terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Acordo UE-Mercosul: ‘assimetrias comerciais podem bloquear avanços’, diz especialista

O acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, que promete criar a maior área de livre comércio do mundo, está em seus momentos finais de negociação; após 25 anos de intensas discussões, os países do Mercosul — Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai — e a Comissão Europeia finalmente anunciaram, nesta sexta-feira (06/12), que chegaram a um consenso sobre o texto.

Com a finalização do acordo, a expectativa é que ele seja aprovado pelo Conselho de Ministros da União Europeia e pelo Parlamento Europeu, além de passar pela aprovação dos legislativos dos 27 países membros da UE, antes de ser formalmente implementado.

Para analisar os desdobramentos dessa nova etapa de negociação, Opera Mundi ouviu Leonardo Granato, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O especialista apontou que o cenário do acordo é “complexo e desafiador”, destacando que, embora o texto já tenha sido concluído, ele ainda dependerá de etapas formais para que sua implementação seja concretizada. Para ele, “essas tramitações, assim como as reivindicações da resistência europeia, já evidenciam o caminho das pedras em direção à aprovação e à implementação do acordo birregional”.

Granato também ressaltou um ponto crucial: “há ainda uma questão de fundo aqui que diz respeito a uma ordem mundial convulsionada e dividida em blocos antagônicos que se movimenta em direção muito mais de um comércio administrado do que em direção ao livre comércio”.

Para o professor, isso ajuda a entender por que, depois de anos de desinteresse, a União Europeia voltou seu foco para o Mercosul, especialmente diante do crescimento da presença chinesa na América Latina e da necessidade da UE em reforçar sua segurança industrial, tecnológica e energética.

No entanto, Granato levanta, ainda, uma preocupação sobre o impacto do acordo em países do Mercosul. Segundo ele, “os objetivos de descarbonização produtiva da Europa e a liberalização tarifária e não tarifária para produtos industriais convergem no fortalecimento da especialização em commodities por parte dos países do Mercosul”.

A pressão por commodities críticas e energia limpa, para ele, pode impactar diretamente a capacidade dos países da região em adotar políticas públicas que promovam a industrialização e a integração produtiva, uma vez que “as persistentes assimetrias comerciais e tecnológicas entre ambos os blocos provavelmente venham a dificultar qualquer margem de manobra nos países do Mercosul”.

¨      Os impactos para o Brasil e o seu bolso

acordo entre Mercosul e União Europeia terá impactos predominantemente positivos sobre a economia brasileira e o bolso do consumidor, caso seja de fato implementado, afirmam economistas e o governo brasileiro.

Os dois blocos anunciaram nesta sexta-feira (6/12), em Montevidéu (Uruguai), que chegaram a um acordo técnico, após 25 anos de negociação.

No entanto, ainda faltam etapas importantes para que o tratado seja assinado e entre em vigor, como a aprovação por duas instâncias que reúnem representantes dos países da União Europeia: o Conselho de Ministros e o Parlamento Europeu, sediados em Bruxelas, capital da Bélgica.

E a França — principal opositora da ideia devido ao receio do setor agropecuário francês com a entrada maior de produtos Mercosul — tenta barrar a aprovação articulando com outras nações que têm ressalvas ao tratado, como Polônia, Itália, Países Baixos e Áustria.

O acordo prevê a redução de tarifas de importação, que pode ser imediata ou gradual (em até 15 anos), a depender dos setores. Essa liberação vai atingir 91% dos bens que o Brasil importa da União Europeia e, do outro lado, 95% dos bens que o bloco europeu importa do Brasil.

Caso entre em vigor, o acordo vai alavancar alguns setores brasileiros (principalmente o agronegócio) e pode prejudicar outros, mas governo e economistas têm uma visão otimista sobre o saldo desse impacto para o crescimento do país.

Além disso, pode beneficiar o consumidor, com o potencial barateamento de produtos importados, como azeites, queijos, vinhos e frutas de clima temperado (frutas secas, peras, maçãs, pêssegos, cerejas e kiwis) — esse impacto, porém, vai ser gradual e pode ser compensando por outros fatores que afetam os preços dos produtos, como a taxa de câmbio, ressalta o economista Felippe Serigatti, pesquisador da FGV Agro.

Fernando Ribeiro, coordenador de estudos de comércio internacional do Ipea, também destaca bebidas e laticínios como itens que devem chegar a preços menores no Brasil.

"Talvez também tenha impacto no preço dos automóveis, dado que é esperado um potencial de aumento de importações nesse setor, mas vai depender da estratégia das montadoras [europeias com presença no Brasil]", disse ainda.

Mas Ribeiro ressalta que o principal impacto nos preços do consumidor será indireto, ao deixar a produção brasileira mais barata, devido à importação de máquinas e insumos a preços menores.

"E quando a gente vê os produtos cuja importação mais cresce [nas simulações sobre o impacto do acordo], são exatamente máquinas, equipamentos elétricos e outros itens usados como insumos para produção industrial", reforça.

<><>Agronegócio é o maior beneficiado

Um estudo divulgado no início deste ano pelo Ipea, com participação de Fernando Ribeiro, estimou que a economia brasileira teria um aumento acumulado de 0,46% entre 2024 e 2040, o equivalente a US$ 9,3 bilhões por ano, caso o acordo estivesse em vigor, refletindo o aumento das trocas comerciais e da entrada de investimentos.

Segundo esse estudo, haverá ganhos de produção em quase todos os setores do agronegócio e perdas concentradas em alguns setores industriais.

Com isso, os ganhos acumulados de produção no agronegócio seriam da ordem de US$ 11 bilhões, até 2040, enquanto o saldo da indústria da transformação seria mais modesto, com ganho de US$ 500 milhões no mesmo período.

Os destaques positivos no campo ficam por conta de "carnes de suíno e aves; outros produtos alimentares (que inclui basicamente pescado e preparações alimentícias); óleos e gorduras vegetais; e pecuária (gado em pé)".

Já na indústria, há projeção de quedas em setores como veículos e peças, têxteis, farmacêuticos e equipamentos eletrônicos, mas que seriam compensadas com o crescimento de outros setores, como calçados e artefatos de couro, celulose e papel, e outros equipamentos de transporte (tudo que não é automotivo, como aviões e navios).

"O saldo esperado é positivo. Quando analisamos, por exemplo, os setores que tendem a ter alguma perda de produção ou de emprego, são poucos setores e são setores que, em geral, não são grandes geradores de empregos, como o produtor de máquinas", exemplifica Ribeiro.

<><>Acordo tem proteções para setores vulneráveis

Segundo o economista Fernando Sarti, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o acordo negociado agora pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva tem mais vantagens para o Brasil do que o anunciado em 2019, com salvaguardas que limitam os impactos negativos em setores que a Europa é mais forte, como indústria automotiva e farmacêutica.

"Não tenho dúvida alguma de que o saldo é positivo para o Brasil", disse Sarti.

Em 2019, início do governo de Jair Bolsonaro, os dois blocos chegaram a anunciar um acordo, mas depois houve um congelamento das etapas finais de aprovação, em meio à piora das relações do Brasil com potências europeias.

Na ocasião, a expansão do desmatamento e o enfraquecimento das políticas ambientais aumentaram às resistências na União Europeia ao Acordo, nota o professor.

Isso acabou permitindo ao Brasil negociar novamente alguns pontos, ressalta, como incluir no acordo que as compras governamentais continuem favorecendo itens produzidos no país, seja por empresas brasileiras ou multinacionais.

A mudança, exemplifica, vai permitir que as compras licitadas para o Sistema Único de Saúde (SUS) permitam pagar mais por itens fabricados internamente, estimulando investimentos das empresas europeias para produzir aqui.

"Então, será possível usar o poder de compra do Estado para estimular esse setor. Hoje, nós não estamos falando só de remédio. Estamos falando de ti [tecnologia da informação], que está dentro da área da saúde. Nós estamos falando de equipamentos cada vez mais sofisticados", destaca.

Da mesma forma, pontua o economista, há salvaguardas no acordo para evitar uma enxurrada de importações no setor automotivo e estimular investimentos para a produção no Brasil.

Segundo o acordo, caso o aumento de importações afete a produção e o emprego na indústria de automóveis, o Brasil poderá suspender a gradual redução de tarifas prevista para as compras da Europa, ou mesmo retomar a alíquota aplicada a países de fora do acordo (hoje em 35%).

Para Sarti, a Europa aceitou essas condições para fazer frente à crescente presença chinesa no mercado automotivo brasileiro, setor que historicamente tem forte atuação de multinacionais europeias, como Fiat e Volkswagen.

<><>Produtos europeus vão substituir outras importações, diz Ipea

Segundo o estudo do Ipea, haverá crescimento importante da importação de produtos europeus no Brasil, mas a projeção é que a maior parte vai substituir artigos que importamos de outras regiões do mundo, como China.

Com isso, a instituição projeta que o impacto geral do acordo para a balança comercial brasileira ficaria próximo do zero a zero, ao considerar os efeitos acumulados entre 2024 e 2040.

"As exportações do Brasil para a União Europeia teriam aumento da ordem de US$ 10 bilhões, compensada por reduções modestas nas vendas para os demais países do Mercosul e o resto do mundo – ou seja, um desvio pouco significativo em termos absolutos", diz o estudo.

"O que não ocorreria do lado das importações: o crescimento de US$ 31,7 bilhões das compras brasileiras oriundas da União Europeia seria, em sua maior parte, compensado pela redução de US$ 21,1 bilhões das importações originárias do resto do mundo, além de uma queda de US$ 869 milhões das importações provenientes dos parceiros do Mercosul. Ou seja, cerca de dois terços do ganho com a União Europeia se daria em prejuízo de outros países", diz ainda o estudo do Ipea.

 

¨      Acordo entre Mercosul e União Europeia conforma Brasil a papel de 'fazendão', dizem analistas

Após 25 anos de tratativas, os países do Mercosul e a Comissão Europeia, responsável pelas negociações do bloco europeu, anunciaram que concluíram a versão final do acordo de livre comércio entre ambas as partes. O anúncio foi feito nesta sexta-feira (6) durante a 65ª Cúpula do Mercosul em Montevidéu, no Uruguai.

Além dos presidentes da Argentina, Javier Milei; Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva; Paraguai, Santiago Peña; e Uruguai, Lacalle Pou, o encontro contou ainda com a presença de Ursula von der Leyen, chefe da Comissão Europeia. A Bolívia, que entrou no Mercosul ano passado, ainda precisa adotar alguns protocolos normativos do bloco para aderir ao acordo com a União Europeia (UE).

Os países do Mercosul e da UE representam cerca de 25% da economia mundial e compreendem 718 milhões de pessoas. "O acordo entre o Mercosul e a UE é o maior acordo bilateral de livre comércio do mundo", ressaltou o Palácio do Planalto em nota.

O anúncio, contudo, não significa que o acordo foi assinado e ratificado pelos países. O texto será revisto e traduzido para as 23 línguas de cada país envolvido e será assinado pelo líder de cada governo. Depois, precisa ser ratificado pelo Legislativo de cada país.

No caso da UE, também deve ser aprovado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da UE, composto por ministros de cada área dos países.

Segundo a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), no curto prazo estima-se o aumento de pelo menos US$ 7 bilhões (R$ 42,5 bilhões) nas exportações brasileiras, aumentando a participação da UE no comércio internacional com o Brasil.

Nos últimos 20 anos, a parcela europeia nas exportações brasileiras caiu de 23% para 13,6%.

"Os 242 produtos que serão desagravados imediatamente ou em quatro anos representam hoje US$ 3,5 bilhões [R$ 21,25 bilhões] e 3,2% das importações europeias selecionadas. Se alcançarmos 10% de participação, o que é viável, dada a desgravação, estamos falando em US$ 7 bilhões em curtíssimo prazo", afirmou o gerente de inteligência de mercado da ApexBrasil, Igor Celeste.

Se por um lado Lula anuncia o encerramento das negociações como uma vitória de seu governo, assim diz também Ursula von der Leyen.

"Hoje, 60 mil empresas exportam para o Mercosul. Dessas, 30 mil são pequenas e médias companhias, que vão se beneficiar dos impostos reduzidos, de procedimentos mais simples e de acesso preferencial às matérias-primas", disse a presidente da Comissão Europeia.

À Sputnik Brasil, analistas questionam se no longo prazo o acordo trará tantos benefícios assim para a economia brasileira.

"É ruim para o Brasil", afirma à reportagem Patrícia Nasser, professora de economia política internacional na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Observatório de Regionalismo.

"Olhando para além do curto prazo, além de um simples resultado na balança comercial, o acordo vai favorecer um setor que já é forte no Brasil. Para a União Europeia, já exportamos muito produtos agrícolas, mesmo sem o acordo."

No longo prazo, afirma a pesquisadora, o temor é de que o país fique acomodado exportando carne, milho, soja, café e "não tenha estímulos para investir em outros setores que o Brasil está carente há muito tempo".

"Nada contra o setor agrícola do país, que já é bem forte e mecanizado, mas é o momento de o Brasil pensar em fortalecer a indústria, principalmente porque é um setor que daria mais oportunidades de emprego de alta qualificação, com cadeias de valor mais ampliadas", diz Nasser.

Em entrevista à Sputnik Brasil, Gilberto Maringoni, professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), declara uma opinião similar.

"Acordos de livre comércio favorecem sempre o mais forte", alerta o pesquisador. "Livre comércio é sempre a vantagem de quem tem maior produtividade em determinado ramo."

A partir disso, basta ver a disparidade entre as principais atividades econômicas dos países da UE e do Mercosul. São países que fizeram a quarta revolução industrial negociando com países agrícolas, destaca o pesquisador.

No entanto, o maior perigo não é nem que o Brasil continue como agroexportador, mas que o acordo de livre comércio seja danoso para a indústria brasileira existente.

Um dos pontos de contenção por parte dos países do Mercosul era a cláusula de compras governamentais, descrito por Maringoni como "o coração da demanda brasileira". A princípio, o tópico foi resolvido a partir da criação de reservas no Brasil para pequenas e médias empresas e produtores rurais em setores como saúde pública, tecnologia, inovação e desenvolvimento industrial.

Entretanto, "a questão não está clara", define o professor. Ao colocar nas licitações municipais e estaduais empresas europeias com alto grau de produtividade, capazes ainda de fazerem dumping em seus preços, corre-se o risco de eliminar de vez a indústria local.

"Você está colocando aqui empresas que têm condições de derrubar a média e pequena empresa de fornecimento local, do fornecimento regional para o Brasil."

<><>Ruim para o Brasil, mas bom para a Europa?

Se por aqui o acordo beneficiaria o agronegócio e teria o potencial de destruir a indústria brasileira, por lá, ao que tudo aponta, a situação é invertida.

A principal interessada na conclusão do acordo é a Alemanha, que vê sua indústria desabar frente ao alto custo de energia causado pelo conflito na Ucrânia. A situação fica ainda pior com a ascensão de Donald Trump à Casa Branca. O novo presidente dos Estados Unidos deseja reavivar a indústria norte-americana por meio de medidas protecionistas, como tarifas e importações.

Se isso acontecer, a UE se torna cada vez mais secundária para a política comercial dos EUA e, nesse sentido, o acordo com o Mercosul surge como uma boia de salvação para a indústria alemã ao entregar de bandeja um mercado consumidor.

"Nós vamos ser a tábua de salvação da indústria europeia e vamos nos conformar em ser um fazendão?", questiona Maringoni.

Por outro lado, países como França, Polônia e Países Baixos, que possuem um forte lobby do setor agrícola, veem com preocupação a potência agropecuária que é o Brasil. Em especial, o presidente francês, Emmanuel Macron, já se manifestou inúmeras vezes contra o acordo com o Mercosul.

São alegados inúmeros motivos, como regulamentações que os agricultores franceses devem seguir que os brasileiros não, como procedimentos sanitários e o uso de substâncias agrotóxicas e antibióticas que são liberadas no Brasil.

O imbróglio de interesses entre Alemanha e França — as duas maiores economias e as duas maiores populações da UE — deverá ser resolvido no Conselho da UE, entidade que reúne os ministros de cada área dos países. Nele, pelo Tratado de Lisboa, é necessário que 55% dos países, representando 65% da população, sejam a favor de uma legislação para ser aprovada.

Depois disso, o acordo precisa ser aprovado pelo Parlamento Europeu. Para Patrícia Nasser, tantas etapas assim abrem espaço para que a França e seus aliados contrários à invasão dos produtos agropecuários brasileiros protelem e até recusem o acordo. "O caminho é longo."

Esse tempo será essencial para que o país pense que tipo de desenvolvimento econômico quer.

Para o governo brasileiro, a resposta parece clara. Recentemente foram enviadas ao Congresso Nacional medidas de redução dos ganhos do salário mínimo, do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e do abono salarial. "Ou seja, de redução do poder de compra da população", afirma Maringoni.

"Há um movimento explícito de redução do mercado interno e de consolidar o Brasil como uma economia agro-primária exportadora."

 

Fonte: BBC News Brasil/Sputnik Brasil

 

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