Acordo UE-Mercosul: ‘assimetrias comerciais podem bloquear
avanços’, diz especialista
O acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, que promete
criar a maior área de livre comércio do mundo, está em seus momentos finais de
negociação; após 25 anos de intensas discussões, os países do Mercosul —
Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai — e a Comissão Europeia finalmente
anunciaram, nesta sexta-feira (06/12), que chegaram a um consenso sobre o
texto.
Com a finalização do acordo, a expectativa é que ele seja
aprovado pelo Conselho de Ministros da União Europeia e pelo Parlamento
Europeu, além de passar pela aprovação dos legislativos dos 27 países membros
da UE, antes de ser formalmente implementado.
Para analisar os desdobramentos dessa nova etapa de
negociação, Opera Mundi ouviu Leonardo Granato, professor de Ciência
Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O especialista apontou que o cenário do acordo é “complexo e
desafiador”, destacando que, embora o texto já tenha sido concluído, ele ainda
dependerá de etapas formais para que sua implementação seja concretizada. Para
ele, “essas tramitações, assim como as reivindicações da resistência europeia,
já evidenciam o caminho das pedras em direção à aprovação e à implementação do
acordo birregional”.
Granato também ressaltou um ponto crucial: “há ainda uma questão
de fundo aqui que diz respeito a uma ordem mundial convulsionada e dividida em
blocos antagônicos que se movimenta em direção muito mais de um comércio
administrado do que em direção ao livre comércio”.
Para o professor, isso ajuda a entender por que, depois de anos
de desinteresse, a União Europeia voltou seu foco para o Mercosul,
especialmente diante do crescimento da presença chinesa na América Latina e da
necessidade da UE em reforçar sua segurança industrial, tecnológica e
energética.
No entanto, Granato levanta, ainda, uma preocupação sobre o
impacto do acordo em países do Mercosul. Segundo ele, “os objetivos de
descarbonização produtiva da Europa e a liberalização tarifária e não tarifária
para produtos industriais convergem no fortalecimento da especialização em
commodities por parte dos países do Mercosul”.
A pressão por commodities críticas e energia limpa, para ele,
pode impactar diretamente a capacidade dos países da região em adotar políticas
públicas que promovam a industrialização e a integração produtiva, uma vez que
“as persistentes assimetrias comerciais e tecnológicas entre ambos os blocos
provavelmente venham a dificultar qualquer margem de manobra nos países do
Mercosul”.
¨ Os impactos para o Brasil e o seu bolso
O acordo entre Mercosul e União Europeia terá impactos predominantemente positivos sobre a economia
brasileira e o bolso do consumidor, caso seja de fato implementado, afirmam
economistas e o governo brasileiro.
Os dois blocos anunciaram nesta sexta-feira (6/12), em
Montevidéu (Uruguai), que chegaram a um acordo técnico, após 25 anos de
negociação.
No entanto, ainda faltam etapas importantes para que o tratado
seja assinado e entre em vigor, como a aprovação por duas instâncias que reúnem
representantes dos países da União Europeia: o
Conselho de Ministros e o Parlamento Europeu, sediados em Bruxelas, capital da
Bélgica.
E a França — principal opositora da ideia devido
ao receio do setor agropecuário francês com a entrada maior de produtos Mercosul — tenta barrar
a aprovação articulando com outras nações que têm ressalvas ao tratado, como
Polônia, Itália, Países Baixos e Áustria.
O acordo prevê a redução de tarifas de importação, que pode ser
imediata ou gradual (em até 15 anos), a depender dos setores. Essa liberação
vai atingir 91% dos bens que o Brasil importa da União Europeia e, do outro
lado, 95% dos bens que o bloco europeu importa do Brasil.
Caso entre em vigor, o acordo vai alavancar alguns setores
brasileiros (principalmente o agronegócio) e pode prejudicar outros, mas
governo e economistas têm uma visão otimista sobre o saldo desse impacto para o
crescimento do país.
Além disso, pode beneficiar o consumidor, com o potencial
barateamento de produtos importados, como azeites, queijos, vinhos e frutas de
clima temperado (frutas secas, peras, maçãs, pêssegos, cerejas e kiwis) — esse
impacto, porém, vai ser gradual e pode ser compensando por outros fatores que
afetam os preços dos produtos, como a taxa de câmbio, ressalta o economista Felippe
Serigatti, pesquisador da FGV Agro.
Fernando Ribeiro, coordenador de estudos de comércio
internacional do Ipea, também destaca bebidas e laticínios como itens que devem
chegar a preços menores no Brasil.
"Talvez também tenha impacto no preço dos automóveis, dado
que é esperado um potencial de aumento de importações nesse setor, mas vai
depender da estratégia das montadoras [europeias com presença no Brasil]",
disse ainda.
Mas Ribeiro ressalta que o principal impacto nos preços do
consumidor será indireto, ao deixar a produção brasileira mais barata, devido à
importação de máquinas e insumos a preços menores.
"E quando a gente vê os produtos cuja importação mais
cresce [nas simulações sobre o impacto do acordo], são exatamente máquinas,
equipamentos elétricos e outros itens usados como insumos para produção
industrial", reforça.
<><>Agronegócio é o maior beneficiado
Um estudo divulgado no início deste ano pelo Ipea, com
participação de Fernando Ribeiro, estimou que a economia brasileira teria um
aumento acumulado de 0,46% entre 2024 e 2040, o equivalente a US$ 9,3 bilhões
por ano, caso o acordo estivesse em vigor, refletindo o aumento das trocas
comerciais e da entrada de investimentos.
Segundo esse estudo, haverá ganhos de produção em quase todos os
setores do agronegócio e perdas concentradas em alguns setores industriais.
Com isso, os ganhos acumulados de produção no agronegócio seriam
da ordem de US$ 11 bilhões, até 2040, enquanto o saldo da indústria da
transformação seria mais modesto, com ganho de US$ 500 milhões no mesmo
período.
Os destaques positivos no campo ficam por conta de "carnes
de suíno e aves; outros produtos alimentares (que inclui basicamente pescado e
preparações alimentícias); óleos e gorduras vegetais; e pecuária (gado em
pé)".
Já na indústria, há projeção de quedas em setores como veículos
e peças, têxteis, farmacêuticos e equipamentos eletrônicos, mas que seriam
compensadas com o crescimento de outros setores, como calçados e artefatos de
couro, celulose e papel, e outros equipamentos de transporte (tudo que não é
automotivo, como aviões e navios).
"O saldo esperado é positivo. Quando analisamos, por
exemplo, os setores que tendem a ter alguma perda de produção ou de emprego,
são poucos setores e são setores que, em geral, não são grandes geradores de
empregos, como o produtor de máquinas", exemplifica Ribeiro.
<><>Acordo tem proteções para setores vulneráveis
Segundo o economista Fernando Sarti, professor da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), o acordo negociado agora pelo governo de Luiz
Inácio Lula da Silva tem mais vantagens para o Brasil do que o anunciado em
2019, com salvaguardas que limitam os impactos negativos em setores que a
Europa é mais forte, como indústria automotiva e farmacêutica.
"Não tenho dúvida alguma de que o saldo é positivo para o
Brasil", disse Sarti.
Em 2019, início do governo de Jair Bolsonaro, os dois blocos
chegaram a anunciar um acordo, mas depois houve um congelamento das etapas
finais de aprovação, em meio à piora das relações do Brasil com potências
europeias.
Na ocasião, a expansão do desmatamento e o enfraquecimento das
políticas ambientais aumentaram às resistências na União Europeia ao Acordo,
nota o professor.
Isso acabou permitindo ao Brasil negociar novamente alguns
pontos, ressalta, como incluir no acordo que as compras governamentais
continuem favorecendo itens produzidos no país, seja por empresas brasileiras
ou multinacionais.
A mudança, exemplifica, vai permitir que as compras licitadas
para o Sistema Único de Saúde (SUS) permitam pagar mais por itens fabricados
internamente, estimulando investimentos das empresas europeias para produzir
aqui.
"Então, será possível usar o poder de compra do Estado para
estimular esse setor. Hoje, nós não estamos falando só de remédio. Estamos
falando de ti [tecnologia da informação], que está dentro da área da saúde. Nós
estamos falando de equipamentos cada vez mais sofisticados", destaca.
Da mesma forma, pontua o economista, há salvaguardas no acordo
para evitar uma enxurrada de importações no setor automotivo e estimular
investimentos para a produção no Brasil.
Segundo o acordo, caso o aumento de importações afete a produção
e o emprego na indústria de automóveis, o Brasil poderá suspender a gradual
redução de tarifas prevista para as compras da Europa, ou mesmo retomar a
alíquota aplicada a países de fora do acordo (hoje em 35%).
Para Sarti, a Europa aceitou essas condições para fazer frente à
crescente presença chinesa no mercado automotivo brasileiro, setor que
historicamente tem forte atuação de multinacionais europeias, como Fiat e
Volkswagen.
<><>Produtos europeus vão substituir outras
importações, diz Ipea
Segundo o estudo do Ipea, haverá crescimento importante da
importação de produtos europeus no Brasil, mas a projeção é que a maior parte
vai substituir artigos que importamos de outras regiões do mundo, como China.
Com isso, a instituição projeta que o impacto geral do acordo
para a balança comercial brasileira ficaria próximo do zero a zero, ao
considerar os efeitos acumulados entre 2024 e 2040.
"As exportações do Brasil para a União Europeia teriam
aumento da ordem de US$ 10 bilhões, compensada por reduções modestas nas vendas
para os demais países do Mercosul e o resto do mundo – ou seja, um desvio pouco
significativo em termos absolutos", diz o estudo.
"O que não ocorreria do lado das importações: o crescimento
de US$ 31,7 bilhões das compras brasileiras oriundas da União Europeia seria,
em sua maior parte, compensado pela redução de US$ 21,1 bilhões das importações
originárias do resto do mundo, além de uma queda de US$ 869 milhões das
importações provenientes dos parceiros do Mercosul. Ou seja, cerca de dois
terços do ganho com a União Europeia se daria em prejuízo de outros
países", diz ainda o estudo do Ipea.
¨
Acordo entre
Mercosul e União Europeia conforma Brasil a papel de 'fazendão', dizem
analistas
Após 25 anos de tratativas, os países do Mercosul e a Comissão
Europeia, responsável pelas negociações do bloco europeu, anunciaram que
concluíram a versão final do acordo de livre comércio entre ambas as partes. O
anúncio foi feito nesta sexta-feira (6) durante a 65ª Cúpula do Mercosul em
Montevidéu, no Uruguai.
Além dos presidentes da Argentina, Javier Milei; Brasil, Luiz
Inácio Lula da Silva; Paraguai, Santiago Peña; e Uruguai, Lacalle Pou, o
encontro contou ainda com a presença de Ursula von der Leyen, chefe da Comissão
Europeia. A Bolívia, que entrou no Mercosul ano passado, ainda precisa adotar
alguns protocolos normativos do bloco para aderir ao acordo com a União
Europeia (UE).
Os países do Mercosul e da UE representam cerca de 25% da
economia mundial e compreendem 718 milhões de pessoas. "O acordo entre o
Mercosul e a UE é o maior acordo bilateral de livre comércio do mundo",
ressaltou o Palácio do Planalto em nota.
O anúncio, contudo, não significa que o acordo foi assinado e
ratificado pelos países. O texto será revisto e traduzido para as 23 línguas de
cada país envolvido e será assinado pelo líder de cada governo. Depois, precisa
ser ratificado pelo Legislativo de cada país.
No caso da UE, também deve ser aprovado pelo Parlamento Europeu
e pelo Conselho da UE, composto por ministros de cada área dos países.
Segundo a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e
Investimentos (ApexBrasil), no curto prazo estima-se o aumento de pelo menos
US$ 7 bilhões (R$ 42,5 bilhões) nas exportações brasileiras, aumentando a
participação da UE no comércio internacional com o Brasil.
Nos últimos 20 anos, a parcela europeia nas exportações
brasileiras caiu de 23% para 13,6%.
"Os 242 produtos que serão desagravados imediatamente ou em
quatro anos representam hoje US$ 3,5 bilhões [R$ 21,25 bilhões] e 3,2% das
importações europeias selecionadas. Se alcançarmos 10% de participação, o que é
viável, dada a desgravação, estamos falando em US$ 7 bilhões em curtíssimo
prazo", afirmou o gerente de inteligência de mercado da ApexBrasil, Igor
Celeste.
Se por um lado Lula anuncia o encerramento das negociações como
uma vitória de seu governo, assim diz também Ursula von der Leyen.
"Hoje, 60 mil empresas exportam para o Mercosul. Dessas, 30
mil são pequenas e médias companhias, que vão se beneficiar dos impostos
reduzidos, de procedimentos mais simples e de acesso preferencial às
matérias-primas", disse a presidente da Comissão Europeia.
À Sputnik Brasil, analistas questionam se no longo prazo o
acordo trará tantos benefícios assim para a economia brasileira.
"É ruim para o Brasil", afirma à reportagem Patrícia
Nasser, professora de economia política internacional na Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Observatório de Regionalismo.
"Olhando para além do curto prazo, além de um simples
resultado na balança comercial, o acordo vai favorecer um setor que já é forte
no Brasil. Para a União Europeia, já exportamos muito produtos agrícolas, mesmo
sem o acordo."
No longo prazo, afirma a pesquisadora, o temor é de que o país
fique acomodado exportando carne, milho, soja, café e "não tenha estímulos
para investir em outros setores que o Brasil está carente há muito tempo".
"Nada contra o setor agrícola do país, que já é bem forte e
mecanizado, mas é o momento de o Brasil pensar em fortalecer a indústria,
principalmente porque é um setor que daria mais oportunidades de emprego de
alta qualificação, com cadeias de valor mais ampliadas", diz Nasser.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Gilberto Maringoni, professor de
relações internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), declara uma
opinião similar.
"Acordos de livre comércio favorecem sempre o mais
forte", alerta o pesquisador. "Livre comércio é sempre a vantagem de
quem tem maior produtividade em determinado ramo."
A partir disso, basta ver a disparidade entre as principais
atividades econômicas dos países da UE e do Mercosul. São países que fizeram a
quarta revolução industrial negociando com países agrícolas, destaca o
pesquisador.
No entanto, o maior perigo não é nem que o Brasil continue como
agroexportador, mas que o acordo de livre comércio seja danoso para a indústria
brasileira existente.
Um dos pontos de contenção por parte dos países do Mercosul era
a cláusula de compras governamentais, descrito por Maringoni como "o
coração da demanda brasileira". A princípio, o tópico foi resolvido a
partir da criação de reservas no Brasil para pequenas e médias empresas e
produtores rurais em setores como saúde pública, tecnologia, inovação e
desenvolvimento industrial.
Entretanto, "a questão não está clara", define o
professor. Ao colocar nas licitações municipais e estaduais empresas europeias
com alto grau de produtividade, capazes ainda de fazerem dumping em seus
preços, corre-se o risco de eliminar de vez a indústria local.
"Você está colocando aqui empresas que têm condições de
derrubar a média e pequena empresa de fornecimento local, do fornecimento
regional para o Brasil."
<><>Ruim para o Brasil, mas bom para a Europa?
Se por aqui o acordo beneficiaria o agronegócio e teria o
potencial de destruir a indústria brasileira, por lá, ao que tudo aponta, a
situação é invertida.
A principal interessada na conclusão do acordo é a Alemanha, que
vê sua indústria desabar frente ao alto custo de energia causado pelo conflito
na Ucrânia. A situação fica ainda pior com a ascensão de Donald Trump à Casa
Branca. O novo presidente dos Estados Unidos deseja reavivar a indústria
norte-americana por meio de medidas protecionistas, como tarifas e importações.
Se isso acontecer, a UE se torna cada vez mais secundária para a
política comercial dos EUA e, nesse sentido, o acordo com o Mercosul surge como
uma boia de salvação para a indústria alemã ao entregar de bandeja um mercado
consumidor.
"Nós vamos ser a tábua de salvação da indústria europeia e
vamos nos conformar em ser um fazendão?", questiona Maringoni.
Por outro lado, países como França, Polônia e Países Baixos, que
possuem um forte lobby do setor agrícola, veem com preocupação a potência
agropecuária que é o Brasil. Em especial, o presidente francês, Emmanuel
Macron, já se manifestou inúmeras vezes contra o acordo com o Mercosul.
São alegados inúmeros motivos, como regulamentações que os
agricultores franceses devem seguir que os brasileiros não, como procedimentos
sanitários e o uso de substâncias agrotóxicas e antibióticas que são liberadas
no Brasil.
O imbróglio de interesses entre Alemanha e França — as duas
maiores economias e as duas maiores populações da UE — deverá ser resolvido no
Conselho da UE, entidade que reúne os ministros de cada área dos países. Nele,
pelo Tratado de Lisboa, é necessário que 55% dos países, representando 65% da
população, sejam a favor de uma legislação para ser aprovada.
Depois disso, o acordo precisa ser aprovado pelo Parlamento
Europeu. Para Patrícia Nasser, tantas etapas assim abrem espaço para que a
França e seus aliados contrários à invasão dos produtos agropecuários
brasileiros protelem e até recusem o acordo. "O caminho é longo."
Esse tempo será essencial para que o país pense que tipo de
desenvolvimento econômico quer.
Para o governo brasileiro, a resposta parece clara. Recentemente
foram enviadas ao Congresso Nacional medidas de redução dos ganhos do salário
mínimo, do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e do abono salarial.
"Ou seja, de redução do poder de compra da população", afirma
Maringoni.
"Há um movimento explícito de redução do mercado interno e
de consolidar o Brasil como uma economia agro-primária exportadora."
Fonte: BBC News Brasil/Sputnik Brasil
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