quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

João Sicsú: Dominar a inflação não é fácil

Países estabeleceram metas para a inflação. Uma variável crucial para manter o poder de compra e a qualidade de vida não poderia ser tratada com negligência. A inflação, assim como outras variáveis reais e nominais, deve ser controlada com a máxima acurácia.

É dada a muitos bancos centrais uma tarefa hercúlea. Mas Hércules, somente com a sua espada, não é capaz de vencer o dragão da inflação. O herói da mitologia grega tem usado somente uma arma, a sua espada: a taxa básica de juros.

Nesse contexto, haveria duas possibilidades. Enfrentar o dragão com somente uma espada ou aumentar o tamanho da arena de batalha (afrouxar as metas) e se esconder. Mas o dragão pode crescer e Hércules teria que usar a sua espada novamente. Com o tempo, dragão e espada poderiam ficar grandes demais.

O dragão (da inflação) é uma imagem metafórica. O dragão é a representação dos diversos tipos de inflação que Hércules teria que enfrentar. A espada de Hercules teria, por exemplo, que matar “o leão de Neméia”, “a hidra de Lerna”, “as aves do lago Estínfalo”, “o touro de Creta”, entre outros.

Na mitologia, o leão foi estrangulado. A hidra teve suas cabeças cortadas. As aves foram flechadas. O touro foi aprisionado. Foram utilizados diversos instrumentos para enfrentar os diferentes tipos de inflação. 

Contra o “leão”, poderiam ser utilizados estoques reguladores. Contra a “hidra”, utilizar-se-iam as reservas internacionais. Os “touros” seriam contidos com negociações em câmaras setoriais. As “aves” poderiam ser abatidas com uma política de aumento da produtividade.

Se a inflação aumenta, a solução não poderia ser somente majorar a taxa de juros ou elevar o valor da meta. Quando somente existe um instrumento de controle, uma meta mais elevada para a inflação em nada auxilia a sua contenção. A inflação é um fenômeno multifacetado e requer, portanto, um instrumento diferente para cada causa específica.

Essa abordagem não é uma novidade. Por exemplo, Fritz Machlup, em 1960, propôs que o termo inflação fosse utilizado de forma qualificada. Não seria apropriado afirmar que uma economia tem inflação, mas sim, por exemplo, que tem uma inflação de alimentos. Nesse caso, estoques reguladores poderiam ser ofertados. Em 1963, Martin Bronfenbrenner e Franklyn Holzman constataram que políticas monetárias e fiscais poderiam debelar uma inflação de custos de produção causando desemprego ou crescimento mais lento.

O método sugerido para o debate é minucioso; identificada a origem da inflação, buscar-se-ia desenhar políticas específicas que possam sufocar a pressão inflacionária sem atingir outros setores que estão tendo um comportamento compatível com a estabilidade. Reduzir o tamanho da arena, ou seja, baixar a meta de inflação, não controla o dragão. 

Tal como Hercules, o governo central poderia utilizar diferentes instrumentos para debelar os diferentes tipos de inflação. Bancos centrais deveriam ser apoiados por governos e sociedades. A estabilidade dos preços é um pilar necessário do bem-estar social.

<><> Copom eleva Selic para 12,25% e mantém um dos maiores juros reais do mundo

O Brasil registrou nesta quarta-feira (11) a segunda maior taxa de juros real do mundo, após o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central decidir elevar a Selic em 1 ponto percentual, de 11,25% para 12,25% ao ano. A Turquia lidera o ranking, enquanto a Rússia ocupa o terceiro lugar, segundo monitoramento da consultoria MoneYou.

A decisão unânime do Copom, que representa o maior aumento durante o governo do presidente Lula, ocorre em meio a sinais do mercado financeiro de desancoragem das expectativas de inflação, além da retomada da atividade econômica. Esta foi a última reunião do Copom sob o comando de Roberto Campos Neto, presidente do BC. 

No último encontro, em 6 de novembro, a taxa já havia sido elevada em 0,50 ponto percentual. 

Agentes financeiros, consultados pela Reuters, têm revisado suas projeções para o ritmo do aperto monetário, acompanhando dados econômicos mais fortes que o esperado.

Enquanto isso, o mercado de juros futuros reagiu com ajustes. As taxas de Depósitos Interfinanceiros (DI) para contratos de médio e longo prazos recuaram, refletindo otimismo com o andamento do pacote fiscal no Congresso. Por outro lado, os vencimentos de curto prazo subiram diante da percepção de que o Banco Central está acelerando o ritmo de alta da Selic. No fechamento do dia, o DI para janeiro de 2025 subiu para 12,009%, enquanto o contrato para janeiro de 2027 recuou para 14,47%.

 

¨      “O peru de Natal”. Por Luiz Marques

A coletânea organizada por Flávio Moreira da Costa, Os 100 melhores contos de humor da literatura universal, traz um escrito memorável do romano de origem judaica Alberto Moravia (1907-1990), “O peru de Natal”. Nele, a tradicional ave em lugar de ir “para a panela” transfigura-se no pretendente a genro na ceia, encarnando as características de um homem medíocre e ladino. Com “seus relatos de festas, divertimentos, viagens, sucessos mundanos” se refestelam, então, mãe e filha. A sua desenvoltura entre as classes abastadas envaidece, a primeira, e fascina a segunda.

Curcio, personagem central da narrativa, é o cético candidato a sogro. Desabafa, quando o peru se retira. “Estava na hora de parar com esses elegantões sofisticados e esnobes que escondem sob a arrogância um monte de trapaças”. Curcio, que batalhou duro a vida inteira, “não se sentia inferior a nenhum peru do mundo”. Aquele, porém, de peito estufado e ar senhorial logo se instala na casa.

“Belo genro”, resmunga o velho. “Aceito um homem trabalhador, simples, mas um peru”. O tempo passa, o pedido de casamento não vem apesar de os noivos usufruírem intimidades. O peru propõe que a jovem fuja com ele, para longe. Cansada de procrastinações e de mentiras, a sonsa consente.

Não há o que fazer, ela é adulta, diz a polícia. E o segredo vem à tona: o impostor é casado, tem filhos. Exige compensação para devolver a filha desonrada; um golpista. Curcio jura que não será mais enganado “pelas falsas aparências e pelas palavras vazias de um peru, fosse aristocrático ou plebeu”. Assim, supõe-se, a ave volta à panela para cumprir sua função na celebração de Cristo.

O conto de Alberto Moravia serve de metáfora para as relações estabelecidas entre o presidente da República, no alegórico papel de Curcio; o ministro da Fazenda, no da mãe; o ministro do Supremo, no da filha; e o mandachuva da Câmara Federal, no do peru. O cenário remete às armadilhas para desvirtuar um pacto de republicanização nos gabinetes de Brasília, em face das “emendas secretas”. Vide a ilustrativa e instrutiva reportagem sobre Arthur Lira, em “O homem que diz ‘dou’ não dá” (Piauí, 05/12/2024). Por ora, o patrono de um semipresidencialismo de ocasião mostra astúcia.

<><> Política como business

A história começa quando Flávio Dino suspende as estapafúrdias e impositivas emendas por Pix. Bilhões de reais eram distribuídos sem que se adivinhe quem os havia solicitado e para quê. A direita dinheirista – um pleonasmo – faz da política um negócio de corar frade de vitral. Na opinião do jornalista Breno Pires: “Arthur Lira acusa o Supremo Tribunal Federal de não cumprir o acordo para a liberação das emendas parlamentares. Mas o que acontece é o contrário”. Não surpreende.

O que está sub judice é o clientelismo político e currais eleitorais que funcionam qual uma âncora para as desigualdades. Ninguém explica por que, nos últimos três anos, 26 emendas no montante de R$ 90 milhões desembarcaram numa empresa de jogos eletrônicos, em Goiás. Essa é a ponta do iceberg de falcatruas e maracutaias dos desgovernos Michel Temer e Jair Bolsonaro, que deixaram um rastro de sabotagens contra o trabalho, o patrimônio estatal e os valores do Estado de direito democrático. “Jamais houve tamanho desarranjo institucional com tanto dinheiro público, em tão poucos anos”, denuncia com coragem e zelo o ex-governador do Maranhão e atual ministro do STF.

Em 20 de agosto, uma nota conjunta entre os poderes é assinada. Prega que emendas de comissões temáticas do Congresso seriam “destinadas a projetos de interesse nacional ou regional, definidos por um acordo entre Legislativo e Executivo”. As emendas estaduais seriam “destinadas a projetos estruturantes em cada estado e no Distrito Federal, de acordo com a definição de bancada, vedada a individualização”. Aprova-se a Lei Complementar 210, com as novas regras. O Brasil está vivo.

Flávio Dino libera o pagamento com algumas condições para garantir maior lisura, na execução dos recursos do Erário. Contudo, A lei sancionada transfere prerrogativas de comissões às lideranças dos partidos que, pela natureza do cargo, estão próximas ao presidente da “Casa do Povo” e não prevê a identificação do deputado e do senador que pedem repasse ao líder partidário. As nuvens pairam sobre o acordado, em letra miúda. A indecência saiu por uma porta, e retornou por outra.

O mandachuva simulou a concertação frente evidências de fraude; descumpriu o acordão; e agora trama uma vingança. Em retaliação, ameaça o pacote fiscal de Fernando Haddad que, por seu turno, bloqueia a valorização do salário mínimo e cria barreiras à concessão dos Benefícios de Prestação Continuada, que beneficiam os setores sociais mais vulneráveis. As medidas atendem às exigências descabidas das finanças, em contradição com o projeto de um país mais justo e igualitário. Indica uma capitulação ao capital financeiro. A frase de Otto von Bismarck (“Salsichas e leis, melhor o povo não saber como são feitas”) não se coaduna com a transparência desfraldada por progressistas.

<><> A política como droga

A imprensa neoliberal admite: “Ao ser um atalho para as reeleições, a farra das emendas produziu uma droga política altamente aditiva. Seu usuário precisa cada vez mais de recursos, sua abstinência pode lhe custar a carreira. Por isso, o empenho desesperado de Câmara e Senado em manter o fluxo constante e crescente da droga eleitoral”, diz um prócer do Fórum Mundial de Editores (!?) Marcelo Rech (Zero Hora, 6 e 7/12/2024). Mas a crítica alça um desajeitado voo de galinha; rente ao chão.

O governo é chantageado com cinismo aos olhos da mídia corporativa, que não transforma o fato em um escândalo político-midiático. Assaltantes são tratados de doentes irresponsáveis pelos atos. Os meios de comunicação tentam salvar a suja reputação com platitudes. Não fiscalizam adeptos do dogma neoliberal. Sem a tampa do boeiro, criaturas do subterrâneo se põem acima da Constituição. A governabilidade balança no Parlamento, cuja maioria se conduz com despudor ao se debruçar nos cofres da nação; já raspados pelo rentismo em R$ 869,3 bilhões, sendo R$ 111,6 bilhões livres de impostos só no mês de outubro do corrente. Um pequeno corte de 1% na taxa de juros do Banco Central economizaria R$ 55,2 bilhões nos gastos públicos. Isso, a Rede Globo oculta dos crédulos.

Arthur Lira et caterva representam uma barreira fisiológica à democracia, por reproduzir a lógica do “homem cordial” que prioriza e privilegia o círculo familiar e de amizades, recusando submeter-se ao consenso pactuado para legislar e governar os comuns. O patrimonialismo orienta ainda a mentalidade das elites, de rapina. Daí a oportuna sugestão do poeta: “Verifica a conta: / És tu que a pagas. / Põe o dedo em cada parcela. / Pergunta: Como aparece isto aqui? / Tens de tomar a chefia”.

Outrossim, a Advocacia-Geral da União argumenta que a lei alinhavada é o suficiente, pautada no realismo maquiaveliano da “verdade efetiva das coisas” (la verità effetualle della cosa). Isto é, na “análise concreta da realidade concreta”, dada a correlação de forças. O preço da negociação é o custo menor, de parte a parte. Os medalhões sabem o poder que têm; o governo necessita de votos para aprovar as políticas sociais. O Executivo e o Legislativo buscam um compromisso recíproco. Se o Judiciário rejeita o pedido da AGU, dispõe de mais autonomia para resolver a conflitualidade.

A militância de esquerda sabe que avança entre as pedras do atraso, para socialização de uma nova concepção de sociedade. Sabe que a disputa política não é um filme épico com o desenlace em uma explosão; na democracia, é uma série de streamings com várias temporadas e final num suspiro de alívio. Sabe que a conjuntura requer a acumulação de energias e a organização do bloco histórico-político.

Mas sabe também que é preciso empatia com o sofrimento da população. Os combates à crise social e ambiental junto do fortalecimento dos Brics revigoram os movimentos por mudanças. Que o sonho brasileiro não tenha sobressaltos e, o abutre, não substitua o peru tradicional de Natal.

 

Fonte: Brasil de Fato/Brasil 237/A Terra é Redonda

 

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