Como
o povo Kadiwéu conseguiu suspender a publicação de livro francês sobre sua arte
Um dos principais observadores das artes Kadiwéu foi o
antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que visitou aldeias no Mato Grosso do
Sul no início do século 20 e registrou em fotografias os grafismos que adornam
pinturas corporais, feitas com tinta à base do fruto jenipapo, e as
tradicionais cerâmicas. As guardiãs de tão rica tradição são as mulheres
Ejiwajegi – como se autodenominam os Kadiwéu –, que preservam a memória de seu
povo enquanto atuam como empreendedoras, gerando renda com
suas criações.
Imersas nos desafios que os povos originários no Brasil
enfrentam desde o período de exploração colonial, elas agora encaram outra
provocação: imagine se alguém escrevesse um livro sobre seus antepassados sem
consultar a sua família. Estranho, não? Pois foi exatamente isso que aconteceu
com as mulheres Kadiwéu.
Em 1935, na aldeia Nalike, localizada próxima ao que
hoje corresponde à aldeia Alves de Barros, na cidade de Porto Murtinho (MS),
Claude Lévi-Strauss esteve com os Kadiwéu e recebeu de presente, das mulheres
indígenas, vários desenhos.
As produções artísticas permaneceram guardadas no
arquivo pessoal do antropólogo por décadas, até que sua esposa, Monique
Lévi-Strauss, encontrou a pasta contendo mais de 30 desenhos originais — os
tais presentes. Quem se interessou pelas artes, até então nunca divulgadas, foi
a editora francesa Seuil, que organizou a publicação em um novo livro, Peintures caduveo – Suppléments à Tristes Tropiques (Pinturas Caduveo – Suplemento a Tristes Trópicos),
celebrando os 50 anos do renomado clássico Tristes Trópicos, trabalho que
ganhou fama internacional pela relevância das análises estruturais relacionadas
aos povos indígenas brasileiros. O problema é que ninguém consultou o povo
Kadiwéu antes de publicar esses desenhos.
estava divulgando o pré-lançamento do livro (pelo valor
de 21 euros, cerca de R$ 130, em seu site), com lançamento previsto para
ocorrer em novembro, na capital francesa. Diante da circunstância, os Kadiwéu
organizaram uma mobilização composta por lideranças indígenas, pesquisadores e
antropólogos, e redigiram uma carta aberta dirigida à
sociedade e à imprensa brasileira, buscando ampliar o debate em torno do
reconhecimento e da estima de sua cultura e identidade. A divulgação dos
desenhos levanta questões pertinentes relacionadas a quem será beneficiado pela
comercialização da reprodução dessas artes.
“O patrimônio cultural material e imaterial das
mulheres Ejiwajegi/Kadiwéu deve ser respeitado como propriedade intelectual
coletiva, sendo imperativa a devida autorização da comunidade para sua
utilização”, consta um trecho da carta.
O documento chegou à editora, que entrou em contato com
uma representante Kadiwéu e resolveu suspender o lançamento e a comercialização
do livro por tempo indeterminado. Até o link do livro foi retirado do ar. A
negociação para a participação dos indígenas na obra segue em andamento.
<><> A fala como lugar de vivência
A falta de consulta prévia por parte da editora
francesa Seuil ressalta a desconsideração pela voz e pelos direitos dos povos
indígenas. Essa situação ilustra como a arte indígena é frequentemente tratada
como um objeto exótico, sem considerar o profundo significado cultural que
carrega. Quando livros são publicados sem o consentimento dos artistas e sem o
envolvimento dos indígenas, a autenticidade da narrativa é comprometida,
perpetuando a invisibilidade e o silenciamento dos povos originários.
“Essa é uma reivindicação fundamental que reflete a
luta contínua dos povos indígenas pela valorização de suas culturas”,
relata Benilda Vergílio, da etnia Kadiwéu, designer, estilista de moda autoral
e mestranda em Antropologia Social na Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS). “A propriedade intelectual de grafismos, desenhos e pinturas é uma
extensão da identidade e memória coletiva dos Kadiwéu, e é vital que essa
herança cultural seja respeitada e protegida. A consulta prévia é um direito
garantido pela Constituição e deve ser respeitada em projetos que envolvem a
cultura indígena. É fundamental que a voz das comunidades indígenas seja
considerada de maneira justa e autêntica.” Ela é bem enfática ao afirmar que
seu povo não está interessado no dinheiro que a circulação do livro poderá
movimentar, mas na inclusão dos indígenas na concepção dele.
Em outro momento, a carta diz: “nós, do povo Ejiwajegi
Kadiwéu, que somos descendentes das mulheres que fizeram os desenhos dados a
Lévi-Strauss, vimos com espanto a falta de diálogo com o nosso povo durante
esse processo. Em nenhum momento fomos consultados acerca do nosso
posicionamento acerca dessa publicação. (…) Tendo em vista que esses desenhos
são patrimônio do povo Ejiwajegi Kadiwéu, que são fruto de um conhecimento que
é transmitido de geração a geração, acreditamos que nosso posicionamento é
essencial para o lançamento de uma publicação que se refere a esses desenhos”.
Para o antropólogo Gilberto Pires, que também pertence
ao povo Kadiwéu, é “horrorizante” perceber que, em pleno século 21 ainda
existem pessoas que não se importam com as narrativas indígenas, especialmente
com a memória dos antepassados — algo que deveria ser motivo de orgulho para
todos os brasileiros, por fazer parte da história do país. Contudo,
lamentavelmente, isso não acontece.
“Talvez sejamos menos importantes para o Estado
brasileiro”, avalia Gilberto. “Deveríamos participar mais na construção de
opiniões, e a sociedade envolvente deveria se desvincular da velha imagem das
escolas do passado, que orientavam que, para ser indígena, tem que usar tanga,
uma pena na nuca e dar aquele gritinho ridículo. Precisamos ensinar a
importância do indígena na construção do Brasil, que lutou contra vários
invasores que queriam ocupar o país de qualquer jeito. Até a consolidação, os
soldados foram sempre os indígenas.”
Nas palavras de Benilda, é compreensível sentir uma
mistura de indignação e emoção ao recordar as memórias de seus ancestrais, que
evocam a dor da perda e a importância dessas pessoas para a história dos
Kadiwéu. É um momento de reflexão e celebração da vida delas, mesmo diante
dessa situação. Quando questionada sobre a apropriação cultural no caso da
publicação, ela acrescenta que a mobilização de vozes externas em nome de
comunidades indígenas pode distorcer os relatos e silenciar os protagonistas
legítimos. “A luta pela autonomia e representação justa é essencial para a
valorização e preservação das culturas indígenas”, diz.
<><> Arte e identidade
Não é a primeira, nem será a última vez que os povos
originários enfrentam situações de apropriação e desrespeito em relação às suas
produções culturais, intelectuais e artísticas. Infelizmente, como bem pontua a
antropóloga e professora da UFMS, Maria Raquel Duran, com nosso histórico
colonial, apagamentos, roubos e usufrutos sem a participação dos envolvidos se
tornaram comuns na interação com as diversas etnias indígenas que habitam o
Brasil.
De acordo com Raquel, os Ejiwajegi se manifestaram de
forma assertiva na carta-manifesto contra o uso de sua arte para benefício não
indígena, sem o devido reconhecimento, ressarcimento ou repartição dos valores
obtidos. “Tal prática, recorrente no contexto da arte indígena em geral, seja
no Brasil, seja internacionalmente, gera indignação justamente por utilizar
desses saberes e expressões culturais como se eles não tivessem donos, como se
fossem de domínio público, e não precisassem de autorização das artistas,
porque não estão registrados nos regimes de saber fechados ocidentais, como
patrimônios culturais ou direitos autorais. Ainda que não participem desta
lógica, os saberes e fazeres indígenas têm donos; e o que povos indígenas como
os Ejiwajegi querem é mais respeito com suas expressões artístico-culturais.”
Segundo a antropóloga, o que se observa é a repetição
de um padrão colonialista ultrapassado, que afeta não apenas os indígenas em
questão como igualmente a própria antropologia produzida no Brasil. Ela destaca
a necessidade de os indígenas e seus apoiadores se posicionarem diante dessas
ocorrências, para que práticas desse tipo cessem. “Quando o autor do posfácio,
Michel Pastoureau, afirma que os desenhos possibilitam aos leitores ‘deixar-nos
levar pelo inefável poder onírico dos signos: incompreendidos, secretos,
silenciosos, conduzem furtivamente o investigador para esta outra parte do
mundo’, demonstra não ter conhecimento da produção científica brasileira desta
área”. Na sua opinião, é preciso transformar a maneira como a sociedade
interage com as artes e os conhecimentos indígenas, buscando o respeito e a
valorização dessas culturas.
· Ranço
colonial
Gabriela Freire, pesquisadora em Antropologia na
Universidade de São Paulo (USP), foi quem alertou os indígenas a respeito da
publicação francesa. Sua pesquisa de doutorado percorre o histórico da
constituição de coleções museológicas dos Ejiwajegi/Kadiwéu, especialmente
durante a primeira metade do século 20. Ela conta que os grafismos sempre
chamaram a atenção dos europeus, tanto pela sua originalidade e beleza quanto
pelo fato de cobrirem superfícies das mais diversas, como a pele das pessoas, o
couro dos animais domesticados, instrumentos musicais e cerâmicas, entre
outros.
Em 1935, quando Claude Lévi-Strauss e sua então esposa
Dina Dreyfus visitaram os Ejiwajegi, trouxeram uma novidade à prática de
registro dos grafismos: pediram que as próprias mulheres os desenhassem em
dezenas de folhas de papel, para que nenhum detalhe fosse perdido e para que
esses desenhos pudessem ser comparados posteriormente. “Infelizmente, embora
tenham sido as próprias mulheres Ejiwajegi a realizar os grafismos que foram
guardados pelos pesquisadores, não foram registradas muitas informações no que
diz respeito a quem elas eram ou seus nomes. De certa maneira, esses registros
dos grafismos solicitados pelo casal europeu são testemunhas tanto da história
Ejiwajegi quanto da história da Antropologia, pois documentam, de um lado,
práticas artísticas indígenas e, de outro, práticas de documentação e pesquisa
antropológicas”, explica Gabriela.
Ela segue discorrendo que a presença desses grafismos
em um livro que privilegia apenas uma das partes – o olhar dos antropólogos
europeus –, sem consulta aos indígenas, evidencia como a relação de poder entre
pesquisadores não indígenas e os povos originários é marcada pelo desequilíbrio
de forças. “Na maior parte das vezes, são os antropólogos que detêm a palavra
sobre os indígenas e suas práticas, enquanto estes pouco são consultados quanto
às ações daqueles”. Freire considera que persiste uma dinâmica extrativista de
muitos pesquisadores não indígenas em relação aos conhecimentos desses povos,
na qual o saber não é construído por meio do diálogo, mas sim pela apropriação
de saberes.
No contexto atual, ela analisa que as instituições que
guardam itens indígenas têm sido cada vez mais cobradas a estabelecer um
diálogo com as populações originárias – como aconteceu com a repatriação ao Brasil, em julho de 2024,
de 583 itens indígenas procedentes do Museu de Lille, na França –, a fim de
decidir em conjunto com elas qual será o destino desses artefatos. Nesse
sentido, é inaceitável que seja publicada uma obra com grafismos Kadiwéu sem o
devido diálogo com este povo.
O caso evoca outra polêmica recente, como a
repatriação, em julho de 2024, de um manto Tupinambá que fazia
parte do acervo do Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhague. Embora o retorno
da peça tenha sido celebrado, ele ocorreu sem o envolvimento direto de seus
descendentes, como havia sido planejado.
Contatada pela Rádio França Internacional (RFI) para comentar
o assunto, Monique Lévi-Strauss, de 98 anos, descreveu seu sentimento de
frustração: “Eu gostaria que fossem publicados, porque sem isso, Deus sabe o
que vai acontecer. Veja, eles estão na minha casa, podem ser perdidos,
queimados, roubados. Então, pensei que a melhor maneira de os preservar seria
publicá-los. Meu marido tinha o maior respeito pelos indígenas no Brasil,
e Tristes Trópicos mostra
isso. Ele certamente teria ficado muito feliz em ver os desenhos publicados”.
Fonte: Mongabay
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