quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Sergio Ferrari: Os grandes abutres do século XXI

Com uns vinte conflitos militares devastadores em todo o mundo, como o entre Rússia-Ucrânia ou o entre Israel-Palestina e Líbano, para citar os dois mais midiatizados, a questão-chave é: quem realmente se beneficia com a guerra?

Acima das especificidades, benefícios e repercussões geopolíticas de qualquer confronto militar, a grande indústria de guerra do mundo continua a ser a principal beneficiária. As receitas obtidas, em 2023, com a venda de armas e serviços militares das 100 maiores empresas do setor aumentaram em média 4,2% em relação a 2022, atingindo 632 bilhões de dólares – um valor muito superior ao que seria necessário para erradicar a fome no mundo. Três em cada quatro dessas empresas ampliaram suas receitas, uma recuperação significativa após o declínio médio que experimentaram em 2022.

Esse aumento foi registado tendencialmente em todo o mundo, embora tenha contabilizado números particularmente suculentos às empresas da Rússia e do Oriente Médio, como foi revelado, na primeira semana de dezembro, pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Stockholm International Peace Research Institute – SIPRI). Essa entidade internacional independente, com sede na capital sueca, dedica-se à pesquisa sobre conflitos, armamentos, controle de armas e desarmamento. Fundado em 1966, o SIPRI desde então fornece dados com base em informações públicas, análises e recomendações e continua sendo uma fonte de referência sobre o tema da guerra e da paz.

De acordo com Lorenzo Scarazzato, pesquisador do Programa de Gasto Militar e Produção de Armas do SIPRI, “2023 registrou um aumento significativo nas receitas de armas, e, provavelmente, essa tendência continuará em 2024”. Ainda assim, Scarazzato ressalta que essas “receitas das 100 maiores empresas de armas ainda não refletem totalmente a magnitude [real] da demanda, e muitas empresas iniciaram campanhas de contratação, sugerindo que estão otimistas sobre suas vendas futuras”.

·       Guerras mediatizadas e conflitos “ignorados”

O Relatório Alerta 2024!, publicado pela Escola de Cultura de Pau (Escola de Cultura da Paz), em Barcelona, contabilizou dezessete conflitos armados de alta intensidade em todo o mundo em 2023 (de um total de trinta e seis situações de conflito). Estes são definidos por seus altos níveis de letalidade (mais de mil mortes por ano), graves impactos na população, deslocamentos forçados maciços e graves consequências no território.

Essa organização, dedicada a analisar os confrontos bélicos, os direitos humanos e a construção da paz, bem como os conflitos Rússia-Ucrânia e Israel-Palestina, identifica confrontos militares de alta intensidade na Etiópia (em Amhara e em Oromia), em Mali, região do Lago de Chade (Boko Haram), no Sahel Ocidental, República Democrática do Congo (região oriental, com dois picos principais), na Somália, no Sudão, no Sudão do Sul, em Mianmar, no Paquistão, no Iraque, na Síria e no Iêmen. Em 2023, em quase metade dos casos registou-se um agravamento da situação. A grande maioria dessas trinta e seis situações de conflito está concentrada na África (18), na Ásia e no Pacífico (9).

·       Com nome e sobrenome

Quarenta e uma das 100 maiores empresas de produção e comercialização de armamentos estão localizadas nos Estados Unidos e, em 2023, declararam receitas de 317 bilhões de dólares, 2,5% a mais que em 2022. Desde 2018, as cinco empresas no topo do ranking mundial elaborado pelo SIPRI estão sediadas nesse país: Lockheed Martin, RTX, Northrop Grumman, Boeing e General Dynamics.

De acordo com o Instituto, a indústria europeia de armamento está “atrasada”. As receitas de armas das vinte e sete empresas sediadas no Velho Mundo (excluindo a Rússia) tiveram um faturamento de 133 bilhões de dólares em 2023, o que representa um aumento de apenas 0,2% em relação a 2022, o menor do mundo. A BAE Systems da Grã-Bretanha (sexta em importância); a transeuropeia Airbus (12), a francesa Thales (16), a inglesa Rolls-Royce (22) e a alemã Rheinmetall (26) estão entre as trinta primeiras. Mas Scarazzato argumenta que esse crescimento relativamente baixo não se deve à menor demanda, mas porque “os sistemas de armas complexos têm prazos de produção mais longos… [e, consequentemente] as empresas que os produzem reagem mais lentamente às mudanças na demanda”.

No entanto, vários produtores europeus registraram crescimento substancial em suas receitas, especialmente para munições, artilharia e sistemas de defesa aérea e terrestre, impulsionado pela demanda ligada à guerra Rússia-Ucrânia. Empresas da Alemanha, da Suécia, da Ucrânia, da Polônia, da Noruega e da República Tcheca, em particular, aproveitaram essa demanda. Por exemplo, a Rheinmetall, da Alemanha, aumentou sua capacidade de produção de munição de 155 milímetros e de seus tanques Leopard. Grande parte desses ganhos se deve a transações por meio de programas de intercâmbio circular, sob os quais os países que fornecem equipamentos militares à Ucrânia podem receber equipamentos de reposição de seus aliados.

O outro lado da moeda da guerra no Leste Europeu: as duas empresas russas incluídas no ranking das 100 maiores, a Rostec, empresa estatal que controla vários produtores de armas, em sétimo lugar, e a United Shipbuilding, no 41º lugar, aumentaram suas receitas em 40%, chegando a 25,5 bilhões de dólares. A maioria dos analistas, de acordo com o relatório do SIPRI, concorda que a produção russa de novos armamentos militares aumentou substancialmente em 2023, enquanto o arsenal existente passou por uma extensa renovação e modernização. Especificamente, mais caças, helicópteros, drones, tanques, munições e mísseis.

Os produtores de armas no Oriente Médio também experimentaram um crescimento de receita ligado aos conflitos em Gaza e na Ucrânia. Seis das empresas do ranking das cem mais importantes estão localizadas naquela região. Sua receita combinada cresceu 18%, para US$ 19,6 bilhões. Desde o início da guerra em Gaza, as três empresas israelenses no ranking ganharam US$ 13,6 bilhões, um recorde histórico para elas. Por sua vez, as três grandes empresas da Turquia registraram um aumento de 24%, crescimento impulsionado pelas exportações para a guerra na Ucrânia, bem como a determinação do governo turco em alcançar sua própria autossuficiência em armamentos.

Quando se trata da Ásia, as quatro empresas sediadas na Coreia do Sul (e que entram no ranking das 100 mais importantes) aumentaram suas receitas combinadas em 39%. Enquanto isso, as cinco principais empresas sediadas no Japão cresceram 35%. A NCSIST, única empresa taiwanesa no ranking, faturou 27% a mais que no ano anterior. As três empresas indianas no ranking aumentaram 5,8%. Quanto à China, as nove empresas que fazem parte do top 100 cresceram apenas 0,7%, seu menor aumento percentual anual desde 2019, devido à atual desaceleração econômica daquele país

·       As vítimas

Várias organizações internacionais estimam que até 2030 quase 600 milhões de pessoas ainda sofrerão com a fome em todo o planeta. Um estudo de novembro realizado por duas agências da ONU estima que acabar com a fome até essa data custaria cerca de US$ 540 bilhões. Ou seja, muito menos do que as receitas auferidas em 2023 pelas cem empresas mais importantes do setor de produção e comercialização de armas.

Uma grande parte das vítimas da fome vive em regiões dominadas por conflitos armados cruéis: da Palestina ao Sudão, passando pela República Democrática do Congo e Mali. Um relatório de outubro da Organização Não-Governamental Oxfam argumenta que a fome causada por conflitos armados ceifa até 21 mil vidas por dia em todo o mundo. Esse documento, intitulado Food Wars (Guerras Alimentares), analisou 54 países afetados por conflitos armados e constatou que eles concentram quase todas as 281 milhões de pessoas que atualmente sofrem de fome aguda. Da mesma forma, essa realidade de guerra tem sido uma das principais causas de deslocamento forçado, com um número recorde mundial de mais de 117 milhões de pessoas atualmente.

Armas matam. Somente em 2023, foram mais de 160 mil vítimas diretas em zonas de guerra. Além disso, as guerras causam fome e miséria extrema, que adicionam suas próprias cifras trágicas ao obituário global. Apesar desse drama, a corrida armamentista não para. E os benefícios disso são distribuídos, essencialmente, entre uma centena de grandes empresas de países que incentivam ou participam dessa fúria bélica: as grandes beneficiárias dos tiroteios planetários.

 

¨      A Europa toca os tambores da guerra. Por Flávio Aguiar

Um autêntico calafrio percorreu toda a Europa na semana passada. Noticiou-se com destaque que os governos da Suécia e da Finlândia divulgaram para seus cidadãos manuais sobre como proceder no caso de uma guerra contra terceiros. O governo sueco distribuiu pelo correio uma brochura de 32 páginas. O finlandês disponibilizou uma publicação online. Embora o nome não aparecesse, era óbvio que se tratava de uma guerra com a Rússia. A Suécia não tem uma fronteira terrestre com a Rússia. Há uma fronteira marítima entre ela e o enclave russo de Kaliningrado, espremido entre o Mar Báltico, a Lituânia e a Polônia. A Finlândia tem uma fronteira terrestre com a Rússia de 1.343 km.

Ambas mensagens abordam outras crises, como a ocorrência de pandemias, desastres naturais e ataques terroristas. Mas o destaque no noticiário foi para a guerra, graças à existência do conflito direto entre a Rússia e a Ucrânia, que tem o apoio da OTAN, que Suécia e Finlândia passaram a integrar há pouco tempo.

Tanto na Suécia como na Finlândia as instruções envolvem a manutenção de estoques de alimentos, água, remédios e dinheiro, a guarda de cartões de crédito, conselhos sobre como se manter informado através do rádio, a busca de abrigos coletivos no caso de ataques aéreos ou nucleares, como neles se comportar ou onde se proteger caso seja impossível chegar até eles. Logo no começo das instruções suecas, encontra-se a seguinte exortação patriótica: “Se a Suécia for atacada, nós nunca nos renderemos. Qualquer sugestão em contrário é falsa”.

Aos poucos surgiram informações complementares. Em ambos os casos, tratava-se de uma atualização de instruções anteriores. Também noticiou-se que outros governos, como os da Dinamarca e da Noruega, distribuíam instruções semelhantes. Nada disto atenuou o impacto midiático do clima de preparação para uma guerra.

Para engrossar o caldo, a Alemanha entrou na dança. A mídia do país noticiou a existência de um documento do Exército até então secreto, com mil páginas sobre a possibilidade e os desdobramentos de uma guerra com a Rússia. Entre outras coisas o documento prevê que a Alemanha se transformaria num imenso corredor por onde passariam centenas de milhares de soldados da OTAN – norte-americanos e outros. O país se transformaria no grande organizador logístico do fluxo de tropas, suprimentos e armas de variada espécie para o conflito. Outras informações vieram à tona. O exército está disponibilizando instruções específcas para empresários sobre como adequar suas empresas à circunstância de uma guerra, com destaque para a questão dos transportes.

Para compreender o impacto destas informações, deve-se levar em conta a moldura em que surgiram e alguns antecedentes. Concomitante a elas noticiava-se uma escalada de fato ou retórica em torno da guerra na Ucrânia e agora também em território russo, com a invasão da região de Kursk por tropas ucranianas. Noticiou-se a presença de tropas norte-coreanas em território russo, em apoio a Moscou. O governo Biden autorizou a utilização pela Ucrânia de mísseis de longo alcance contra território russo, e o fornecimento de minas terrestres contra veículos e pessoas para o governo de Kiev. Este anunciou que a Rússia lançara um míssil de longo alcance, capaz de levar uma ogiva nuclear, contra seu território. Moscou relaxou as normas para utilização de armas nucleares em caso de conflito, sobretudo se atacada por um país que tivesse o apoio de uma potência nuclear.

França, Alemanha e Polônia anunciaram estarem aumentando significativamente seus orçamentos militares. O exemplo pode ser seguido por outros países. Os Estados Unidos anunciaram o restabelecimento de mísseis em território europeu. A TV russa divulgou uma reportagem comentando quais cidades europeias poderiam ser alvo de ataques por mísseis de longo alcance. Não faz muito o governo Biden aumentou em 20% a presença de pessoal militar e conexo norte-americano no continente europeu, contingente que hoje passa de 120 mil, maior do que, por exemplo, todo o Exercito do Reino Unido.

Autoridades civis e militares alemãs já falaram abertamente que é possível haver uma guerra com a Rússia em cinco ou seis anos. Em suma, a Europa se prepara para a possibilidade da guerra. Políticos que admitem o risco usam com frequência o dito popularizado em latim, “si vispacem para bellum”, “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. Entretanto lembremos que o currículo europeu na matéria não é bom. Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos.

 

Fonte: Outras Palavras

 

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