quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Vinicius Carrilho Martinez: Soberania intempestiva

Se olharmos do presente ao passado relativamente próximo veremos que a morte decretada do Estado, da soberania, das instituições e processos de institucionalização pública – declamada nos anos 1990, com a globalização – não se deu como prevista. Essa decretação não ocorreu ou não teve o alcance projetado – mesmo que se interponha a atual existência de um verdadeiro Estado-plataforma, privatizado, albergado, convertido à monetização e ao capital financeiro.

Temos um exemplo claro e instigador na disputa entre o Supremo Tribunal Federal e Elon Musk, e toda a cadeia de queda de braços entre o magnata do mundo digital e as instituições brasileiras. Na nossa avaliação, dentro do escopo deste trabalho, as instituições de legitimidade se provaram mais uma vez – assim como ocorrera no famoso dia 8 de janeiro de 2023, e nos dias que se seguiram até o presente do processo judicial que investiga os principais crimes contra o Estado democrático de direito no Brasil.

O que nos inclina a retomar um pouco da história em torno da soberania (como conceito clássico) e a formação das instituições subsequentes, notoriamente, as fundações do Estado de direito. Então, retrocederemos brevemente para, por fim, retornar ao presente, que denominamos de Estado de direito de terceira geração.

Jean Bodin descreveu a necessidade da soberania, seguido de Thomas Hobbes – passando, é óbvio, pelo esforço de Nicolau Maquiavel –, diante da necessidade de organização e centralização do poder político (Estado). Jean Bodin (1530-1596), refere-se a um domínio forte e de proteção (Bodin, 2011, p. 196), (a última razão dos reis como prima ratio) agindo sobre seu povo.

Para Thomas Hobbes, o poder é consistente aos meios para alcançar vantagens:

i)            Como domínio sobre o outro ou sobre a natureza;

ii)           Como posse sobre os meios para se obter vantagens;

iii)          Para estabelecer relação entre súditos e Estado: comando e obediência.

Para Thomas Hobbes (1588-1679), é preciso ter regras claras que operacionalizem ou condicionem a soberania. Desse modo, em Thomas Hobbes, o Estado é o Leviatã, um monstro bíblico, uma fortaleza sobre-humana capaz de subjugar a todos os indivíduos, graças a sua força descomunal.

Essa fase histórica poderia ser denominada como a grande era das tecnologias do poder, uma vez que o aparato estatal acompanha o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. É o Renascimento, um marco histórico europeu que compreende os séculos XIV até meados do século XVI, com destaque para: Acumulação Primitiva (Marx, 1991): Rota da Seda – expropriação dos camponeses:

a)   O mito do Fausto (Solar, 2003) – Capitalismo;

b)   Expansão ultramarina;

c)    Unificação do poder, Centralização do poder, Organização do poder (Maquiavel, 1979);

d)   a Ciência moderna: empirismo (Bacon, 2005); Tecnologias e desenvolvimentos: aprimoramento da bússola; Heliocentrismo (Galileu, );

e)   Invenções: a prensa de Gutemberg: da prensa à imprensa. 

De certo modo, esta seria a base de confluência com o Estado Moderno clássico.

·        Soberania e Estado de direito

Bem-feitas as contas, há um sentido em afinar a insurgência do Parlamentarismo a par da soberania, com os editos do Rei João Sem Terra, em 1215 – impondo-se as primeiras limitações do manejo do poder. Fenômeno que, futuramente, seria denominado de Liberdade Negativa – menos espaço de ação ao poder soberano, maiores garantias à cidadania. O pacto constitucional, em si, viria a partir da unificação territorial alemã – conhecido também pelo Mito de Armínio – e ao seguinte Tratado de Vestfália (século XVII).

Com o Estado de direito iria se assegurar a divisão ou separação (tripartite) das funções e dos poderes institucionais, os direitos individuais e a soberania. Desse complexo ainda iriam emergir temáticas tão atuais quanto no passado:

1)   Monopólio do uso legítimo da força física, violência institucional (Weber, 1985);

2)   o Estado como “a instituição pública” (por excelência, superveniente às demais; a trindade entre povo, território, soberania;

3)   o Estado como a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território) (Dallari, 2012, p. 122).

Seria uma primeira fase também do Estado Constitucional e da necessidade de se afirmar as garantias jurídicas na Constituição: “O Estado Constitucional implica um comprometimento do Estado administrador pelos órgãos legisladores, um “auto-comprometimento do Estado”, e, como sua consequência, direito dos súditos contra o Estado como tal, “direitos subjetivos, públicos” (Radbruch, 1999, p. 167-168).

Na segunda fase do Estado de direito (Estado de direito de 2ª geração), já no século XX, além do nazismo e do fascismo, o final da Segunda Grande Guerra trará os marcos jurídicos também de outra forma de se tratar a soberania – mormente a fim de que os desvarios do poder soberano não mais alçassem as dimensões genocidas: a determinação do direito internacional, no mesmo contexto do Tribunal de Nuremberg, foi decisiva.

Ali se firmou o Estado Democrático, com fundação da ONU (1946), a Proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Constituição de Bonn (Alemanha de 1949), o surgimento da TV – a insurgência do chamado Estado Sedutor (Debray, 193) – a retomada da Máquina de Turing e a viagem à lua (com um 386). Dessa fase para cá, podemos dizer o Estado de direito democrático (2ª geração do Estado de direito) tem aproximadamente quatro décadas. Trata-se do Estado de justiça, como definido por Elías Díaz. Trata-se, ainda, da racionalidade aplicada ou construída em torno do fenômeno político é essencial para entendermos o Estado Moderno. Esta perspectiva costuma ser demarcada a partir do pensamento de Max Weber (1979), mas pode/deve ser visto em autores como Maquiavel (com seu peculiar realismo), Hobbes, Vico.

Juridicamente, num outro salto do conceito, temos as bases da Constituição Espanhola (1972), mais formalista, afastar-se do franquismo e traçar outro limite ao poder soberano, ou seja, ampliar a liberdade negativa. Do mesmo modo, guiados pela Revolução dos Cravos (1974), destituindo-se o salazarismo, os patrícios edificaram a Constituição Portuguesa (1976): mais socialista. Temos assim outras construções institucionais, como a unificação conceitual entre democracia, Estado de direito e divisão dos poderes: República e Federação, e vedação do direito de secção.

Se estendermos o pensamento jurídico para o lastro do Estado democrático de direito, então, deveremos salientar alguns elementos complementares: predomínio dos direitos público-subjetivos; publicidade; responsabilidade; legitimidade; salus publica – saneamento da estrutura do Estado (contas públicas) implica em melhoria da saúde pública do Estado e do povo. Sob os auspícios do Estado de direito se entenda que a autonomia e a soberania serão condicionadas por autolimitação e heterolimitação.

Esta capacidade jurídica que assegura ao Estado agir conforme claros preceitos jurídicos indica a necessidade de retomarmos as principais teorias da personalidade jurídica:

(a) teoria que somente reconhece como pessoa o homem e nega ao Estado a personalidade jurídica;

(b) teoria que só admite para o Estado a personalidade jurídica, mas lhe nega a essência de pessoa moral;

(c) teoria que reconhece o Estado como pessoa moral e jurídica;

(d) teoria que personifica também a nação (variante francesa) e define o Estado como a nação juridicamente organizada (Azevedo, 2009, p. 102).

O poder regulado, sem dúvida, significa que se reconhecem, mutuamente e concomitantemente, o poder político (Estado) e o poder jurídico (Estado-Juiz). Nesta junção que seria, também, a congratulação entre legitimidade e legalidade. Pela capacidade jurídica, lê-se que todo homem é capaz de suportar direitos e obrigações. Por competência, entende-se o poder jurídico atribuído pela pessoa jurídica a seus órgãos; é uma delimitação do raio de ação. Ou seja, ambas referem-se à limitação da soberania política (restritiva ao Estado) e extensão da soberania jurídica (expansiva dos direitos, garantias, liberdades e também das responsabilidades).

Também é uma forma de se entender a comunicação necessária entre poder legal e poder legítimo. Não é que advenha daí, mas, certamente, após essa construção institucional o princípio democrático ganhou uma relevância inusitada. O Estado democrático retorna como tema a partir da Revolução Mexicana (década de 1910) e com a democracia popular soviética (Revolução Russa): “socialização do direito: direitos sociais e trabalhistas”. Contudo, na democracia não há poder, nem direito ilimitado. A soberania popular é regrada, baseada em leis e melhorias das “relações e representações sociais”.

A soberania popular:

1)   Refere-se ao exercício máximo do poder, como soberania política;

2)   agrega-se aos direitos sociais de todos os tipos (os que já existem e os que poderão vir a ser criados – Welfare State);

3)    acrescente-se a liberdade negativa (mais próxima do liberalismo clássico);

4)   entenda-se como garantia contra o abuso do Estado ou do poder de outros.

Liberdade positiva é ver-se livre para fazer algo. É a liberdade positiva que se associa à ideia de direito que deve ser formalmente estabelecido. Precisa ser garantida concretamente para o exercício ou fruição desse direito. (Na França, por exemplo, a greve é uma liberdade: não está nos códigos. Mas, paga-se pelos abusos como cidadão).

Por fim, de volta ao século XXI, nos encontramos no momento em que a soberania é ameaçada, tanto quanto se apresenta a tese urgente de uma soberania digital. E isto se dará num encontro com o Estado de direito democrático de terceira geração ou Estado democrático de direito internacional, com seus atributos preditivos mais ou menos visíveis.

Neste momento do século XXI estamos refletindo não apenas sobre a possibilidade de a soberania já ser algo bem remoto – dado o fluxo de poderes autocráticos, hegemônicos em voga. Para além disso ou em concomitância ao desmoronamento das certezas contidas na Razão dos Reis, a emancipação, como integridade humana, está em curso com algum inesperado retrocesso – nossa práxis precisa ser calibrada, revista diuturnamente, enquanto capacidade individual e social de aproximar e transformar a própria reflexão em ação.

Tendo-se em mente que a práxis é a transformação da pratica (hábitos, ações involuntárias ou repetitivas) em ações decisivas. Uma prática consciente, essa ultrapassagem da “atitude habitual”, dos hábitos, é um dos desafios para lidarmos com o avanço digital ou abuso tecnológico. Portanto, não basta denunciar, é preciso pronunciar, no sentido de que a reflexão se converta em ação.

 

¨      Chuck Collins: Você pode ter bilionários ou democracia

Com tanta atenção pública fixada nos magnatas das big techs, pode ser fácil esquecer que um tipo historicamente mais típico de riqueza extrema — o dinheiro antigo — ainda está firme e forte. Como um novo relatório publicado pelo Institute for Policy Studies [Instituto para Estudos Políticos] (IPS) deixa claro, na verdade, ela está mais forte do que nunca: as luxuosas dinastias estadunidenses aumentaram exponencialmente suas fortunas desde o início dos anos 1980 — e as alavancaram para que pudessem continuar a crescer perpetuamente.

O especialista em desigualdade Chuck Collins é um dos principais autores do novo estudo do IPS “Silver Spoon Oligarchs: How America’s 50 Largest Inherited-Wealth Dynasties Accelerate Inequality” [Oligarcas da Colher de Prata: Como as 50 Maiores Dinastias de Riqueza Herdada dos Estados Unidos Intensificam a Desigualdade]. Collins falou com Luke Savage, da Jacobin, sobre as descobertas de sua equipe e a extensão impressionante que as leis e estruturas regulatórias atuais permitem à riqueza extrema para que ela se perpetue ao longo das gerações.

LEIA A ENTREVISTA:

·        Uma frase que se destaca no seu relatório é “o novo feudalismo”, que pretende fazer uma distinção entre um tipo de bilionários, sobre os quais as pessoas tendem a ouvir ou ler, e um outro mais dinástico. Quais foram algumas das suas principais descobertas?

CHUCK COLLINS - Há um foco compreensível nos bilionários de primeira geração — os Bezos e Musks — e seus crescentes ganhos de riqueza durante a pandemia. Mas a América também tem crescentes e persistentes “dinastias de riqueza”: famílias de riquezas herdadas multigeracionais. Há cinquenta famílias dinásticas que conhecemos nos Estados Unidos, com uma riqueza combinada de US$ 1,2 trilhão. Provavelmente há trilhões a mais escondidos em fundos e contas offshore. As vinte e sete famílias mais ricas que eram bilionárias em 1983 viram sua riqueza aumentar mais de 900% nos últimos trinta e sete anos.

É interessante ver como a segunda e a terceira geração, os herdeiros, investem agressivamente na “defesa da riqueza” — fazendo lobby para acabar com o imposto sobre herança, criar fundos fiduciários e esconder riquezas no exterior.

Essas famílias ricas de bilionários estão menos focadas em começar negócios e mais em “construir dinastias” e extrair renda — passando riquezas por várias gerações de uma forma neofeudal. Com esse sistema sendo solidificado, os bilionários de hoje serão as famílias dinásticas de amanhã. Se o padrão persistir por vinte anos na trajetória atual, teremos concentrações ainda maiores de riqueza hereditária e poder dominando nossa política, economia, mídia e filantropia. Parece feudalismo, cheira a feudalismo.

·        Um dos grandes aceleradores da riqueza bilionária nas últimas décadas tem sido, obviamente, a política tributária. Mas seu relatório também detalha uma série de outros impulsionadores significativos da riqueza dinástica, incluindo alguns métodos e brechas menos conhecidos. Além das isenções fiscais, o que você diria que impulsionou/possibilitou esse boom histórico em fortunas de dinheiro antigo?

CC - Sim, cortes de impostos são apenas parte da história. Esses bilionários contratam o que o sociólogo Jeffrey Winters chama de “indústria de defesa da riqueza” — advogados tributários, contadores, gestores de patrimônio — para descobrir maneiras de sequestrar e esconder riqueza para que ela nem apareça perto de uma declaração de imposto de renda. Eles apostam em um jogo de azar global de transferência de ativos entre empresas de fachada anônimas, fundos fiduciários e centros bancários offshore. Colocam bilhões em “fundos dinásticos” que são formados em lugares como Dakota do Sul, onde o estado eliminou as regras para limitar a vida útil dos fundos fiduciários e outros arranjos legais.

Falando em feudalismo, Dakota do Sul revogou sua “regra contra perpetuidades”, uma medida antifeudalismo na lei comum para impedir que os ricos falecidos dominassem os vivos ao proibir contratos, arrendamentos e fundos de durar eternamente. Ao aboli-los, esses estados estão efetivamente permitindo que os fundos existam por séculos — mantendo a riqueza longe da tributação e da responsabilização. Daqui a cem anos, alguns desses fundos podem deter trilhões de dólares, ativos que nunca foram tributados.

·        A questão da desigualdade é obviamente moral e ética. Mas, em última análise, é também uma questão democrática. Seu estudo oferece alguns exemplos bem assustadores de riqueza dinástica sendo deliberadamente usada como arma para fins políticos.

CC - O que torna esses bilionários verdadeiros oligarcas não é apenas sua riqueza substancial, mas também como eles empregam seu poder, incluindo suas doações de caridade. Nós documentamos muitos exemplos de como eles usam tanto suas doações políticas quanto sua filantropia (subsidiada pelo contribuinte) para promover uma agenda egoísta de redução de impostos.

Um exemplo emblemático vem à mente. A família dos doces Mars, Inc. viu sua riqueza aumentar em 3.500% desde 1983, de US$ 2,6 bilhões ajustados pela inflação para US$ 94 bilhões em 2020. Nas últimas duas décadas, a família gastou milhões fazendo lobby para abolir o imposto federal sobre herança, o único imposto sobre a riqueza herdada de multimilionários e bilionários. Eles também fizeram lobby com sucesso para abolir o imposto sobre herança na Virgínia, onde vivem.

Este é um estudo de caso do comportamento oligárquico: usar sua riqueza para simplesmente abolir uma lei da qual você não gosta. Eles gastaram milhões para economizar bilhões.

·        Além de analisar a escala e os impulsionadores da riqueza dinástica, seu relatório também oferece algumas propostas modestas para lidar com isso e controlá-la. Deixando de lado a difícil questão de como diabos o Congresso poderia ser forçado a legislar algumas dessas questões, quais políticas específicas você acha que seriam necessárias para acabar com ou enfraquecer significativamente o poder dessas dinastias?

CC - Algumas coisas podem acontecer. O governo Biden tem se concentrado na fiscalização para reconstruir a capacidade do IRS de monitorar os jogos de fachada fiscais dos super-ricos. Nenhuma de suas propostas para aumentar os impostos sobre os ricos funcionará a menos que eles façam isso e fechem esse sistema de riqueza oculta.

No final de 2020, o Congresso aprovou o Corporate Transparency Act para exigir que as corporações revelem seus verdadeiros proprietários beneficiários ao Departamento do Tesouro (foi anexado ao National Defense Authorization Act). Ativistas da transparência tributária agora estão trabalhando para garantir que essa lei tenha força — e para acabar com as isenções para trusts e parcerias.

O esforço para aprovar um imposto de renda corporativo mínimo global liderado pela Secretária do Tesouro, Janet Yellen, exigiria relatórios fiscais de todos os países. Então, uma empresa global como a Apple teria que divulgar todos os países onde paga impostos e quanto paga. A maioria dos outros países do G20 tem esperado que os Estados Unidos parem de ser o elo fraco e façam parte dos esforços globais de transparência fiscal, então isso poderá abrir muitas possibilidades.

Todas essas reformas poderiam ser interrompidas pela poderosa classe bilionária. Mas também vale a pena notar que o sistema está quebrando tanto por fora quanto por dentro. Há desertores e delatores dentro dessas empresas de “defesa de riqueza” que estão vazando dados e nos ajudando a completar nosso quadro. Isso poderia gerar embaraços e criar ainda mais pressão para mudanças mais significativas, como abolir certos tipos de trusts que existem com o único propósito de obscurecer a propriedade.O senador Bernie Sanders propôs uma legislação para reformar o imposto sobre herança que inclui um monte de disposições para fechar brechas e fundos de riqueza ocultos. Ele e sua equipe receberam ajuda de advogados de imposto sobre herança que estavam cansados ​​de ajudar os ricos e estão ajudando a escrever as novas leis para acabar com a evasão fiscal deles.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Jacobin Brasil

 

Nenhum comentário: