João Sicsú: Dominar a inflação não é fácil
Países
estabeleceram metas para a inflação. Uma variável crucial para manter o poder
de compra e a qualidade de vida não poderia ser tratada com negligência.
A inflação, assim como outras
variáveis reais e nominais, deve ser controlada com a máxima acurácia.
É dada a muitos
bancos centrais uma tarefa hercúlea. Mas Hércules, somente com a sua espada,
não é capaz de vencer o dragão da inflação. O herói da mitologia grega tem
usado somente uma arma, a sua espada: a taxa básica de juros.
Nesse contexto,
haveria duas possibilidades. Enfrentar o dragão com somente uma espada ou
aumentar o tamanho da arena de batalha (afrouxar as metas) e se esconder. Mas o
dragão pode crescer e Hércules teria que usar a sua espada novamente. Com o
tempo, dragão e espada poderiam ficar grandes demais.
O dragão (da
inflação) é uma imagem metafórica. O dragão é a representação dos diversos
tipos de inflação que Hércules teria que enfrentar. A espada de Hercules teria,
por exemplo, que matar “o leão de Neméia”, “a hidra de Lerna”, “as aves do lago
Estínfalo”, “o touro de Creta”, entre outros.
Na mitologia, o
leão foi estrangulado. A hidra teve suas cabeças cortadas. As aves foram
flechadas. O touro foi aprisionado. Foram utilizados diversos instrumentos para
enfrentar os diferentes tipos de inflação.
Contra o “leão”,
poderiam ser utilizados estoques reguladores. Contra a “hidra”, utilizar-se-iam
as reservas internacionais. Os “touros” seriam contidos com negociações em
câmaras setoriais. As “aves” poderiam ser abatidas com uma política de aumento
da produtividade.
Se a inflação
aumenta, a solução não poderia ser somente majorar a taxa de juros ou elevar o
valor da meta. Quando somente existe um instrumento de controle, uma meta mais
elevada para a inflação em nada auxilia a sua contenção. A inflação é um fenômeno
multifacetado e requer, portanto, um instrumento diferente para cada causa
específica.
Essa abordagem não
é uma novidade. Por exemplo, Fritz Machlup, em 1960, propôs que o termo
inflação fosse utilizado de forma qualificada. Não seria apropriado afirmar que
uma economia tem inflação, mas sim, por exemplo, que tem uma inflação de
alimentos. Nesse caso, estoques reguladores poderiam ser ofertados. Em 1963,
Martin Bronfenbrenner e Franklyn Holzman constataram que políticas monetárias e
fiscais poderiam debelar uma inflação de custos de produção causando desemprego
ou crescimento mais lento.
O método sugerido
para o debate é minucioso; identificada a origem da inflação, buscar-se-ia
desenhar políticas específicas que possam sufocar a pressão inflacionária sem
atingir outros setores que estão tendo um comportamento compatível com a
estabilidade. Reduzir o tamanho da arena, ou seja, baixar a meta de inflação,
não controla o dragão.
Tal como Hercules,
o governo central poderia utilizar diferentes instrumentos para debelar os
diferentes tipos de inflação. Bancos centrais deveriam ser apoiados por
governos e sociedades. A estabilidade dos preços é um pilar necessário do
bem-estar social.
<><> Copom eleva Selic para 12,25% e mantém
um dos maiores juros reais do mundo
O Brasil registrou nesta
quarta-feira (11) a segunda maior taxa de juros real do mundo, após o Comitê de
Política Monetária (Copom) do Banco Central decidir elevar a Selic em 1 ponto
percentual, de 11,25% para 12,25% ao ano. A Turquia lidera o ranking, enquanto
a Rússia ocupa o terceiro lugar, segundo monitoramento da consultoria MoneYou.
A decisão unânime do Copom,
que representa o maior aumento durante o governo do presidente Lula, ocorre em
meio a sinais do mercado financeiro de desancoragem das expectativas de
inflação, além da retomada da atividade econômica. Esta foi a última reunião do
Copom sob o comando de Roberto Campos Neto, presidente do BC.
No último encontro, em 6 de
novembro, a taxa já havia sido elevada em 0,50 ponto percentual.
Agentes financeiros,
consultados pela Reuters, têm revisado suas projeções para o ritmo
do aperto monetário, acompanhando dados econômicos mais fortes que o esperado.
Enquanto isso, o mercado de
juros futuros reagiu com ajustes. As taxas de Depósitos Interfinanceiros (DI)
para contratos de médio e longo prazos recuaram, refletindo otimismo com o
andamento do pacote fiscal no Congresso. Por outro lado, os vencimentos de
curto prazo subiram diante da percepção de que o Banco Central está acelerando
o ritmo de alta da Selic. No fechamento do dia, o DI para janeiro de 2025 subiu
para 12,009%, enquanto o contrato para janeiro de 2027 recuou para 14,47%.
¨ “O peru de Natal”. Por Luiz
Marques
A coletânea organizada por Flávio Moreira da
Costa, Os 100 melhores contos de humor da
literatura universal, traz um escrito memorável do romano de origem judaica
Alberto Moravia (1907-1990), “O peru de Natal”. Nele, a tradicional ave em
lugar de ir “para a panela” transfigura-se no pretendente a genro na ceia,
encarnando as características de um homem medíocre e ladino. Com “seus relatos
de festas, divertimentos, viagens, sucessos mundanos” se refestelam, então, mãe
e filha. A sua desenvoltura entre as classes abastadas envaidece, a primeira, e
fascina a segunda.
Curcio, personagem central da narrativa, é o cético
candidato a sogro. Desabafa, quando o peru se retira. “Estava na hora de parar
com esses elegantões sofisticados e esnobes que escondem sob a arrogância um
monte de trapaças”. Curcio, que batalhou duro a vida inteira, “não se sentia
inferior a nenhum peru do mundo”. Aquele, porém, de peito estufado e ar
senhorial logo se instala na casa.
“Belo genro”, resmunga o velho. “Aceito um homem
trabalhador, simples, mas um peru”. O tempo passa, o pedido de casamento não
vem apesar de os noivos usufruírem intimidades. O peru propõe que a jovem fuja
com ele, para longe. Cansada de procrastinações e de mentiras, a sonsa
consente.
Não há o que fazer, ela é adulta, diz a polícia. E o
segredo vem à tona: o impostor é casado, tem filhos. Exige compensação para
devolver a filha desonrada; um golpista. Curcio jura que não será mais enganado
“pelas falsas aparências e pelas palavras vazias de um peru, fosse
aristocrático ou plebeu”. Assim, supõe-se, a ave volta à panela para cumprir
sua função na celebração de Cristo.
O conto de Alberto Moravia serve de metáfora para as
relações estabelecidas entre o presidente da República, no alegórico papel de
Curcio; o ministro da Fazenda, no da mãe; o ministro do Supremo, no da filha; e
o mandachuva da Câmara Federal, no do peru. O cenário remete às armadilhas para
desvirtuar um pacto de republicanização nos gabinetes de Brasília, em face das
“emendas secretas”. Vide a ilustrativa e instrutiva reportagem sobre Arthur
Lira, em “O homem que diz ‘dou’ não dá” (Piauí, 05/12/2024). Por
ora, o patrono de um semipresidencialismo de ocasião mostra astúcia.
<><> Política
como business
A história começa quando Flávio Dino suspende as
estapafúrdias e impositivas emendas por Pix. Bilhões de reais eram distribuídos
sem que se adivinhe quem os havia solicitado e para quê. A direita dinheirista
– um pleonasmo – faz da política um negócio de corar frade de vitral. Na
opinião do jornalista Breno Pires: “Arthur Lira acusa o Supremo Tribunal
Federal de não cumprir o acordo para a liberação das emendas parlamentares. Mas
o que acontece é o contrário”. Não surpreende.
O que está sub judice é o
clientelismo político e currais eleitorais que funcionam qual uma âncora para
as desigualdades. Ninguém explica por que, nos últimos três anos, 26 emendas no
montante de R$ 90 milhões desembarcaram numa empresa de jogos eletrônicos, em
Goiás. Essa é a ponta do iceberg de falcatruas
e maracutaias dos desgovernos Michel Temer e Jair Bolsonaro, que deixaram um
rastro de sabotagens contra o trabalho, o patrimônio estatal e os valores do
Estado de direito democrático. “Jamais houve tamanho desarranjo institucional
com tanto dinheiro público, em tão poucos anos”, denuncia com coragem e zelo o
ex-governador do Maranhão e atual ministro do STF.
Em 20 de agosto, uma nota conjunta entre os poderes é
assinada. Prega que emendas de comissões temáticas do Congresso seriam
“destinadas a projetos de interesse nacional ou regional, definidos por um
acordo entre Legislativo e Executivo”. As emendas estaduais seriam “destinadas
a projetos estruturantes em cada estado e no Distrito Federal, de acordo com a
definição de bancada, vedada a individualização”. Aprova-se a Lei Complementar
210, com as novas regras. O Brasil está vivo.
Flávio Dino libera o pagamento com algumas condições
para garantir maior lisura, na execução dos recursos do Erário. Contudo, A lei
sancionada transfere prerrogativas de comissões às lideranças dos partidos que,
pela natureza do cargo, estão próximas ao presidente da “Casa do Povo” e não
prevê a identificação do deputado e do senador que pedem repasse ao líder
partidário. As nuvens pairam sobre o acordado, em letra miúda. A indecência
saiu por uma porta, e retornou por outra.
O mandachuva simulou a concertação frente evidências de
fraude; descumpriu o acordão; e agora trama uma vingança. Em retaliação, ameaça
o pacote fiscal de Fernando Haddad que, por seu turno, bloqueia a valorização
do salário mínimo e cria barreiras à concessão dos Benefícios de Prestação
Continuada, que beneficiam os setores sociais mais vulneráveis. As medidas
atendem às exigências descabidas das finanças, em contradição com o projeto de
um país mais justo e igualitário. Indica uma capitulação ao capital financeiro.
A frase de Otto von Bismarck (“Salsichas e leis, melhor o povo não saber como
são feitas”) não se coaduna com a transparência desfraldada por progressistas.
<><> A
política como droga
A imprensa neoliberal admite: “Ao ser um atalho para as
reeleições, a farra das emendas produziu uma droga política altamente aditiva.
Seu usuário precisa cada vez mais de recursos, sua abstinência pode lhe custar
a carreira. Por isso, o empenho desesperado de Câmara e Senado em manter o
fluxo constante e crescente da droga eleitoral”, diz um prócer do Fórum Mundial
de Editores (!?) Marcelo Rech (Zero Hora, 6 e 7/12/2024).
Mas a crítica alça um desajeitado voo de galinha; rente ao chão.
O governo é chantageado com cinismo aos olhos da mídia
corporativa, que não transforma o fato em um escândalo político-midiático.
Assaltantes são tratados de doentes irresponsáveis pelos atos. Os meios de
comunicação tentam salvar a suja reputação com platitudes. Não fiscalizam
adeptos do dogma neoliberal. Sem a tampa do boeiro, criaturas do subterrâneo se
põem acima da Constituição. A governabilidade balança no Parlamento, cuja
maioria se conduz com despudor ao se debruçar nos cofres da nação; já raspados
pelo rentismo em R$ 869,3 bilhões, sendo R$ 111,6 bilhões livres de impostos só
no mês de outubro do corrente. Um pequeno corte de 1% na taxa de juros do Banco
Central economizaria R$ 55,2 bilhões nos gastos públicos. Isso, a Rede
Globo oculta
dos crédulos.
Arthur Lira et caterva representam
uma barreira fisiológica à democracia, por reproduzir a lógica do “homem
cordial” que prioriza e privilegia o círculo familiar e de amizades, recusando
submeter-se ao consenso pactuado para legislar e governar os comuns. O
patrimonialismo orienta ainda a mentalidade das elites, de rapina. Daí a
oportuna sugestão do poeta: “Verifica a conta: / És tu que a pagas. / Põe o
dedo em cada parcela. / Pergunta: Como aparece isto aqui? / Tens de tomar a
chefia”.
Outrossim, a Advocacia-Geral da União argumenta que a
lei alinhavada é o suficiente, pautada no realismo maquiaveliano da “verdade
efetiva das coisas” (la verità effetualle della cosa). Isto é, na
“análise concreta da realidade concreta”, dada a correlação de forças. O preço
da negociação é o custo menor, de parte a parte. Os medalhões sabem o poder que
têm; o governo necessita de votos para aprovar as políticas sociais. O
Executivo e o Legislativo buscam um compromisso recíproco. Se o Judiciário
rejeita o pedido da AGU, dispõe de mais autonomia para resolver a
conflitualidade.
A militância de esquerda sabe que avança entre as
pedras do atraso, para socialização de uma nova concepção de sociedade. Sabe
que a disputa política não é um filme épico com o desenlace em uma explosão; na
democracia, é uma série de streamings com várias
temporadas e final num suspiro de alívio. Sabe que a conjuntura requer a
acumulação de energias e a organização do bloco histórico-político.
Mas sabe também que é preciso empatia com o sofrimento
da população. Os combates à crise social e ambiental junto do fortalecimento
dos Brics revigoram os movimentos por mudanças. Que o sonho brasileiro não
tenha sobressaltos e, o abutre, não substitua o peru tradicional de Natal.
Fonte: Brasil de
Fato/Brasil 237/A Terra é Redonda
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