Contra STF e sem-terra,
ruralistas aceleram PL que dificulta reforma agrária
A CÂMARA DOS DEPUTADOS aprovou no último 26 de novembro, por 290 votos a 111, o regime de
urgência do Projeto de Lei
(PL) 4357/2023.
Criticado por movimentos
sociais do campo, o texto propõe a exclusão do conceito de “função social da
terra” como critério para a União desapropriar uma propriedade para fins de
reforma agrária.
Esse conceito foi
introduzido pelo Estatuto da
Terra, de 1964. Em 1988, foi incorporado pela Constituição
Federal. Segundo o artigo 186 da Carta Magna, a função
social é cumprida quando a propriedade atende, simultaneamente, a critérios de
produtividade e de respeito a trabalhadores e ao meio ambiente.
O PL também é visto como uma
reação da bancada ruralista a uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de
setembro do ano passado, que confirmou a constitucionalidade do conceito de
função social da terra.
<><> O que diz o
PL
De autoria do deputado
federal Rodolfo Nogueira (PL-MS), o PL acrescenta um parágrafo à Lei 8.629/1993
– que regulamenta a reforma agrária no Brasil – e proíbe a
desapropriação de terras produtivas que não cumpram sua “função social”.
Segundo a
justificativa do projeto de lei, a
desapropriação por descumprimento da função social “pode ter consequências
negativas, como a diminuição da produção agrícola, com impacto negativo na
economia brasileira e na segurança alimentar da população”.
Autointitulado
“terror do MST”, Nogueira integra a Frente Parlamentar da
Agropecuária (FPA), braço institucional da Bancada Ruralista no Congresso
Nacional.
O pedido de urgência, que
tem como objetivo acelerar o processo de análise e votação de uma medida, havia
sido protocolado pelo presidente da FPA, o também deputado federal Pedro Lupion
(PP-PR).
A Repórter Brasil solicitou entrevistas com Nogueira e com Lupion, mas não foi atendida
até a publicação desta matéria. O texto será atualizado caso um posicionamento
seja enviado.
<><> PL foi
protocolado após decisão do STF que confirmou ‘função social’
O PL 4357 foi protocolado na
Câmara dos Deputados em 5 de setembro de 2023, apenas quatro dias após o STF
decidir como
improcedente um pedido da CNA (Confederação
Nacional de Agricultura) para considerar inconstitucional o uso da função
social da terra como critério de desapropriação.
Na ação, a entidade
argumentava que o artigo 185 da Constituição Federal protegia a propriedade
produtiva de desapropriação. De forma unânime, no entanto, os ministros
entenderam que o artigo “exige, para a aplicação da cláusula de
insuscetibilidade de desapropriação para fins de reforma agrária, a função
social e o caráter produtivo da propriedade como requisitos simultâneos”.
O próprio deputado Rodolfo
Nogueira deixou explícito que o PL 4357 é uma ofensiva a essa decisão. Na justificativa
do projeto, ele afirma que a reforma agrária deve ser feita
de forma a garantir a produção agrícola e a evitar conflitos sociais, “ao
contrário da decisão do STF”.
Na avaliação de Ayala
Rodrigues, da Coordenação Nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra), o PL cria uma instabilidade entre os poderes. “Ele questiona uma
decisão do Poder Judiciário e coloca o Poder Executivo numa situação delicada,
porque, se aprovado, o projeto vai para sanção presidencial. E nossa
expectativa é que o presidente vete”, diz.
A deputada federal Célia
Xakriabá (Psol-MG) vê semelhanças com as estratégias adotadas pelos ruralistas
em relação ao Marco Temporal, tese que defende a criação de um território
indígena apenas se comprovada a presença, em outubro de 1988, dessa população
na área.
“Todos lembram que, no ano
passado, o STF decidiu no sentido da inconstitucionalidade do tema após intensa
mobilização indígena. Em resposta, a bancada ruralista propôs um PL e uma PEC
(Proposta de Emenda à Constituição (PEC), com textos contrários ao que foi
determinado pela corte”, ressalta.
PL que esvazia ‘função
social da terra’ é incostitucional, diz jurista
Para o jurista Carlos Marés,
presidente do Ibap (Instituto Brasileiro de Advocacia Pública) e ex-presidente
da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), ao “anular totalmente” o
artigo 186 da Constituição, o PL 4357 pode ser considerado
inconstitucional.
“No fundo, é uma
interpretação que diz que a função social não existe. Porque a desapropriação
será só em função da não produtividade”, explica Marés. Os outros elementos que
compõem a função social deixam de existir. Então, na verdade, o PL nega o
princípio constitucional da função social da propriedade”, complementa.
Segundo Marés, é preciso
diferenciar produtividade de rentabilidade. “Não podemos considerar uma
propriedade produtiva quando não gera um bem-estar na sociedade em que está
inserida. Isso não é produtividade, é rentabilidade do capital. E rentabilidade
do capital pode ser ilegal”, argumenta.
Na avaliação da deputada
Célia Xakriabá, uma das que votou contra o pedido de urgência para o projeto, o
texto protege interesses de grandes proprietários de terra, “promovendo
uma lógica de concentração fundiária que mantém privilégios históricos”.
“Ao criar uma brecha para
que terras que descumpram sua função social sejam protegidas de desapropriação,
busca blindar propriedades que exploram trabalhadores e degradam o meio
ambiente, tornando-as intocáveis”, diz.
Para Valéria Pereira, da
Coordenação Nacional da CPT (Comissão Pastoral da Terra), há uma tentativa de
“enterrar de vez a reforma agrária”. “Se aprovado, esses grandes monocultivos,
propriedades que exploram minérios em grandes áreas, ou fazendas, latifúndios
que usam mão de obra de trabalho escravo não poderão ser desapropriadas”.
Em nota publicada em 9 de
dezembro, movimentos
sociais e ONGs ressaltam que a Constituição determina o cumprimento da função
social independentemente da produtividade do imóvel.
“O próprio cumprimento
desses critérios é um fator de mensuração da produtividade, uma vez que o
descumprimento da função social pode levar à classificação da propriedade como
improdutiva”.
Na visão das entidades, o
conceito exige que as propriedades rurais sejam utilizadas de forma a promover
a justiça e a sustentabilidade. “Ao beneficiar propriedades que fazem mau uso
da terra, o PL prejudica o trabalhador sem-terra acampado, que reivindica e
aguarda o acesso à terra que a Constituição lhe garante por meio da
desapropriação das terras que não cumprem com a sua função social”, diz o
texto.
<><>PL legitima
lógica do ‘Invasão Zero’, diz deputada
Para a deputada Xakriabá, o
PL 4357, caso aprovado, seria mais um instrumento de consolidação do poder dos
ruralistas sobre a terra e causaria uma maior permissividade em relação a
episódios de violência no campo. “Legitimaria, inclusive, movimentos
como o ‘Invasão Zero’ que assassinou a
Nega Pataxó na Bahia.”
Valéria Pereira, da CPT,
lembra que há outros projetos de lei, alguns deles já aprovados no âmbito
estadual, que seguem a lógica da “invasão zero”. “Junto com esse PL, esse
conjunto de legislações que tem sido aprovado vai significar um processo de
crescimento dos despejos de forma muito avassaladora”, opina.
Ayala Rodrigues, do MST,
avalia que, além dos conflitos no campo, o projeto defendido pela bancada
ruralista pode alimentar a crise climática ao proibir a desapropriação de
imóveis rurais que desrespeitam, por exemplo, a legislação ambiental.
“Não é somente um problema
de quem luta pela reforma agrária. É um problema de toda a sociedade
brasileira” alerta a dirigente do MST. “Temos enfrentado grandes secas,
enchentes e outras consequências. E a comunidade científica tem dito que se a
sociedade não repensar a sua lógica de funcionamento, vamos entrar em eras cada
vez mais difíceis para a existência da vida na Terra”, finaliza.
¨ CCJ
bosonarista da Câmara autoriza donos de terras a agirem com a própria força
contra "invasores"
A Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou, nesta
quarta-feira (11), por 39 votos a 15, um projeto de lei que autoriza os
proprietários de terra a utilizarem força própria ou solicitarem intervenção
policial, sem a necessidade de ordem judicial, para retirar invasores das
propriedades. O texto também promove alterações no Código Civil, no Código de
Processo Civil e no Código Penal, endurecendo as punições aplicadas aos
infratores.
Com a
aprovação na CCJ, a proposta segue agora para votação no plenário da Câmara. A
medida integra um pacote de ações direcionadas contra o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e conta com o apoio de parlamentares
bolsonaristas.
Entre as
mudanças, o projeto aumenta a pena para o crime de invasão de terra, que
anteriormente era punido com detenção de um a seis meses e multa. Caso o texto
seja aprovado, a punição passará a ser de um a quatro anos de prisão, com
agravantes.
O texto também
define que as ações de defesa do proprietário ou da polícia não podem exceder o
necessário para garantir a recuperação da posse da propriedade. A proposta, no
entanto, não estabelece quais seriam os limites dessa conduta.
¨ Seminário avança em propostas para a
regularização fundiária de povos e comunidades tradicionais
A coordenadora de Justiça Socioambiental
do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS),
Marcela Cananéa, que também atua como conselheira no Conselho Nacional de Povos
e Comunidades Tradicionais, participou do II Seminário Regional de
Regularização Fundiária de Povos e Comunidades Tradicionais do Norte do Brasil.
O evento, realizado entre os dias 25 e 28 de novembro, foi organizado pelo
Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e contou com
a presença do Secretário Nacional de Territórios e Sistemas Produtivos Quilombolas
e Tradicionais, Edimilton Cerqueira, além de representantes do Ministério do
Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).
O seminário faz parte de uma série de
encontros que ocorrerão em todas as regiões do Brasil. Em 2024, as regiões
Nordeste e Norte serão contempladas, enquanto, em 2025, o evento será realizado
nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste. O objetivo principal desses seminários
é ouvir as demandas regionais para subsidiar um processo histórico de
regulamentação e reconhecimento fundiário dos 28 segmentos de Povos e
Comunidades Tradicionais do Brasil, conforme estabelecido pelo Decreto 6040.
“A pauta mais importante para os Povos e
Comunidades Tradicionais é a garantia dos seus territórios. Esperançamos por
esta conquista. Muitos de nós, lideranças, mestres e mestras dos territórios se
foram sem ver a regularização fundiária acontecer. Toda oportunidade que
estamos construindo agora, não começa agora, são demandas e lutas antigas,
foram e ainda somos resistência para continuar existindo e reproduzindo
cultura, alimentos saudáveis, histórias e vida”, destaca Marcela.
Durante o evento, foram discutidos
diversos pontos cruciais para o avanço da regularização fundiária. Entre eles,
destacam-se a construção de um decreto específico para regularização dos
territórios tradicionais, a Portaria Interministerial para destinação de
florestas públicas, a elaboração do Plano Nacional de Desenvolvimento
Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, e a proposta de um Censo
Agropecuário, Florestal e Aquícola voltado para essas comunidades. Além disso,
foi apresentada a plataforma de territórios tradicionais da Rede Nacional de
Povos e Comunidades Tradicionais, desenvolvida em parceria com o Ministério
Público Federal.
Fonte: Repórter
Brasil/Brasil 247/OTSS
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