quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Contra STF e sem-terra, ruralistas aceleram PL que dificulta reforma agrária

A CÂMARA DOS DEPUTADOS aprovou no último 26 de novembro, por 290 votos a 111, o regime de urgência do Projeto de Lei (PL) 4357/2023

Criticado por movimentos sociais do campo, o texto propõe a exclusão do conceito de “função social da terra” como critério para a União desapropriar uma propriedade para fins de reforma agrária. 

Esse conceito foi introduzido pelo Estatuto da Terra, de 1964. Em 1988, foi incorporado pela Constituição Federal. Segundo o artigo 186 da Carta Magna, a função social é cumprida quando a propriedade atende, simultaneamente, a critérios de produtividade e de respeito a trabalhadores e ao meio ambiente.

O PL também é visto como uma reação da bancada ruralista a uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de setembro do ano passado, que confirmou a constitucionalidade do conceito de função social da terra.

<><> O que diz o PL

De autoria do deputado federal Rodolfo Nogueira (PL-MS), o PL acrescenta um parágrafo à Lei 8.629/1993 –  que regulamenta a reforma agrária no Brasil –  e proíbe a desapropriação de terras produtivas que não cumpram sua “função social”.

Segundo a justificativa do projeto de lei, a desapropriação por descumprimento da função social “pode ter consequências negativas, como a diminuição da produção agrícola, com impacto negativo na economia brasileira e na segurança alimentar da população”.

Autointitulado “terror do MST”, Nogueira integra a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), braço institucional da Bancada Ruralista no Congresso Nacional.  

O pedido de urgência, que tem como objetivo acelerar o processo de análise e votação de uma medida, havia sido protocolado pelo presidente da FPA, o também deputado federal Pedro Lupion (PP-PR). 

Repórter Brasil solicitou entrevistas com Nogueira e com Lupion, mas não foi atendida até a publicação desta matéria. O texto será atualizado caso um posicionamento seja enviado.

<><> PL foi protocolado após decisão do STF que confirmou ‘função social’

O PL 4357 foi protocolado na Câmara dos Deputados em 5 de setembro de 2023, apenas quatro dias após o STF  decidir como improcedente um pedido da CNA (Confederação Nacional de Agricultura) para considerar inconstitucional o uso da função social da terra como critério de desapropriação. 

Na ação, a entidade argumentava que o artigo 185 da Constituição Federal protegia a propriedade produtiva de desapropriação. De forma unânime, no entanto, os ministros entenderam que o artigo “exige, para a aplicação da cláusula de insuscetibilidade de desapropriação para fins de reforma agrária, a função social e o caráter produtivo da propriedade como requisitos simultâneos”. 

O próprio deputado Rodolfo Nogueira deixou explícito que o PL 4357 é uma ofensiva a essa decisão. Na justificativa do projeto, ele afirma que a reforma agrária deve ser feita de forma a garantir a produção agrícola e a evitar conflitos sociais, “ao contrário da decisão do STF”.

Na avaliação de Ayala Rodrigues, da Coordenação Nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o PL cria uma instabilidade entre os poderes. “Ele questiona uma decisão do Poder Judiciário e coloca o Poder Executivo numa situação delicada, porque, se aprovado, o projeto vai para sanção presidencial. E nossa expectativa é que o presidente vete”, diz. 

A deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) vê semelhanças com as estratégias adotadas pelos ruralistas em relação ao Marco Temporal, tese que defende a criação de um território indígena apenas se comprovada a presença, em outubro de 1988, dessa população na área. 

“Todos lembram que, no ano passado, o STF decidiu no sentido da inconstitucionalidade do tema após intensa mobilização indígena. Em resposta, a bancada ruralista propôs um PL e uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição (PEC), com textos contrários ao que foi determinado pela corte”, ressalta.

PL que esvazia ‘função social da terra’ é incostitucional, diz jurista

Para o jurista Carlos Marés, presidente do Ibap (Instituto Brasileiro de Advocacia Pública) e ex-presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), ao “anular totalmente” o artigo 186 da Constituição, o PL 4357 pode ser considerado inconstitucional. 

“No fundo, é uma interpretação que diz que a função social não existe. Porque a desapropriação será só em função da não produtividade”, explica Marés. Os outros elementos que compõem a função social deixam de existir. Então, na verdade, o PL nega o princípio constitucional da função social da propriedade”, complementa.

Segundo Marés, é preciso diferenciar produtividade de rentabilidade. “Não podemos considerar uma propriedade produtiva quando não gera um bem-estar na sociedade em que está inserida. Isso não é produtividade, é rentabilidade do capital. E rentabilidade do capital pode ser ilegal”, argumenta.

Na avaliação da deputada Célia Xakriabá, uma das que votou contra o pedido de urgência para o projeto, o texto  protege interesses de grandes proprietários de terra, “promovendo uma lógica de concentração fundiária que mantém privilégios históricos”. 

“Ao criar uma brecha para que terras que descumpram sua função social sejam protegidas de desapropriação, busca blindar propriedades que exploram trabalhadores e degradam o meio ambiente, tornando-as intocáveis”, diz.

Para Valéria Pereira, da Coordenação Nacional da CPT (Comissão Pastoral da Terra), há uma tentativa de “enterrar de vez a reforma agrária”. “Se aprovado, esses grandes monocultivos, propriedades que exploram minérios em grandes áreas, ou fazendas, latifúndios que usam mão de obra de trabalho escravo não poderão ser desapropriadas”.

Em nota publicada em 9 de dezembro, movimentos sociais e ONGs ressaltam que a Constituição determina o cumprimento da função social independentemente da produtividade do imóvel

“O próprio cumprimento desses critérios é um fator de mensuração da produtividade, uma vez que o descumprimento da função social pode levar à classificação da propriedade como improdutiva”. 

Na visão das entidades, o conceito exige que as propriedades rurais sejam utilizadas de forma a promover a justiça e a sustentabilidade. “Ao beneficiar propriedades que fazem mau uso da terra, o PL prejudica o trabalhador sem-terra acampado, que reivindica e aguarda o acesso à terra que a Constituição lhe garante por meio da desapropriação das terras que não cumprem com a sua função social”, diz o texto. 

<><>PL legitima lógica do ‘Invasão Zero’, diz deputada

Para a deputada Xakriabá, o PL 4357, caso aprovado, seria mais um instrumento de consolidação do poder dos ruralistas sobre a terra e causaria uma maior permissividade em relação a episódios de violência no campo. “Legitimaria, inclusive, movimentos como o ‘Invasão Zero’ que assassinou a Nega Pataxó na Bahia.”

Valéria Pereira, da CPT, lembra que há outros projetos de lei, alguns deles já aprovados no âmbito estadual, que seguem a lógica da “invasão zero”. “Junto com esse PL, esse conjunto de legislações que tem sido aprovado vai significar um processo de crescimento dos despejos de forma muito avassaladora”, opina. 

Ayala Rodrigues, do MST, avalia que, além dos conflitos no campo, o projeto defendido pela bancada ruralista pode alimentar a crise climática ao proibir a desapropriação de imóveis rurais que desrespeitam, por exemplo, a legislação ambiental. 

“Não é somente um problema de quem luta pela reforma agrária. É um problema de toda a sociedade brasileira” alerta a dirigente do MST. “Temos enfrentado grandes secas, enchentes e outras consequências. E a comunidade científica tem dito que se a sociedade não repensar a sua lógica de funcionamento, vamos entrar em eras cada vez mais difíceis para a existência da vida na Terra”, finaliza.

¨      CCJ bosonarista da Câmara autoriza donos de terras a agirem com a própria força contra "invasores"

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou, nesta quarta-feira (11), por 39 votos a 15, um projeto de lei que autoriza os proprietários de terra a utilizarem força própria ou solicitarem intervenção policial, sem a necessidade de ordem judicial, para retirar invasores das propriedades. O texto também promove alterações no Código Civil, no Código de Processo Civil e no Código Penal, endurecendo as punições aplicadas aos infratores.

Com a aprovação na CCJ, a proposta segue agora para votação no plenário da Câmara. A medida integra um pacote de ações direcionadas contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e conta com o apoio de parlamentares bolsonaristas.

Entre as mudanças, o projeto aumenta a pena para o crime de invasão de terra, que anteriormente era punido com detenção de um a seis meses e multa. Caso o texto seja aprovado, a punição passará a ser de um a quatro anos de prisão, com agravantes.

O texto também define que as ações de defesa do proprietário ou da polícia não podem exceder o necessário para garantir a recuperação da posse da propriedade. A proposta, no entanto, não estabelece quais seriam os limites dessa conduta.

 

¨      Seminário avança em propostas para a regularização fundiária de povos e comunidades tradicionais

A coordenadora de Justiça Socioambiental do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), Marcela Cananéa, que também atua como conselheira no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, participou do II Seminário Regional de Regularização Fundiária de Povos e Comunidades Tradicionais do Norte do Brasil. O evento, realizado entre os dias 25 e 28 de novembro, foi organizado pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e contou com a presença do Secretário Nacional de Territórios e Sistemas Produtivos Quilombolas e Tradicionais, Edimilton Cerqueira, além de representantes do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).

O seminário faz parte de uma série de encontros que ocorrerão em todas as regiões do Brasil. Em 2024, as regiões Nordeste e Norte serão contempladas, enquanto, em 2025, o evento será realizado nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste. O objetivo principal desses seminários é ouvir as demandas regionais para subsidiar um processo histórico de regulamentação e reconhecimento fundiário dos 28 segmentos de Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil, conforme estabelecido pelo Decreto 6040.

“A pauta mais importante para os Povos e Comunidades Tradicionais é a garantia dos seus territórios. Esperançamos por esta conquista. Muitos de nós, lideranças, mestres e mestras dos territórios se foram sem ver a regularização fundiária acontecer. Toda oportunidade que estamos construindo agora, não começa agora, são demandas e lutas antigas, foram e ainda somos resistência para continuar existindo e reproduzindo cultura, alimentos saudáveis, histórias e vida”, destaca Marcela.

Durante o evento, foram discutidos diversos pontos cruciais para o avanço da regularização fundiária. Entre eles, destacam-se a construção de um decreto específico para regularização dos territórios tradicionais, a Portaria Interministerial para destinação de florestas públicas, a elaboração do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, e a proposta de um Censo Agropecuário, Florestal e Aquícola voltado para essas comunidades. Além disso, foi apresentada a plataforma de territórios tradicionais da Rede Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, desenvolvida em parceria com o Ministério Público Federal.

 

Fonte: Repórter Brasil/Brasil 247/OTSS

 

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