Vida além do trabalho - A esquerda também pode jogar no ataque
Durante o mês de novembro, a luta pela redução da jornada de
trabalho, conduzida pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT), ganhou o
noticiário e a opinião pública. A pressão social feita para que o Projeto de
Emenda Constitucional (PEC), apresentado pela deputada federal Erika Hilton
(PSOL/SP), conseguisse as assinaturas necessárias e fosse protocolada na Câmara
surtiu efeito. Além disso, a pauta encabeçada por Rick Azevedo (PSOL/RJ)
conseguiu adesão de diferentes setores da sociedade brasileira, à esquerda e à
direita no espectro político.
O tema tomou conta do debate público, ocupou o trending
topics do antigo Twitter e mobilizou desde perfis políticos até
páginas de memes nas redes sociais, forçando os meios de comunicação
tradicionais a se posicionarem sobre o assunto. No dia 15 de novembro, em
diversas capitais do Brasil, ocorreram manifestações de rua em apoio ao fim da
escala 6×1. Mesmo após toda repercussão, o governo Lula deu acenos muito tímidos
de adesão à pauta.
Como reflexo da pressão exercida pelo movimento Vida Além do
Trabalho e pela sociedade, trabalhadores da PepsiCo realizaram uma paralização
exigindo o fim da referida escala e a adoção da escala 5×2, com folgas aos
sábados e domingo. No dia 04 de dezembro ocorreu uma audiência pública na
Câmara dos Deputados para discutir o tema. A audiência, encabeçada pela
deputada Erika Hilton, representa mais uma tática para pressionar os
parlamentares a aderirem à pauta e angariar ainda mais apoio da população.
Segundo pesquisa divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo, 70% dos
brasileiros apoiam o fim da escala 6×1, contando com adesão de pessoas à
esquerda e à direita.
Tais iniciativas devem ser valorizadas como lutas que buscam
avançar na discussão sobre as condições de existência dos trabalhadores no
Brasil. Desde o golpe de 2016 e as reformas antissociais realizadas pelos
governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, como a trabalhista e a
previdenciária, as pioras na condição de vida da classe trabalhadora só se
intensificaram. O que os indicadores demonstram, desde então, é o aumento
da informalidade, com empregos precários, terceirizados, de baixa estabilidade
e remuneração, forçando o conjunto dos trabalhadores a assumirem jornadas de
trabalho cada vez mais extensas para conseguirem sobreviver.
·
Redução da jornada
de trabalho como uma luta internacionalista
A luta pela redução da jornada tem avançado em países do centro
do capitalismo, como Alemanha, França, Canadá, dentre outros, onde os
trabalhadores organizados conseguiram assegurar jornadas abaixo das 40 horas
semanais. Entretanto, é importante frisar que para que os trabalhadores do
centro do capitalismo possam conquistar tais direitos, aqueles que estão nos
países periféricos são cada vez mais subordinados à extensão do tempo de
trabalho, como forma de compensar e equalizar a taxa de mais valor do capital
social total.
Portanto, a situação precária de vida de um trabalhador do Sul
global está diretamente vinculada à forma como está organizada a divisão
internacional do trabalho e a mundialização do capital. Assim, fica evidente
que a luta pela redução da jornada de trabalho não se limita ao contexto
brasileiro, mas é uma luta de caráter internacionalista e anticapitalista por
essência.
Depois de muito tempo agindo de forma reativa, a esquerda
brasileira conseguiu impor uma pauta ofensiva no debate público. Após anos em
uma situação defensiva, atuando para não perder direitos anteriormente
conquistados, a discussão sobre o fim da escala 6×1 conseguiu furar a bolha e
dialogar com grupos não identificados necessariamente com a esquerda,
justamente por tocar em uma questão material vivida diariamente por milhões de
trabalhadoras e trabalhadores brasileiros.
Embora os últimos embates públicos tenham ocorrido com a
esquerda jogando no campo do adversário, a discussão sobre a redução da jornada
obrigou setores da direita a disputarem o jogo em um campo que lhes é estranho.
Em síntese, “criar um campo no qual o adversário é obrigado a se mover” é
uma forma de controlar os movimentos do oponente.
Se um dos sintomas do “realismo capitalista” é a redução dos
horizontes políticos – pois é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim
do capitalismo –, o engajamento de milhões de pessoas em torno de uma pauta que
prega uma vida além do trabalho nos dá algumas pistas sobre as disputas capazes
de tocar o desejo de diferentes frações da classe trabalhadora e,
simultaneamente, confrontar o avanço da extrema direita no Brasil e no mundo.
Nos mostra, também, que um dos desafios do nosso tempo é explicitar que as
lutas relacionadas à gênero, raça, sexualidade e classe social possuem um
elemento unificador, qual seja, o anticapitalismo.
·
Histórico de lutas e
caminhos para o presente
A redução da jornada laboral é uma reivindicação antiga e
presente no repertório da classe trabalhadora ao longo da sua história. Desde
os primórdios do capitalismo, a luta de classes tem sido expressa na disputa
pela apropriação de mais de tempo de trabalho por parte dos capitalistas, ou
pela redução e maior tempo de vida social por parte dos trabalhadores.
No Brasil, a Greve de 1917, que simboliza o início das grandes
mobilizações operárias, teve como pauta, para além de melhores condições de
trabalho e vida social, a redução da jornada para 8 horas diárias e uma semana
de cinco dias e meio de trabalho. Antes, a jornada podia chagar a até 16 horas
por dia. As reformas implantadas com o golpe de 2016, embora tenham
pregado uma modernização das leis trabalhistas e melhores condições de vida à
população, entregaram, na verdade, um retrocesso geral sobre o conjunto de
direitos e conquistas da classe trabalhadora.
É preciso levar em consideração que as contrarreformas
trabalhistas, a implantação das TICs e de políticas neoliberais, defendidas
pela burguesia e seus porta-vozes midiáticos, são mecanismos eficientes para
intensificar a superexploração da classe trabalhadora. Marx, em O
capital, já havia nos alertado que cada progresso econômico no capitalismo
constitui simultaneamente uma calamidade social.
É o que temos presenciado desde pelo menos a década de 1970, com
as reestruturações produtivas e a introdução das TICs, cujo resultado tem sido
o aumento do desemprego e das desigualdades sociais, que se apresentam como
“altamente gratificantes” para os interesses do mercado, já que possibilita o
crescimento do exército industrial de reserva, a competição entre os
trabalhadores e a corrosão da solidariedade de classe.
A luta pela redução da jornada de trabalho não é apenas
legítima, mas também necessária, pois representa uma confrontação direta da
exploração capitalista sem medidas. A organização dos trabalhadores mundo afora
pela redução da jornada laboral é a esperança da classe trabalhadora de sair do
inferno capitalista moderno, que tem levado as pessoas ao burnout,
depressão, crises de ansiedade, entre outras doenças psíquicas. Em síntese, as
condições de trabalho no neoliberalismo massacram os indivíduos não apenas
fisicamente, mas também mentalmente, impondo uma vida exaustiva e degradante
para a maioria da população.
As políticas que atacam diretamente os direitos trabalhistas nos
últimos 40 anos, por meio das terceirizações, flexibilização da jornada de
trabalho, desregulamentação da CLT, ampliação da pejotização e das noções de
empreendedorismo e trabalho autônomo, exercem uma pressão sob o tempo de
trabalho, agindo principalmente na extensão da jornada para além do
estabelecido pelas leis burguesas. Muitas vezes essa ampliação da jornada
de trabalho não é paga pela forma salário, mas sim por meio de banco de horas,
consumindo o tempo de vida social do trabalhador.
Ao mesmo tempo, é preciso reforçar que a escala 6×1 afeta
principalmente as mulheres, que em sua grande maioria exercem dupla jornada de
trabalho, fora e dentro de casa, agravando ainda mais as questões relacionadas
à reprodução social, divisão do trabalho doméstico e dos cuidados. Não é por
acaso que entre os 70% dos brasileiros que apoiam a pauta, a adesão chega a ser
até 10% maior entre as mulheres. A população negra e periférica também são as
camadas sociais mais impactadas por essa escala, pois exercem os trabalhos mais
precários, com baixa remuneração e sem proteção social. Em outras palavras, as
pessoas obrigadas a trabalhar nesta escala possuem raça e gênero muito bem
definidos.
A plataformização do trabalho, com jornadas de 12h impostas a
motoristas e entregadores de APPs, é um exemplo de como os capitalistas
atualizam as formas de expropriar o tempo de vida da
classe-que-vive-do-trabalho. Portanto, o progresso tecnológico sob o capitalismo
tem como pressuposto uma regressão social cada vez mais dramática para a
população. O capitalismo, para continuar seu desenvolvimento constante de
autovalorização, retira todo o sentido do trabalho e o reconhecimento por parte
do trabalhador daquilo que é produzido. Nesse sentido, ele subordina toda a
existência dos indivíduos às necessidades do seu desenvolvimento.
·
Construir unidade na
luta e apresentar pautas ofensivas
O inferno capitalista propicia ao trabalhador apenas um tempo de
“não-vida”, não reconhecimento de si, anulando sua autonomia e o tempo do bem
viver, que se apresenta na realidade capitalista insuficiente para a reprodução
social e do lazer. Isso porque a extensão da jornada de trabalho é acompanhada
da diminuição ou desvalorização da forma salário relativa, que é o que
possibilita, sob o capitalismo, o acesso às mercadorias e serviços.
Se a vida do trabalhador é cada vez mais sofrida e explorada, é
preciso não perder de vista que a concentração da riqueza e o surgimento de
bilionários têm crescido de maneiras alarmantes desde pelo menos os anos de
1970. No Brasil, 63% da riqueza social está nas mãos de 1% da população, o
que deveria ser inadmissível para os defensores do “progresso” brasileiro.
Lutar pela redução da jornada de trabalho em busca de maior qualidade de vida
passa, também, pela construção de um sistema tributário progressivo, com a
taxação de grandes fortunas, lucros e dividendos e de heranças.
Em síntese, garantir a distribuição da riqueza socialmente
produzida, fazendo com que o Estado não aja como um Robbin Hood às avessas.
Ademais, economistas já demonstraram que a redução da jornada não é apenas
viável economicamente, como apontaram que experiências que adotaram a escala
4×3 tiveram ganhos de produtividade.
Devemos reforçar a proposta apresentada pela deputada Erika
Hilton, que além de propor melhorias na negociação coletiva, busca pautar o
Congresso Nacional e a sociedade brasileira sobre um tema essencial para a vida
da classe trabalhadora. Simultaneamente, é preciso fortalecer as lutas do
movimento Vida Além do Trabalho e transformar a disputa pelo fim da escala 6×1
em uma disputa nas ruas, apontando caminhos possíveis e concretos para a
população.
No cenário atual, diante do avanço da extrema direita mundo
afora e da regressão de direitos trabalhistas, a luta pela redução da jornada
de trabalho é uma das disputas mais importantes que se apresentam para o
reequilíbrio de forças. Portanto, a unidade entre os diferentes setores da
classe trabalhadora, a partir de pautas que dialoguem com suas necessidades
concretas, é fundamental para construção de horizontes anticapitalistas capazes
de colocar a esquerda em uma posição ofensiva e propositiva na conjuntura
política atual.
Fonte: Por Ederson Duda e Matheus Silveira de Souza, em A
Terra é Redonda
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