é a
maior contração em qualquer uma das principais economias do G20 neste ano; ela
só está sendo superada pelo Haiti, uma economia dominada por gângsteres, e pelo
Sudão do Sul, que se encontra devastado pela guerra civil.
Javier Milei visa acabar com a hiperinflação que assola a economia
argentina derrubando a produção e o consumo de modo deliberado; o seu objetivo
é reduzir drasticamente os salários reais, abrindo espaço para a acumulação de
capital. Ao cortar gastos do setor público, empregos e subsídios para os
pobres, ele pretende aliviar também a carga tributária das empresas, o que
potencialmente eleva lucratividade do capital. Ele espera que isso traga novos
investimentos.
Depois de um ano, como a maioria dos argentinos foi forçada a cortar
gastos, a inflação mensal caiu drasticamente. O resultado é efetivo, mas é
preciso ver que a sua política anti-inflacionária foi concebida para atuar
apenas na demanda agregada, em detrimento dos mais pobres.
A desaceleração da inflação fortaleceu o peso argentino e reduziu os
custos dos empréstimos. Mediante uma anistia fiscal, Milei atraiu argentinos
ricos para que declarassem a riqueza acumulada em dólares, montantes estes que
estavam escondidos em contas bancárias offshore e em cofres privados. Isso
trouxe US$ 19 bilhões para o banco central da Argentina, aumentando assim as
reservas cambiais.
Javier Milei quer liberar o peso dos controles do banco central;
contudo, se ele fizer isso agora, o peso, que está extremamente
supervalorizado, despencaria, dificultando o cumprimento dos pagamentos ao FMI.
Felizmente para ele, esse odiado Fundo está muito satisfeito com as políticas
que implementou. Um informe do FMI comentou que o governo argentino “obtive progresso
na restauração da estabilidade macroeconômica mais rápido do que estava
previsto; ele está pondo a economia nos trilhos de modo muito eficiente”.
Nesse mesmo informe foi feito um agradecimento às autoridades argentinas
pela “implementação decisiva do plano de estabilização”. Ora, como osricos não
estão tendo que pagar mais impostos, as medidas de austeridade de Milei foram
recebidas com entusiasmo pelo FMI e pelas grandes empresas argentinas.
Os gastos públicos foram reduzidos em 30% ano neste ano em termos reais
(ou seja, em valores ajustados pela inflação), de acordo com cálculos do Centro
de Economia Política Argentina (CEPA) e da Associação para o Orçamento e Gestão
das Finanças Públicas (ASAP).
Javier Milei fechou 13 ministérios e demitiu cerca de 30.000
funcionários públicos, 10% da força de trabalho federal. Ele também congelou
obras públicas e reduziu os fundos que estavam alocados para a educação, saúde,
pesquisa científica e pensões. Os cortes orçamentários foram especialmente
duros em infraestrutura (-74%), educação (-52%), desenvolvimento social (-60%),
saúde (-28%) e assistência federal às províncias (-68%).
A Câmara Argentina de Construção (CAC) estima que o Estado agora deve às
empreiteiras cerca de 400 bilhões de pesos (ou US$ 400 milhões). De qualquer
modo, 200.000 trabalhadores foram demitidos no setor de construção desde o
início do governo neoliberal extremista. As pensões do Estado foram congeladas.
Do jeito que está agora, um aposentado na faixa de renda mais baixa recebe
atualmente o equivalente a US $ 320 por mês, ou apenas um terço dos US $ 900
que uma família precisa para sobreviver.
De acordo com o Conselho Interuniversitário Nacional, 70% dos salários
docentes e não docentes estão abaixo da linha da pobreza. Agora, Javier Milei eliminou
o Fundo nacional de incentivos aos professores, o qual subsidiava os salários
muito baixos dos professores em todo o país; e ele representava quase 80% das
transferências para as províncias, para fins educacionais, do governo federal.
Além de suspender os gastos de conservação da infraestrutura das
escolas, ele também cortou os programas de bolsas de estudo em 69%. Os
orçamentos das universidades foram congelados e muitos campi ficaram sem
recursos para pagar o aquecimento a gás e a eletricidade e o sistema
universitário declarou estado de emergência.
Javier Milei cortou os salários de pesquisadores e pessoal de apoio do
Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (Conicet), principal
organização dedicada à ciência e tecnologia do país. Ele também reduziu
drasticamente o número de bolsas de doutorado e pós-doutorado, demitiu 15% do
pessoal administrativo desse Conselho, congelou o orçamento da Agência Nacional
de Fomento à Pesquisa e encerrou projetos em instituições-chave, como o
Instituto Nacional de Tecnologia Industrial (INTI) e a Comissão Nacional de
Energia Atômica (CNEA).
Com isso, houve queda de 30% nas candidaturas a cargos de pesquisador e
cientista no país. Em uma carta pública dirigida a Javier Milei, 68 ganhadores
do Prêmio Nobel alertaram que “o sistema de ciência e tecnologia argentino está
se aproximando de um precipício perigoso”.
Os níveis de pobreza pioraram significativamente. A taxa de pobreza da
Argentina saltou de quase 42% para 53%; um extra de 3,4 milhões de argentinos
foi acrescentada aos altos números que já existiam. Dois terços das crianças
argentinas com menos de 14 anos vivem na pobreza. Javier Milei eliminou os
subsídios que eram administrados por meio de organizações sociais. Entre as
ajudas interrompidas está a distribuição de alimentos para cozinhas
comunitárias, que atendem crianças e famílias inteiras. Os programas de emprego
canalizados por meio de cooperativas de trabalhadores também foram cancelados.
Os argentinos estão passando por dificuldades crescentes para obter empregos;
como ganham pouco quando ganham não podem pagar nem mesmo o suficiente para
alimentar a família adequadamente.
Os subsídios à eletricidade, gás, água e transporte público foram
cortados. Em dezembro de 2023, uma família de classe média gastou cerca de
30.105 pesos (cerca de US$ 30) por mês em eletricidade, gás, água e transporte
público. Mas em setembro de 2024, os gastos aumentaram para 141.543 pesos (US$
142).
Esses golpes maciços nos padrões de vida dos argentinos médios,
juntamente com os aumentos contínuos da inflação, levaram a um colapso no
consumo. Na Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA) foi registrada uma queda
nos níveis de consumo de 12,9% em relação ao ano anterior e -2,3% em relação a
abril de 2024. No restante do país, o consumo caiu 15,5% em termos homólogos e
3,6% face a abril de 2024.
Houve um novo aumento da desigualdade. Os 10% mais ricos agora ganham 23
vezes mais do que o decil mais pobre, em comparação com 19 vezes há um ano. A
queda da renda atingiu 33,5% em termos reais entre os decis mais pobres, mas
apenas 20,2% entre os mais ricos. O índice de desigualdade de Gini atingiu um
recorde histórico de 0,47.
Apesar desse ataque cruel aos padrões de vida médios do povo argentino,
Milei conseguiu manter um grau suficiente de apoio. As pessoas ainda esperam
que ele acabe com o caos trazido pela inflação e que, depois, restaure o
crescimento. Os seus índices de aprovação têm se mantido estáveis.
Naturalmente, o apoio ao governo de Javier Milei vem principalmente dos
argentinos ricos; contudo, mesmo os mais pobres, que estão de fato assumindo a
maior parte do fardo de suas medidas, ainda mostram mais apoio a ele do que ao
governo peronista anterior.
Ao cortar gastos agressivamente e ao amputar os ministérios do governo
pela metade, a Argentina passou de um déficit fiscal de 2 trilhões de pesos
(US$ 2 bilhões) no final do ano passado para um superávit de 750 bilhões de
pesos em outubro deste ano. Este é o primeiro superávit fiscal em 16 anos.
As políticas da Javier Milei funcionarão? Certamente, elas se constituem
como um experimento vivo, posto em prática num país determinado. E elas
permitem comparar as políticas de “livre mercado” e a macrogestão keynesiana.
Mas a Argentina é uma economia capitalista fraca dominada pelo imperialismo.
Veja-se que ela teve um enorme déficit comercial em 2023. Mas, a desvalorização
do peso feita pelo governo de Javier Milei permitiu que as exportações se
recuperassem no ano passado (uma alta de 30%), enquanto a austeridade doméstica
esmagou as importações. As isenções fiscais para os ricos levaram a um pequeno
influxo líquido de capital após saídas maciças no último ano do governo
peronista.
Portanto, as reservas cambiais melhoraram ligeiramente, mas ainda estão
muito aquém de serem suficientes para atender aos pagamentos da dívida à
frente, principalmente ao FMI. O país enfrenta grandes pagamentos de dívida
externa: em 2025, esse montante está estimado em aproximadamente US$ 9 bilhões.
Mas talvez o FMI seja “soft” com a Argentina de Javier Milei.
O grande problema imediato é que o peso ainda está bem sobrevalorizado;
o valor do dólar em pesos ainda está muito baixo. Calcula-se que ele precise
ser desvalorizado em pelo menos mais 30% para tornar as exportações argentinas
competitivas. Ora, esse é uma dificuldade de monta já que uma desvalorização
cambial poderia acelerar a inflação novamente, deslustrando os resultados das
políticas feitas neste ano.
Os planos anarcocapitalistas de Javier Milei, usando aqui um termo
criado por Joseph Schumpeter, são realmente uma forma de “destruição criativa”.
Eis que esse economista austríaco cunhou esse termo na década de 1930 para
explicar como as recessões são necessárias sob o capitalismo para criar as
condições para uma nova expansão. É necessário, segundo ele, “limpar”
previamente o sistema do capital excedente, dos gastos supostamente
desnecessários, dos trabalhadores improdutivos e das empresas fracas, tendo em
vista tornar a economia “mais enxuta e mais robusta”.
Porém, até agora, a “destruição criativa” de Javier Milei só chegou ao
estágio da destruição. Ele será superado? Como Marx argumentou, o momento
criativo do processo requer sempre um aumento acentuado na lucratividade do
capital. Se isso ocorrer, haverá uma explosão de investimento e, portanto, um aumento
do emprego e da renda nacional. Será que isso vai realmente acontecer na
Argentina? Dada a atual estagnação global, dada a fraqueza histórica do setor
capitalista na Argentina, pode-se prever uma forte recuperação do investimento?
De fato, dada profundidade da destruição recessiva, pode-se ajuizar que a
economia argentina se manterá em depressão pelo resto da década?
A Argentina poderia sair dessa estagnação se houvesse um boom nos preços
das commodities, como aconteceu no início dos anos 2000. A Argentina é o maior
exportador mundial de óleo e farelo de soja, o segundo maior exportador de
milho e o terceiro maior exportador de soja. No entanto, por enquanto, os
preços da soja e do milho não estão muito animados.
A Argentina possui a terceira maior reserva de lítio do mundo,
tornando-se um ator importante na transição energética global. No entanto, os
preços do lítio caíram recentemente dado o excesso de oferta.
A Argentina também possui reservas consideráveis de gás de xisto. O
campo petrolífero de Vaca Muerta se constitui como uma das maiores reservas de
hidrocarbonetos não convencionais do mundo, com cerca de 16 bilhões de barris
de petróleo e 308 trilhões de pés cúbicos de gás natural, mas até agora em
grande parte inexplorado.
As exportações são fundamentais no processo de recuperação. Isso requer
uma desvalorização ainda maior do peso. Mas essa desvalorização pode reacelerar
a inflação, a menos que ainda mais austeridade seja aplicada internamente para
compensar. A grande preocupação da atual gestão econômica argentina é que o
presidente Donald Trump reeleito afirmou que pretende aumentar as tarifas sobre
todas as importações dos EUA em pelo menos 20%. Se ele o fizer, isso atingirá a
Argentina. Não é de admirar que Milei tenha passado um tempo nos Estados Unidos
tentando se aproximar de Trump em Mar-a-Largo.
Fonte: A Terra é Redonda
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