terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Manuel Domingos Neto: Rumos para o quartel atordoado

Como o general arranjou o dinheiro entregue aos facínoras que abateriam autoridades? 

O rol dos delatores premiados deve crescer. Mais denúncias corrosivas surgirão. Caixas pretas podem ser abertas. O sensacionalismo dos jornais manterá a prolongada tritura da imagem do militar. O festival de ambições mesquinhas, rivalidades deletérias, rixas pessoais, expedientes sórdidos e infindáveis procedimentos à margem da lei não têm prazo para terminar. 

A ignomínia dos que pretendiam incendiar o país e assumir o poder de costas para a Lei nutrirá cotidianamente a fereza do brasileiro mediano. 

A exposição negativa do quartel é o preço da jornada macabra, iniciada bem antes do governo Bolsonaro. A quebra da institucionalidade sobrepassa a tentativa tabajara de mantê-lo no poder de qualquer jeito. O planejamento de assassinatos e o quebra-quebra nos palácios resultam de processo alongado e ainda mal descrito. 

Para recompor sua imagem, o quartel terá que responsabilizar os que, por décadas, açularam as entranhas do ultraconservadorismo e exaltaram a ditadura. 

Os lances visando a imposição de um regime autoritário incluem as prisões arbitrárias do mensalão, a interrupção do mandato de Dilma, a condenação de Lula, o acicate dos milhões de integrantes da “família militar”, a condução grotesca de Bolsonaro ao Planalto, a pregação negacionista durante a pandemia, a busca alucinada de sinecuras na administração pública, as operações psicológicas visando interferir no humor popular, os conluios com estrangeiros inimigos do Brasil e a contestação das urnas eletrônicas. 

Os comandantes refratários ao ativismo político nos quartéis perceberam tardiamente o potencial desagregador da militância ultrarreacionária nas fileiras. Comparações de quadros históricos são sempre questionáveis, mas seria difícil lembrar o constrangimento moral do castrense como o que hoje atordoa o quartel.

Aos poucos, os sicários estão sendo incriminados. Alguns serão expulsos com desonra das corporações, configurando caso raro na história nacional. 

O democrata brasileiro terá seu momento alegre com a prisão de ícones do golpismo. Que pense nos animais domésticos, nos autistas, e festeje sem soltar foguetes.

A recomposição da imagem das fileiras exige expurgos arriscados. Pode haver quebra da cadeia de comando. Chefes serão testados. Desavenças entre as corporações podem eclodir. O marinheiro escancarou essa semana sua indocilidade agredindo quem lhe garante o soldo. 

O golpismo parece momentaneamente contido. Mas vale lembrar: trata-se de recurso inerente ao ultraconservadorismo, que mostrou força nas últimas eleições. Veleidades de democracia, soberania e desenvolvimento socioeconômico persistirão combatidas. Lula governa fortemente contingenciado. Na peleja ideológica em curso, parece não sobrar espaço para mudanças sociais imprescindíveis. 

Não obstante, cabe debater a construção da legitimidade do quartel porque, sem instrumento de força respeitado, o Estado soberano e democrático é uma quimera. 

Que tal algumas iniciativas em benefício da Defesa Nacional? O Brasil precisa se inserir dignamente em um cenário global que anuncia guerra generalizada. 

Na busca de legitimação, as fileiras podem ganhar pontos suprimindo gastos perdulários e se preparando para guerrear de verdade. 

A extinção de centenas de unidades militares inúteis para responder ao agressor estrangeiro seria aplaudida. O avanço na capacidade aeronaval, também. O estrangeiro pérfido não será abatido com tiros de fuzil. Rambos não impedirão um eventual bloqueio de nosso comércio internacional.

Precisamos de mísseis hipersônicos, aeronaves, barcos, drones e satélites inteiramente fabricados aqui, com o saber brasileiro. A dependência externa em armas e equipamentos atesta o fracasso da Defesa Nacional.

É hora de redução de efetivos em benefício de uma capacidade defensiva real.

Para afirmação da soberania, o gesto de maior significado seria o fechamento das obsoletas comissões militares na Europa e nos Estados Unidos, heranças das guerras mundiais reveladoras de um atrelamento que nos fez mal. 

Apelos à coesão nacional seriam fundamentais. O mais espetacular seria um agradecimento do Comando da Marinha ao Almirante Negro. Ninguém contribuiu mais que João Cândido para reduzir a pecha escravista da Armada.

Entretanto, o ponto alto da afirmação do quartel como instrumento da vontade brasileira, seria a redefinição de seu papel constitucional. 

A Carta precisa interditar o uso das Forças Armadas contra brasileiros e destiná-las exclusivamente ao combate aos agressores estrangeiros.

A garantia da Lei e da Ordem deve ser entregue às instituições que lidem com a cidadania. A vigilância da costa marítima e da fronteira terrestre são deveres policiais. Segurança Pública não é especialidade militar. 

O distúrbio de personalidade funcional das fileiras, provindo do regime imperial-escravista, finalmente, desapareceria. Trata-se de passo fundamental para evitar delírios militaristas. 

Com missão claramente definida, o quartel teria melhor chance de se aprumar. Quem sabe, proteger-se-ia melhor de atordoamentos inglórios e deixaria a sociedade definir seu rumo sem sobressaltos.

 

¨      Ganhamos uma batalha, mas a guerra continua. Por Paulo Moreira Leite

Em 2022, a lamentável história dos golpes de Estado cometidos em nosso país apresentou um capítulo grave e preocupante,  como se descobre pela leitura da Petição 13.236, assinada pelo ministro do STF Alexandre Moraes em 17 de novembro de 2024.

Em 74 páginas redigidas em linguagem acessível, distante do burocratês que é padrão em trabalhos semelhantes, o documento apresenta uma narrativa consistente sobre uma  conspiração de militares de extrema-direita que, no final de 2022 se mobilizaram de forma criminosa e ilegal para impedidr a posse Lula-Alckmin no Planalto.    

Dispensando adjetivos e interpretações fora de lugar, a Petição 13.326 prioriza os fatos e apenas eles, evitando elucubrações excessivas e afirmações que não seria possível demonstrar.

Graças a sua consistência, a Petição cumpre o único objetivo legítimo de um documento dessa natureza: narrar os movimentos ocultos de uma operação que pretendia impedir -- pela violencia mais selvagem, inclusive assassinato de adverários políticos  -- a posse do governo Lula-Alckmin, eleito pela maioria dos brasileiros.

Numa orientação criminosa que é descrita sem adjetivos, a Petição deixa claro que o golpismo de 2022 guarda diferenças importantes em comparação com os antecessores, a começar pelos métodos de ação  política -- abertamente criminosos e violentos, próprios de uma operação de guerra contra o próprio povo de seu país.

Mesmo conservando a bússola reacionária que orientou o 31 de março de 64, que derrubou o governo Goulart, e também o dezembro de 1968, que criou a excrescência autoritária chamada AI-5, a geração golpista de 2022 tentou ir além.

Programou e ensaiou o assassinato de lideranças políticas nacionais, numa relação na qual os dois primeiros da lista eram ninguém menos que o moderado Luiz Inácio Lula da Silva, o mais popular lider político da história do país, e o vice, Geraldo Alckmin, homem público de conhecida formação conservadora, inclusive no plano religioso.   

O terceiro alvo seria Alexandre de Moraes, ministro do STF, onde foi instalado por determinação do então presidente Michel Temer.

Responsável por iniciativas decisivas no esforço para barrar um golpe de Estado em fase de preparativos, quando os resultados oficiais da eleição presidencial de 2022 já haviam sido anunciados mas Lula não assumira o terceiro mandato, Alexandre de Moraes tornou-se, ao lado de Lula e Alckmin, um dos três alvos principais dos militares organizados na operação Copa 2022, nome de guerra do golpe entre os conspiradores.

Num comportamento comum nos preparativos de um atentado político, o ministro da Justiça era monitorado pelos espiões de farda, em ações operacionais que "tinham como finalidade assegurar a prisão da referida autoridade, caso o golpe se consumasse, ou de maneira alternativa, sua execução", informa-se na página 3 da Petição 13.236, documento que denuncia um projeto de ditadura sem receio de chamar as coisas por seu nome.

Ao conceber propostas de assassinar adversários, inclusive lideranças populares, a extrema direita demonstrou um novo grau de perversidade, ainda menos compatível com a tolerância tão celebrada pelos estudiosos da formação cultural brasileira.

Capaz de mandar prender golpistas numa situação de beira de abismo, os próximos passos do governo Lula e do universo político que ele representa serão decisivos na preservação de um regime de liberdades indispensável à vida de brasileiros e brasileiras. 

À Justiça caberá julgar e punir os responsáveis por uma ação criminosa, sem aceitar panos quentes nem favores que só alimentarão novas investidas contra a democracia -- mas cedo do que se quer imaginar.

Cabe a Lula e aos aliados, desde já, um esforço político para mobilizar a população, colocando o país de pé para impedir um retrocesso que só beneficiará a grã-finos e parasitas de sempre.

Alguma dúvida?

 

¨      Mitos idealistas: Batalha dos Guararapes e tutela militar. Por  Jorge Folena

Existem muitos mitos na história do país, entre eles o da fundação do Exército no Brasil, que precisam ser esclarecidos, pois induzem a uma suposta superioridade da instituição em relação ao povo, que é a essência do Estado brasileiro.

Os artífices da mistificação partem das ideias contidas na Filosofia do Direito, de Hegel, que considera que a livre manifestação de vontade individual forma a família, que dá origem à sociedade civil burguesa, que, por sua vez, forma o Estado.

No prosseguimento dessa construção hegeliana, o Estado não é controlado pelo povo (que por meio da sua vontade o constituiu), mas por uma monarquia constitucional, que se posiciona acima da população e se respalda na força militar, para manter-se no poder e controlar a soberania nacional, que, nessa visão, é de conteúdo institucional e não popular.

Essa construção existe para garantir o sistema de proteção da propriedade particular e a troca mútua de interesses privilegiados, pela qual se permite que o monarca exerça o poder do Estado para garantir a segurança da propriedade individual, desde que o faça utilizando a força militar (que se posiciona como uma linha média de estamento), que, por sua vez, recebe em troca vantagens especiais e diferenciadas em relação aos demais integrantes da sociedade. 

Por esta concepção, o que se defende, ao final, são os interesses de grupos particulares, existentes dentro de um Estado formal; ao contrário do que se espera, não se defende a pátria (conjunto da população e das riquezas coletivas, submetidas ao Estado).   

As ideias expostas até aqui nos permitem examinar com propriedade a manifestação de Aldo Rebelo, quando Ministro da Defesa do governo Dilma Rousseff, em discurso de 19/04/2016, em que homenageou a fundação do Exército brasileiro de modo a agradar os militares:

“Na data de hoje, o Brasil comemora o aniversário da Primeira Batalha dos Guararapes – episódio fundador de nossa nacionalidade. A vitória no campo dos Guararapes, em Pernambuco, em 1648, definiu o triunfo sobre o invasor holandês e, acima de tudo, o destino e o futuro do Brasil. Nas palavras de Gilberto Freyre, quando a Batalha completava 300 anos, em 1948: ‘Nas duas batalhas dos Guararapes escreveu-se a sangue o endereço do Brasil: o de ser um Brasil só e não dois ou três. O de ser um Brasil fraternalmente mestiço, na raça e na cultura.

(...)

As três etnias que formaram a miscigenação nacional a partir de Guararapes são representadas pelas figuras dos três líderes da Batalha: o índio potiguar Filipe Camarão, que comandou o destacamento indígena; o negro Henrique Dias, filho de escravos africanos libertos, que comandou o destacamento negro; e o mazombo André Vidal de Negreiros, que comandou o destacamento de mestiços e brancos. O Brasil herdou a grandeza desses antepassados e precisa consolidar uma Política de Defesa compatível com essa grandeza, tanto em relação ao aspecto espiritual, forjado na abnegação e no patriotismo que guiaram a vida dos heróis de Guararapes, quanto em relação ao destino geopolítico do País.”

Ao nosso ver, o racionalismo incontido omitiu que, entre 1647 e 1650 (período das duas batalhas dos Guararapes, travadas entre Portugal e Holanda), o Governador Geral do Brasil era Antonio Teles de Meneses (Primeiro Conde da Vila Pouca), pois o Brasil era à época uma colônia portuguesa, que, em 1640, passou a ter alguns governadores gerais, agraciados com o título de vice-reis.

Como se pode verificar, é impossível que o Exército brasileiro (como instituição) tenha sido constituído nas batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), na medida em que sequer existia um Estado brasileiro, não existindo, muito menos, um povo brasileiro, em sua essência, naquele período. Ademais, uma instituição burocrática, por mais importante que seja, não tem o poder de fundar uma sociedade e muito menos um Estado; pois, sem qualquer dúvida, a instituição apenas integra o Estado e não pode estar acima dele.

Neste ponto, a partir do momento em que se entende que o Estado é constituído pela sociedade, ofende a lógica afirmar que a sociedade seja constituída pelas instituições. Da confusão desses termos surge um grave problema interpretativo, que faz com que, da fundação da República (1889) até hoje, alguns militares se achem no direito de estar à frente da população, acreditando-se os mais capacitados, por suas armas, para superar as crises políticas e sociais, mediante a imposição de uma tutela que despersonaliza a vontade da população. 

Com efeito, essa construção espiritual que sugere a formação de um Exército brasileiro em 1648/1649, quando o Brasil sequer existia (tendo os portugueses cooptado índios e negros para lutarem ao seu lado contra os holandeses), é utilizada com a finalidade de garantir uma ordem tutelar muito próxima da filosofia do direito hegeliana, que foi construída para justificar o poder do monarca. 

Portanto, trata-se de uma tutela para fins de “interesses singulares”, e não coletivos, que, por isso, não se coaduna com a defesa permanente da pátria, cuja essência é o povo e as riquezas coletivas da sociedade. Assim, é equivocada a atuação de forças militares que se restringem à proteção de interesses privados; e seus integrantes não podem manifestar nem impor seu pensamento como se fossem ordens oficiais para cumprimento por toda a sociedade.

Por fim, vale registrar que, em razão das batalhas de Guararapes, Portugal perdeu para a Holanda os territórios do atual Sri Lanka (antes Ceilão) e Indonésia (antes Ilhas Molucas) e teve que indenizar a Holanda em mais de 63 toneladas de ouro, conforme convencionado no Tratado de Paz, firmado em Haia, em 1661. 

 

¨      A ideologia do Haiti e os kids pretos. Por Chico Teixeira

A chamada "Ideologia do Haiti" - o uso massivo de forças militares, em especial dos "Kids pretos", contra a população civil, numa evidente confusão entre "Defesa" e "Segurança" - tem sua origem no Western Hemisferic Center of Security Cooperation, antiga "Escola das Américas", em Fort Bening, nos EUA. 

A doutrina previa transformar os exércitos latino-americanos em força policial para consolidar as políticas de repressão ao narcotráfico, ao contrabando e à migração de "indocumentados". Assim, o custo social de tal repressão ficava fora dos EUA, não criando tensões raciais e sociais no interior dos EUA. 

Da mesma forma, o pretenso heroísmo do Haiti desempenhou um papel na gestação do golpe bolsonarista idêntico ao papel da FEB para o golpe de 1964. Ocorre que a FEB de fato lutou, e morreram por isso, contra o fascismo. Os kids pretos lutaram contra um povo pobre, negro e faminto.

 

Fonte: Brasil 247

 

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