Comida: a louca espiral dos antibióticos
animais
O insaciável apetite contemporâneo por carnes está
destruindo o poder da inovação científica que permitiu, a partir da segunda
metade do século 20, salvar milhões de vidas e contribuir para o espetacular
aumento global da longevidade. Foi em setembro de 2016 que a Assembleia Geral
das Nações Unidas reconheceu o uso inadequado de antibióticos —e de
medicamentos antimicrobianos em geral— na criação de animais como uma das
causas da sua crescente ineficiência.
A resistência antimicrobiana é uma das dez maiores
ameaças globais à saúde humana. Segundo estimativas, infecções
bacterianas resistentes estão relacionadas à
morte de cerca de 5 milhões de pessoas por ano. A continuar neste
ritmo, os custos em saúde devem subir a US$ 1
trilhão até 2050, segundo o Banco Mundial. Em todo o mundo, hospitais
anunciam a descoberta de superbactérias, e é impressionante ver o mapa global dos estudos científicos sobre o
fenômeno.
O mecanismo básico pelo qual as bactérias sofrem
mutações que tornam os antibióticos incapazes de combatê-las foi descrito, de
forma singela, por Alexander Fleming ao receber o Prêmio Nobel de Medicina de
1945, junto a Ernst Boris Chain e Howard Walter Florey, pela descoberta da
penicilina.
“O sr. X. está
com dor de garganta. Ele compra e toma penicilina —uma dose não suficiente para
matar os estreptococos, mas o suficiente para ensiná-los a resistir à
penicilina. Em seguida, ele contamina sua esposa. A sra. X contrai pneumonia e
é tratada com penicilina. Como os estreptococos agora são resistentes à
penicilina, o tratamento falha e a sra. X morre.” Moral da história, conclui
Fleming: “se você tomar penicilina, tome o suficiente”.
Pouco depois desse alerta, entretanto, o biólogo Thomas
Hughes Juke fez uma descoberta, enquanto trabalhava em um laboratório nos
Estados Unidos, que revolucionou a produção avícola e que, de certa forma,
contraria o cuidado preconizado por Fleming. Hughes mostrou que a introdução de
pequenas doses de antibióticos na dieta de pintos e frangos aumentava a taxa de
crescimento dos animais, mesmo na ausência de sinais de doenças.
A era dos antibióticos, que começou em meados dos anos
1940, é marcada pela contradição entre o alerta de Fleming e os padrões de
criação industrial de animais, em que o consumo de antibióticos é crescente e
generalizado. Antibióticos passaram a ser usados tanto para estimular o
crescimento dos animais quanto preventivamente: a pesquisa científica promoveu
transformações que, de meados do século 20 até hoje, multiplicaram por
cinco o peso médio das aves de criação industrial.
Mas a premissa para a adesão maciça a essa
transformação genética é a homogeneidade dos animais, o que permite padronizar
a alimentação, o tempo de abate e imprimir uma verdadeira escala industrial à
criação. Essa monotonia genética cria o ambiente propício para a multiplicação
de vírus e bactérias, que, por sua vez, exigem o uso cada vez maior de
antibióticos.
Daí decorre o círculo vicioso descrito por Fleming: as
bactérias sem resistência natural aos antimicrobianos são eliminadas, mas as
resistentes se multiplicam em um ambiente em que não encontram competição, o
que exige o uso cada vez maior de medicamentos.
·
Poder industrial e bem-estar animal
Essa padronização produtiva tem por base o controle da
genética animal por um punhado de empresas. As carnes da avicultura devem
alcançar o faturamento de US$ 422 bilhões até 2025 e contribuir com 41% da
oferta de proteína animal até 2030. Segundo o grupo de pesquisa ETC, apenas duas
companhias controlam mais de 90% da genética dos frangos de corte do mundo.
É o setor de maior concentração industrial da cadeia
agroalimentar, e a escala industrial dessa monotonia genética é alcançada pela
padronização dos métodos produtivos, em que o uso de antimicrobianos faz parte
do pacote tecnológico que predomina no mundo todo.
A eficiência impressionante na conversão de proteínas
vegetais em produtos animais é a marca fundamental desse pacote. Porém, como já
denunciava Peter Singer no clássico “Libertação
Animal” (publicado
em 1975 e atualizado e reeditado em 2023), o sofrimento descomunal de animais
de criação é a contrapartida disso.
As mudanças provocam doenças musculares dolorosas,
decorrentes do rápido ganho de peso das aves, que, em muitos casos, passam a
vida sem ver a luz do sol. Na criação de porcos, as fêmeas são enjauladas no
período de reprodução e não conseguem nem dar a volta no próprio corpo.
As tecnologias que permitiram o aumento espetacular na
oferta de carne nas últimas décadas se caracterizam pelo desrespeito
generalizado à dignidade de seres dotados de inteligência, de
capacidade comunicativa e de brincar, que não podem realizar suas propensões
naturais mais elementares, o que contrasta com a noção atual de bem-estar
animal, que vai muito além da administração adequada de alimento, água e
medicamentos aos animais de criação.
·
China, Brasil e EUA
A produção industrial de carne é uma incubadora de
doenças zoonóticas, já que, como consequência da monotonia genética, todos os
animais têm o mesmo sistema imunológico. Para que vírus e bactérias não se
propaguem nesse ambiente tão propício a infecções, o uso de antimicrobianos e,
especialmente, de antibióticos é fundamental. Mais de 70% dos antibióticos
produzidos globalmente são destinados aos animais, segundo um estudo publicado na Science. A China é
o maior consumidor de antimicrobianos veterinários, com 45% do total, seguida do Brasil (8%)
e dos Estados Unidos (7%).
É verdade que, em alguns países, foram implantadas
regulamentações que permitiram uma queda drástica no uso desses medicamentos.
Na Noruega, por exemplo, são usados 8 miligramas de
antimicrobianos por quilo produzido, enquanto, na China, são 318 miligramas por
quilo.
Os dados brasileiros sobre esse tema não são
transparentes. Uma pesquisa de campo
realizada em um polo de produção suína em Minas Gerais indicou o uso
médio de nada menos que 434 miligramas por quilo de carne. Embora esse uso seja
proibido no Brasil desde 2020, o estudo mostra a facilidade com que antibióticos
para uso animal podem ser adquiridos no interior do país –e, pior, indica o
aumento do uso dos medicamentos em relação ao constatado em pesquisa anterior,
de 2017.
É claro que os antibióticos representam uma parte não
desprezível dos custos de produção. Por que, então, seu emprego aumenta tanto?
Estudos mostram que o uso de antibióticos custa menos que as medidas de higiene
adotadas nos países que reduziram o consumo dos medicamentos —vários países
europeus limitam o uso de antibióticos a 50 miligramas por quilo de carne.
Os antibióticos também são usados largamente na criação
de peixes e na própria agricultura. A mesma reação das bactérias nos animais
também ocorre nos solos, como demonstra um artigo recente. Plantas
transgênicas resistentes a ataques de insetos foram cultivadas em tal proporção
que exigem, hoje, o aumento do uso de antibióticos.
Quem acha que a inovação tecnológica permite sempre
enfrentar problemas dessa magnitude deve ler o alerta da OMS (Organização
Mundial da Saúde) e da rede global ReAct: nos últimos 40 anos, o lançamento de
produtos capazes de contornar a resistência bacteriana praticamente estagnou. A pesquisa de
novos medicamentos é cara, e o uso humano de antibióticos, esporádico —ao
contrário, por exemplo, de drogas contra a hipertensão arterial, de uso
contínuo, o que significa maior lucratividade. Além disso, países de renda
média e baixa são proporcionalmente mais afetados pela resistência
antimicrobiana.
·
Duas propostas
Não poderia ser mais decepcionante a declaração do
Painel de Alto Nível sobre Resistência Antimicrobiana, reunido durante a última
Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro de 2024. Contrariamente ao que
ocorreu em 2016 e à determinação de redução de 30% do uso de antibióticos em
animais até 2030, acordada em um encontro da ONU em Omã em 2022, a última
declaração se limitou a preconizar a diminuição do uso de antimicrobianos na
produção alimentar sem estabelecer metas claras.
O texto, além disso, não assume qualquer compromisso
para ampliar investimentos em medicamentos capazes de enfrentar superbactérias
nem menciona a criação industrial de animais como vetor fundamental de
resistência antimicrobiana.
A literatura científica sobre esse tema converge em
duas propostas para enfrentar a resistência antimicrobiana: definir um limite
de uso desses medicamentos e estabelecer um prazo razoável para alcançá-lo.
De acordo com um estudo publicado na Science, haveria uma
redução de 60% do consumo global de antibióticos se os países da OCDE e a China
limitassem seu uso a 50 miligramas por quilo de carne. Na maior parte das
vezes, medidas de higiene e redução da densidade de animais confinados são
suficientes como alternativa.
Isso, no entanto, não elevaria os custos e reduziria a
oferta de proteína animal? Essa questão precisa ser respondida com base na
orientação dos guias alimentares mais importantes do mundo, a começar pelo brasileiro, que está
completando dez anos e exerceu influência internacional decisiva: é preciso
reduzir o consumo de carne.
Hoje, a maioria esmagadora dos países e até mesmo as
camadas de baixa renda de cada um deles registram uma ingestão de carne
superior à necessária para satisfazer as necessidades metabólicas. Ao contrário
do mito cultivado cuidadosamente pela indústria, as dietas contemporâneas são
carentes de frutas, verduras, vegetais frescos e, cada vez mais, têm excesso
tanto de ultraprocessados quanto de carnes.
Isso significa que a necessária redução da oferta de
carne é compatível com a perspectiva de uma alimentação diversificada e de
qualidade para satisfazer as necessidades humanas, não com o horizonte
industrial de um mundo que cada vez mais deseja produtos animais.
A emergência de superbactérias exige, portanto, uma
reflexão profunda sobre a própria natureza da inovação tecnológica
contemporânea. É impossível duvidar da eficiência do aumento da oferta de carne
pelo sistema agroalimentar desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Os impactos da inovação tecnológica e do poder de
mercado que estão na base dessa eficiência, no entanto, comprometem, de forma
cada vez mais nítida, a saúde humana e o bem-estar animal. Tudo isso em um
contexto em que o consumo global de carne ultrapassa muito, em quase todas as
regiões do mundo, os requisitos metabólicos para uma vida saudável.
O vínculo entre a criação industrial de animais e a
resistência aos antimicrobianos mostra que o sistema agroalimentar deve passar
a ser regido, com urgência, muito mais pela lógica da suficiência que pela
obsessão alucinada de aumento da produção a qualquer custo.
Fonte: Por Ricardo Abramovay, em Outras Palavras
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