Sem mentiras, o que
aconteceria com as relações sociais?
Em que consiste uma
mentira? Responder que estamos bem quando realmente não estamos? Elogiar alguém
por seu novo corte de cabelo ou peça de roupa quando essa não é nossa mais
sincera opinião?
Fato é que mentir
acabou virando um hábito socialmente aceitável. A mentira permeia todos os
aspectos da nossa vida.
Ainda assim, apesar
de sua onipresença, a maioria de nós não é muito boa em detectá-la. O que
aconteceria, no entanto, se pudéssemos de repente saber que estamos sendo
enganados?
O mecanismo tecnológico
ou psicológico que possibilitaria essa nova habilidade talvez não seja tão
importante. Em vez disso, o que realmente importa é o que a mentira revela
sobre o papel frequentemente negligenciado e subestimado que desempenha em
nossas vidas.
Muitos pesquisadores
dizem acreditar que começamos a mentir uns para os outros assim que inventamos
a linguagem, principalmente como uma forma de evoluir.
"Mentir é
fácil se comparado a outras formas de ganhar poder", disse Sissela Bok,
especialista em ética da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, à revista
americana National Geographic.
"É muito mais
fácil mentir para tirar dinheiro ou riqueza de uma pessoa do que agredi-la ou
até mesmo roubar um banco."
Ao longo da
história da humanidade, a mentira também serviu como "uma necessidade
evolutiva para nos proteger do mal", diz Michael Lewis, um eminente
professor de Pediatria e Psiquiatria da Universidade Rutgers, nos Estados
Unidos.
Isso inclui
proteção contra perseguição - um propósito ao qual a mentira ainda serve hoje
para muitas pessoas ao redor do mundo. Se pudéssemos de repente detectar todas
as mentiras, vidas em países onde infidelidade, homossexualidade ou certas
crenças religiosas são ilegais poderiam ser colocadas em risco.
·
Busca
por benefícios
A mentira também
nos beneficia mesmo em situações menos arriscadas, como no trabalho.
Se dissermos ao
nosso chefe o que realmente pensamos dele, ou por que realmente não cumprimos
determinado prazo, poderíamos ser demitidos ou rebaixados de função. Também
mentimos para nos fazer parecer melhor e manter um ar de profissionalismo.
"Recentemente,
cheguei atrasado a uma reunião e me justifiquei dizendo que o metrô estava
lento", diz Kang Lee, professor de Psicologia Aplicada e Desenvolvimento
Humano na Universidade de Toronto, no Canadá. "Na verdade, o metrô não
atrasou - eu estava atrasado por minha culpa -, mas não acho que seria bom para
mim profissionalmente se meus colegas soubessem disso".
Por outro lado, há
momentos no trabalho em que seria benéfico saber quando estamos sendo
enganados, diz Clark Freshman, professor de Direito na Universidade da
Califórnia, em Hastings, nos Estados Unidos, e especialista em detecção de
mentiras.
Ao fazer perguntas
durante reuniões, funcionários que representam minorias, por exemplo, poderiam
mais facilmente assegurar salários e cargos equivalentes aos dos outros
empregados, se tivessem a certeza de que receberiam respostas verdadeiras.
"Para mim, um
mundo em que as pessoas pudessem conhecer a verdade que importasse para elas
seria um mundo maravilhoso", diz Freshman. "Teríamos menos
discriminação e mais equidade".
Mas nossos
sentimentos possivelmente sairiam feridos. Para a maioria de nós, um mundo sem
mentiras seria um golpe em nossa autoconfiança, diz Dan Ariely, professor de
Psicologia e Economia Comportamental da Universidade Duke, nos Estados Unidos.
"Viver com a verdade significa que receberíamos comentários mais honestos
e brutais sobre nosso trabalho, a maneira como nos vestimos, como beijamos -
todos os tipos de coisas", diz ele. "Você perceberia que as pessoas
não prestam muita atenção a você e você não é tão importante e altamente
qualificado quanto você pensa que é."
·
Impacto
potencial no desenvolvimento infantil
Por outro lado, um
feedback completamente honesto nos daria chance de aprender e de nos
aperfeiçoar - mas se vale a pena, Ariely não tem certeza.
Esse impacto
negativo na forma como nos vemos começariam quase ao mesmo tempo em que
aprendêssemos a falar - distorcendo o desenvolvimento infantil de maneiras
imprevisíveis.
"Imagine que
seu filho dizendo: 'Papai, mamãe, olhe para o meu desenho!' e você responde:
"É horrível!", diz Lee. "Os impactos negativos seriam
imediatos." Parte da inocência da infância também seria perdida, incluindo
o faz de conta, como o Papai Noel, a Fada dos Dentes e o Coelhinho da Páscoa.
Em vez disso, por causa de sua constante curiosidade, as crianças seriam
expostas cedo às duras realidades da vida - o que não seria necessariamente uma
coisa boa.
"Há muitas
coisas que, se as crianças soubessem, seriam difíceis de entender", diz
Paul Ekman, professor emérito de Psicologia da Universidade da Califórnia, em
São Francisco (EUA). "Nem toda a omissão, especialmente de pais para
filhos, é malévola".
As próprias
crianças aprendem o valor social de mentir desde muito jovem. "A mãe pode
dizer para a criança: 'Escute, a vovó vai lhe dar um presente de Natal, e você
tem que dizer à vovó que você gostou do presente, senão isso vai deixá-la
triste'", diz Lewis. Aos três ou quatro
anos,
estudos mostram que muitas crianças dominam a arte de chamada 'mentira
educada'.
A partir de
experimentos, Lewis também descobriu que quanto mais inteligente e emocionalmente
madura é a criança, maior a probabilidade de ela mentir quando perguntada se
espiou um brinquedo que foi instruída a não olhar, por exemplo. Kang e seus
colegas também constataram que aprender a mentir
traz benefícios cognitivos para as crianças.
Quando somos
adultos, a maioria de nós está mentindo regularmente. Em um estudo de 1996,
Bella DePaulo, psicóloga social da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara
(EUA), descobriu que estudantes
universitários mentiam uma vez a cada três interações sociais, e adultos mais
velhos, uma a cada cinco. "Em muitas das mentiras da vida cotidiana, as pessoas
fingem se sentir melhores do que realmente se sentem", escreveu DePaulo.
"Se elas não gostam de você, elas podem tentar encobrir isso. Se estão entediadas
com o que você está dizendo, podem se esforçar para parecer interessadas."
De fato, em termos
de relacionamento interpessoal, "seria um desastre total se pudéssemos de
fato detectar mentiras", diz Lewis. "Mentir é uma necessidade
imprescindível em uma cultura na qual a compreensão moral é que você não quer
ferir os sentimentos de outras pessoas."
·
Autoengano
coletivo
Somos todos
corresponsáveis pela onipresença das chamadas "mentirinhas brancas".
"A maioria das
pessoas colabora inconscientemente com o mentiroso para permitir ser
enganadas", diz Ekman.
No fim de um
jantar, por exemplo, costumamos dizer aos nossos anfitriões que nos divertimos
muito - mesmo que tenhamos odiado todos os momentos. Nossos anfitriões
prontamente acreditam nisso, não tendo nenhum desejo de saber o quão terrível
achamos a companhia ou a comida deles.
A desvantagem dessa
mentira branca, diz Lewis, é que podemos ser convidados de volta - "mas
esse é o preço que pagamos para não ferir os sentimentos dos outros".
Em um mundo sem
esse tipo de mentira, as amizades acabariam, as relações profissionais seriam
repletas de tensão e familiares seriam ainda mais difíceis de aturar do que já
são.
Nossos
relacionamentos românticos mais próximos também não são poupados das mentiras.
Em um estudo de 1989 que se tornou famoso conduzido por Sandra Metts na
Universidade de Illinois (EUA), apenas 33 das 390 pessoas não conseguiam
lembrar uma situação em que "não eram
completamente verdadeiras" com seu cônjuge.
Da mesma forma, em
2013, Jennifer Guthrie e Adrianne Kunkel, da Universidade do Kansas (EUA),
descobriram que apenas 2 dos 67 participantes de um estudo não enganaram seus
cônjuges ao longo de uma única semana.
Em ambos os
estudos, a maioria das pessoas disse que mentia para evitar ferir os
sentimentos de seu parceiro ou prejudicar seu relacionamento. Se os
relacionamentos passassem, de repente, a serem totalmente verdadeiros, desde
quando olhamos nosso cônjuge pela manhã até se estamos envolvidos em algum tipo
de traição, muitos deles provavelmente não durariam.
"Gosto de
brincar que a razão pela qual minha esposa e eu nos casamos há 40 anos é porque
temos banheiros separados", diz Ekman. "A princípio, é apenas uma
piada, porque há coisas que você não quer que as pessoas, nem mesmo o seu
cônjuge, saibam - e não se trata apenas do que você faz no banheiro."
·
Detecção
de mentiras patológicas
Existem algumas
maneiras pelas quais as habilidades de detecção de mentiras seriam
inequivocamente benéficas, no entanto.
Por um lado,
podemos detectar imediatamente mentirosos patológicos, ou aqueles que se
envolvem em mentiras destrutivas em série que não têm qualquer mérito social,
diz Lewis.
Mentirosos
patológicos, os chamados mitômanos, são muitas vezes narcisistas cuja necessidade
de autoengano é motivada por uma extrema aversão à vergonha social e tão
profundamente enraizada que eles passam a acreditar em suas próprias mentiras -
mesmo que elas contrariem fatos claramente observáveis ou declarações que
tenham feito antes.
Segundo Lewis, o
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, é um exemplo clássico disso.
"Sua autoilusão é tão grande que ele simplesmente não sabe que está
mentindo", diz ele.
Mentir na política,
é claro, não é novidade, diz Vian Bakir, professora de comunicação política e
jornalismo da Universidade de Bangor, no País de Gales, no Reino Unido. Platão
reconheceu o mérito da "mentira nobre". Já o clássico O
Príncipe, de Nicolau Maquiavel, destacou o papel essencial da inverdade na
liderança política.
Dito isso, no
entanto, "mentir na política ganhou muita força nos últimos anos",
diz Bakir. "O que é particularmente ruim no momento atual é que alguns
políticos proeminentes como Trump, Vladimir Putin e outros homens fortes ao
redor do mundo se habituaram a mentir descaradamente e não se importam se forem
descobertos."
De acordo com a
PolitiFact, um site de verificação de informações do Instituto Poynter de
Estudos de Mídia, entidade sem fins lucrativos sediada nos EUA, 70% das
declarações de Donald Trump são em sua maioria falsas ou imprecisas, comparadas a apenas
32% de Hillary Clinton.
As instituições
também podem mentir descaradamente, acrescenta ela. A organização de campanhas
'Vote Leave' da Grã-Bretanha afirmou repetidamente que a União Europeia custa
ao Reino Unido mais de 350 milhões de libras (R$ 1,8 bilhão) a cada semana -
uma alegação que o governo britânico descreveu
posteriormente como "um uso claramente indevido das estatísticas
oficiais".
"Dado que essa
afirmação não era apenas errada, mas uma parte significativa e deliberada do
material de campanha, seria justo dizer que havia uma intenção enganosa
lá", diz Bakir.
Apesar da ampla
evidência de desonestidade entre certos políticos e grupos políticos, o apoio
dos eleitores mais apaixonados tende a permanecer forte. Bakir ressalta que
estudos mostram que pessoas que acreditam fortemente em desinformação são muito difíceis de serem
convencidas do contrário, e acrescenta que, como espécie, sofremos um viés de
confirmação ou uma predisposição para acreditar em coisas que se encaixam em
nossa visão de mundo.
Em um mundo no qual
as pessoas pudessem detectar mentiras automaticamente, o apoio a políticos
desonestos diminuiria.
"Muitos
defensores de Trump acham que ele está sendo alvo de acusações falsas, de que
ele não está mentindo", diz Freshman. "Mas se as pessoas pudessem
descobrir por meio de seu próprio conhecimento que estão sendo enganadas, acho
que muitas delas parariam de recorrer a inúmeras desculpas para justificar o
comportamento dele."
Um mundo sem
mentiras lançaria as relações internacionais e a diplomacia no mais completo
caos, mas, em última análise, os cidadãos provavelmente se beneficiariam de
autoridades mais honestas. O mesmo se aplica à polícia e à justiça criminal. A
violência policial e o preconceito diminuiriam - os policiais poderiam
simplesmente perguntar aos suspeitos se eles estão portando uma arma ou se são
responsáveis por um crime - e os julgamentos seriam substituídos por um simples
conjunto de perguntas para determinar a culpa.
"Certamente,
acho que isso traria benefícios no universo da justiça criminal", diz
Ekman. "Queremos que o autor do crime seja encontrado. Não queremos
condenar uma pessoa inocente ou puni-la por algo que ela não cometeu".
É impossível prever
todas as maneiras pelas quais nos beneficiaríamos e sofreríamos se todas as
mentiras fossem reveladas, mas certamente o mundo seria um lugar muito
diferente daquele em que vivemos hoje. Os seres humanos, no entanto, são
adaptáveis e "com o tempo, desenvolveríamos novas normas e códigos
aceitáveis de conduta social", diz Bakir.
Ao mesmo tempo,
acrescenta ela, provavelmente faríamos tudo o que pudéssemos para desenvolver
novas maneiras de mentir e enganar uns aos outros, seja por meio de tecnologia,
drogas, comportamento social ou treinamento mental.
Kang concorda.
"Estou 100% certo que continuaríamos a nos enganar de alguma forma, apenas
encontraríamos uma maneira diferente de fazê-lo. Mentir é uma necessidade em
nossas vidas".
Fonte: BBC Future
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