José Dirceu: Um Brasil evangélico ou vários brasis
Tornou-se um mantra da direita e uma espécie de autoflagelo da
esquerda dizer que o campo progressista se comunica pouco, e mal, com o
segmento evangélico. Essa crítica costuma ganhar ainda mais amplitude em
períodos eleitorais, como o encerrado em outubro deste ano, ou quando pesquisas
de opinião registram afastamento do campo evangélico em relação ao governo do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Seja como for, muitas das análises são contaminadas por uma
mistura perigosa de desinformação, preconceito e má-fé ante o crescimento
vertiginoso do número de fiéis evangélicos, da multiplicação dos templos
evangélicos e do crescente poder de representação evangélica no Congresso.
Contra essa contaminação e em favor de uma nova forma de olhar o “Brasil
evangélico”, tenho dito sempre que posso em conversas privadas e falas
públicas: precisamos urgentemente parar de nos dirigirmos aos “evangélicos”
como se fossem um país à parte, de olhares, natureza e motivações que se
restringem à religião que praticam.
Parece um contrassenso fazer esse chamado diante dos números. Na
década de 1970, evangélicos representavam apenas 5% dos brasileiros, eram 22%
em 2010, segundo o Censo do IBGE, e hoje especialistas sugerem que abrangem um
terço da população adulta. Havia cerca de 17 mil templos evangélicos em 1990,
número que, em 2019, saltou para quase 110 mil, aumento de 543%, de acordo com
pesquisadores da USP – boa parte desses estabelecimentos está longe da imagem
dos mega templos com pastores super ricos, são espaços pequenos próximos às
casas dos fiéis e com participação ativa na vida comunitária. Em suma, a malha
evangélica é a força propulsora da religiosidade nacional, enquanto a outra
parcela cristã, que por séculos reinou soberana sobre a fé brasileira, encolhe
ano a ano. Caso mantenham o ritmo, a partir de 2032 evangélicos ultrapassarão
católicos, abrindo caminho para que, em poucas décadas, possam sobrepujar a
identidade católica que predominou no país.
Mesmo diante dessas evidências, insisto: precisamos parar de nos
dirigirmos aos “evangélicos” apontando o dedo para eles e para sua religião
como causa explicativa para fenômenos políticos e partidários. Primeiro porque
historicamente somos uma nação cristã – e não deixamos, nem provavelmente
deixaremos de sê-lo. Segundo porque ninguém aponta para eleitores e cidadãos
católicos como o fazem para evangélicos. Terceiro, porque essa vocação nacional
para ligar a religião à identidade política acaba atrelando sua visão, sobretudo
entre pentecostais e neopentecostais, a valores conservadores – algo que é de
real interesse exclusivo da extrema-direita, que de forma oportunista
instrumentalizou a fé, como se fosse a legítima representante dos interesses
cristãos, e de maneira malévola soube converter a esquerda na encarnação do
mal. Quarto, porque ao fazermos essa vinculação como algo homogêneo ou
uníssono, desprezamos a variedade de interesses, laços, realidades e
expectativas que esse segmento do eleitorado representa.
O Estado é laico, mas é inquestionável inclusive o direito de
cristãos evangélicos de fazer política, ter sua própria bancada e exercer sua
luta pelos meios institucionais e partidários – assim como fizeram e fazem
muitos cristãos católicos. (O que não se pode admitir é que combatam outras
religiões, especialmente aquelas de matriz africana como a umbanda e o
candomblé, mas esta é uma outra história.)
Se desprovidos de preconceito, constataremos que entrar para a
igreja evangélica significa, para muitos brasileiros mais pobres, melhorar suas
condições de vida, ascendendo socialmente, fortalecendo a autoestima, vencendo
o alcoolismo e a violência doméstica, adquirindo disciplina para o trabalho e
vendo crescer o investimento familiar em educação e cuidados com a saúde. Portanto,
tem menos a ver com pastores oportunistas e carismáticos e muito mais com a
influência das igrejas sobre a vida comunitária e sobre a melhoria das
condições de vida dos mais pobres – é uma aposta na espiritualidade e nos
valores, mas também uma forma de experiência com quem vive em seu entorno, nas
periferias, nas favelas e demais espaços das classes populares.
Se providos de informação, reconheceremos que está na base da
pirâmide mais evangélica uma população de maioria periférica, negra, feminina e
mais praticante da religião, num Brasil até bem pouco tempo de maioria católica
não-praticante. E que, portanto, se move a partir de questões reais de suas
vidas, por necessidades práticas do seu cotidiano e não apenas por fake news
espalhados pela extrema-direita oportunista, violenta e intolerante. Enxergando
assim, vemos que o “povo de Deus” tem muitas similaridades com o “povo de
Lula”, que esteve com o presidente e o PT em sucessivas eleições, como 2002,
2006, 2010 e 2014. Havia uma aspiração e uma consequência em comum: um governo
que se preocupava
E, por fim, se abdicamos da má-fé, lembraremos que, embora
estejamos falando de segmentos com posicionamentos cada vez mais conservadores,
também falaremos do quanto lideranças religiosas de amplitude nacional adotaram
o bolsonarismo como referência política e ideológica. Como pastores de intenção
questionável como Silas Malafaia têm espaço, força e voz para difundir suas
ideias, não-evangélicos acabam tomando a parte pelo todo. Se é verdade que o
bolsonarismo se amalgamou com o campo evangélico nos territórios, também é
verdade que, diferentemente do que muitos pensam, “valores” estão muito atrás
na lista de preocupações do segmento evangélico – ficam distante, por exemplo,
de problemas como “criminalidade e tráfico de drogas”, “corrupção” e questões
materiais como crescimento econômico, emprego e renda.
Não basta deixar de tratar evangélicos como um Brasil à parte ou
de ver evangélicos como fanático, conservador ou intolerante – eles existem,
sim, mas estão longe de ser maioria. Se no passado fizemos política com os
católicos, os bispos, as comunidades eclesiais de base e as pastorais
católicas, não podemos olhar com desconfiança quando partidos e lideranças
recorrem a lideranças e igrejas evangélicas como forma de atuação política. O
credo da esquerda é sincrético, e isso implica tanto desfazer preconceitos
quanto escolher adequadamente mensagens e mensageiros como forma de se conectar
com os diferentes segmentos, independentemente de suas religiões. A essência do
projeto progressista é combater as desigualdades, reduzir a pobreza e melhorar
as condições materiais da população, assim como entender suas expectativas e
valores. É, em síntese, estar ao lado do povo – como historicamente desejou a
esquerda, o PT e o presidente Lula. E as igrejas evangélicas estão.
Sair dos valores, terreno onde a visão pantanosa do bolsonarismo
prefere caminhar, e migrar para as condições reais – eis a missão do campo
progressista para os próximos anos. Não podemos lutar contra a fé das pessoas,
temas como aborto, casamento do mesmo sexo, entre outras, estarão
invariavelmente contaminados pela dimensão da fé e da religião. Um exemplo? Uma
das principais reivindicações das mulheres evangélicas é poder deixar o seu
filho na escola durante todo o dia. Essa reivindicação é acolhida pela educação
em tempo integral, uma das bandeiras do governo Lula. Há muitos outros
exemplos, que passam pelas condições de emprego e renda, pelo estímulo ao
empreendedorismo (não o empreendedorismo precarizado simbolizado pelos
aplicativos de delivery), pelo enfrentamento da criminalidade, por políticas
que desconcentrem a renda e a riqueza, e assim por diante. Não é tarefa
trivial, mas precisa ser iniciada imediatamente.
• No
que Malraux, Boulos e Brizola concordam. Por Rui Martins
Os intelectuais e políticos passam a vida fazendo longos
discursos e escrevendo longos textos, mas o grande público acaba guardando
apenas uma ou duas frases simbólicas, negadas por eles ou das quais não se
lembram. Frases geralmente fora de contexto, mas imortalizadas por terem sido
consideradas como previsões, vaticínios ou profecias. E para quem sabe
antecipar o futuro existe um enorme público de curiosos.
É o caso do francês André Malraux, escritor, combatente contra o
nazismo alemão durante a Ocupação da França e político francês, conhecido por
seu livro A Condição Humana, por ter lançado as bases da política cultural
francesa, logo depois da Segunda Guerra Mundial, e como ministro da Cultura.
Muitos atuais universitários não tiveram tempo para ler A
Condição Humana, A Esperança ou Os Conquistadores, mas conhecem ou já ouviram
falar da frase “O século XXI será religioso ou não será”. Existe um grande
debate sobre essa frase, que o próprio Malraux nega ter pronunciado, embora muitos
seus contemporâneos garantam ter ouvido. Alguns imaginam ter sido uma versão
paralela como “O grande problema do século XXI será religioso”.
Em todo caso, embora a religião em si não seja o centro dos
problemas mundiais atuais, ela está presente nas guerras no Oriente Médio e,
nas Américas, ela tem a força de decidir o resultado das eleições.
Me lembrei dessa frase apócrifa ou não de Malraux ao ouvir uma
entrevista de Guilherme Boulos para Mônica Bergamo, da Folha de São Paulo, logo
depois de sua derrota para a Prefeitura de São Paulo. Nela, ele dizia
textualmente “O risco é o do Brasil se tornar um Irã no sentido cultural e
social com o domínio do fundamentalismo monolítico e virar politicamente um
México pelos crimes, cartéis da política e assassinatos de gente da política”.
É interessante notar ter havido só essa frase sobre o
fundamentalismo monolítico cultural e social iraniano, numa entrevista de quase
uma hora. Boulos procurava explicar o porquê da derrota frente a um extrema
direita em expansão: “a extrema direita está construindo uma hegemonia de
pensamento nos setores populares, conquistando setores que já foram da
esquerda. Deixando uma sociedade de conquista de direitos por uma sociedade de
cada um por si”.
Ou seja, Boulos apontou o fundamentalismo monolítico cultural e
social, entrando nos setores populares da esquerda, sem nomeá-lo abertamente.
Esse crescimento da extrema direita faz o povo ignorar “minha casa minha vida,
mais empregos, crescimento econômico do país com redução das diferenças
sociais”.
Preferiu fazer referência ao Irã, por saber estar num terreno
minado, não sabendo se uma referência clara e direta poderia ser negativa e
contraproducente. E acentuou ser necessário reagir nas redes sociais e nas
ruas, para evitar o avanço da extrema direita.
Mas afinal o que é esse fundamentalismo monolítico cultural e
social, cujo nome não foi pronunciado? Os evangélicos, aos quais Lula acaba de
fazer um aceno com a criação do Dia Nacional da Música Gospel, no dia 9 de
julho. Os partidos de esquerda ainda não conseguiram encontrar o equivalente
para contrabalançar a influência e penetração das igrejas e congregações
evangélicas nas camadas pobres da população substituindo o discurso das
conquistas sociais pelas promessas bíblicas de melhor vida depois da morte.
E aí surge outro visionário como Malraux, que teria previsto o
retorno em força do islamismo e sua influência sobre a própria esquerda.
Trata-se do ex-governador do Rio de Janeiro e ex-candidato à Presidência,
Leonel Brizola.
Brizola também teve sua frase, hoje atual e profética na época:
“Se os evangélicos entrarem na política, o Brasil irá para o fundo do poço, o
país retrocederá vergonhosamente”. Como a frase de Malraux, existem dúvidas
quanto à origem da frase, mas Brizola, embora não praticante, era de origem
metodista.
Uma reportagem do Jornal do Brasil, publicada em 8 de setembro
de 1990, tem por título “Brizola cobra coerência de evangélicos”. Brizola
rompeu com Garotinho, evangélico presbiteriano governador do Rio e criticou a
participação de pastores evangélicos no seu governo e na equipe da
vice-governadora Benedita da Silva, evangélica da Assembleia de Deus.
O crescimento em número e em influência dos evangélicos conteve
o deputado federal do Psol Guilherme Boulos na sua análise de sua derrota à
Prefeitura e da perda de força da esquerda. Por enquanto, ao que se saiba, nem
o PT e nem a esquerda em geral encontraram um antídoto para deter o crescimento
da extrema direita apoiada nos evangélicos.
Fonte: Congresso em Foco/Observatório da Imprensa
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