Secam rios voadores e… as hidrelétricas do
Brasil
Omamari a é como os
povos ianomâmis chamam o espírito do Sol. Quando a floresta é incendiada, eles
acreditam que a entidade pousa os pés na copa de árvores e pisoteia as águas
que irrigam as colinas, as montanhas e as fazendas de onde vem o fogo, produzindo
assim as ondas intensas de calor. “Por isso que todos os xamãs trabalham juntos
durante esse tempo (de seca). Chamamos a chuva. Nossos espíritos lançaram
jorros d’água sobre as chamas e seus ventos no ataque à fumaça”, escreve o xamã
Davi Kopenawa em um dos capítulos do livro O Espírito da Floresta, feito em
parceria com o antropólogo francês Bruce Albert.
A versão científica da
crença ianomâmi tem nome: rios voadores. São correntes de ar que partem da
Amazônia, margeiam o Leste da Cordilheira dos Andes e transportam umidade para
boa parte do Brasil. É o que garante a vazão dos rios e, consequentemente, a irrigação
das plantações. Mas isso só acontece, claro, se existirem árvores no caminho.
Elas formam um corredor que recarrega essas correntes de ar com umidade e
permite a chegada da água a milhares de quilômetros da floresta.
Ao passar por uma área
desmatada, essas correntes de ar perdem umidade – já que não têm o corredor
formado pelas florestas – e a força das
chuvas no trajeto.
Em tempos de seca e
queimadas, esses rios voadores secam e se transformam em rios de fumaça. Como
se de fato alguém pisoteasse uma mangueira hídrica que move o país. No caso
literalmente, já que a hidroeletricidade, cada vez mais ameaçada pela falta de
chuvas, é a principal fonte de geração do sistema elétrico brasileiro (60,2% da
geração total em 2023).
Nada menos do que 17
das 20 hidrelétricas com maior capacidade no Brasil estão no caminho dos rios
voadores, e o impacto da devastação já foi cientificamente mensurado em duas
delas. É o que aponta um estudo do projeto Amazônia 2030, uma iniciativa de pesquisadores
brasileiros para desenvolver um plano sustentável para a maior floresta
tropical do planeta, e do Climate Policy Initiative (CPI) da PUC-Rio.
Intitulada (Des)matando as hidrelétricas: a ameaça do desmatamento na Amazônia
para a energia do Brasil, a pesquisa parte da análise de dois casos para
explicar por que a água não está chegando aos reservatórios. O relatório contou
com apoio financeiro de Instituto Clima e Sociedade (iCS), Itaúsa e Norway’s
International Climate and Forest Initiative (NICFI).
Para calcular a
influência da floresta na formação dos rios voadores e seu impacto nas usinas
hidrelétricas, o estudo toma como base o desmatamento de aproximadamente 690
mil km², acumulado entre 1985 e 2020, no bioma Amazônia. A partir deste dado,
os pesquisadores simularam um cenário sem esse nível de desmatamento para
estimar o volume de chuva ausente e os
respectivos prejuízos.
O primeiro exemplo é a
Usina Hidrelétrica Teles Pires, localizada entre os estados de Mato Grosso e
Pará. Com início de operação em 2015, ela tem
potência de 1.820 megawatts. A unidade já opera todos os meses com perdas
entre 2,5% e 10% como resultado do desmatamento e da falta de chuvas. Isso
significa uma redução de 118 milhões de reais de sua receita anual e diminuição
da oferta de energia para, ao menos, 330 mil pessoas.
Outros exemplos
estudados são três usinas da Bacia do Paraná, entre Goiás e Mato Grosso do Sul:
Salto, Salto do Rio Verdinho e São Domingos, todas com potência bem inferior
(116 mw, 93 mw e 48 mw, respectivamente) à de Teles Pires. De acordo com a
pesquisa, elas foram escolhidas não só pela relevância da região na oferta de
eletricidade ao país, mas porque têm pouca capacidade de armazenamento de água,
o que permite observar o efeito direto da vazão do rio nas instalações.
Constatou-se que, entre 2000 e 2022, as perdas de geração de energia tiveram
média de 3% e queda de 10% do lucro nas três hidrelétricas, mesmo estando a
quilômetros da floresta tropical e do cenário de desmatamento.
As consequências desse
esvaziamento são drásticas, a começar pelo bolso do consumidor, que tende a
conviver com tarifas cada vez mais altas caso a geração hídrica entre em
bandeiras vermelhas devido à estiagem ou – pior – seja substituída por
termeletricidade, com severo impacto ambiental da energia produzida a partir de
recursos fósseis.
A partir dos dois
casos estudados, é possível concluir que o desmatamento na floresta amazônica
pode já ter reduzido em até 10% a capacidade de geração de energia no Brasil.
“É muito assustador pensar que o desmatamento na Amazônia causa efeito na Bacia
do Paraná, a quilômetros dali. Mas o mecanismo é muito claro”, explica Gustavo
R. S. Pinto, analista sênior do Climate Policy Initiative (CPI) da PUC-Rio, que
assina o relatório com os pesquisadores João Arbache, Luiza Antonaccio e Joana
Chiavari.
De fato, o estudo
praticamente desenha o fenômeno para quem ainda não entendeu. A começar pelas
empresas do setor elétrico, que geralmente concentram as ações sociais nas
comunidades do entorno de sua área de atuação, e não no combate ao desmatamento
em florestas distantes. O pesquisador classifica esse mapeamento do caminho da
água até as usinas como um grande alerta. Mas falta sensibilizar essas
companhias. “Poucos dão atenção a questões que acontecem fora da própria bacia
hidrográfica. Desconheço discussões em fóruns do setor para discutir o que
acontece a mil quilômetros de distância…”
Isso acontece, segundo
ele, porque, até pouco tempo, o impacto do desmatamento nos rios voadores não
tinha a materialidade que tem hoje. Precisou a fumaça vinda da floresta fechar
o céu e provocar doenças respiratórias em São Paulo para que o fenômeno fosse
compreendido – e sentido na pele, além do bolso.
Gustavo Pinto explica
que a seca dos rios voadores não necessariamente está acoplada à crise das
mudanças climáticas. “Mesmo se não houvesse um fenômeno global, o desmatamento
estaria afetando a geração de energia. Aquela árvore que ia evaporar a água deixa
de existir, e as chuvas não são transportadas.”
O estudo aponta saídas
para evitar o colapso. Identificar as categorias fundiárias das áreas de maior
interesse das usinas é uma delas. No estudo, elas estão divididas em cinco
segmentos: Terras Indígenas (TIs); Unidades
de Conservação (UCs); assentamentos da reforma agrária; florestas públicas não
destinadas e imóveis privados. Com exceção dos imóveis privados, todas as
demais categorias são responsabilidade do poder público. Desta forma, garante a
pesquisa, é importante que entidades reguladoras e forças de segurança, como
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), Polícias
Federal e estaduais, Exército e Força Nacional de Segurança Pública, atuem
contra os desmatamentos ilegais.
No caso da Usina
Hidrelétrica de Teles Pires, a principal categoria fundiária é a de terras
indígenas de etnias como Kayabi, Munduruku e Apiaká. Assim como em outras
reservas indígenas, está também sujeita a invasões ilegais de terceiros e
desmatamento. O resultado: menos chuva, menos água em reservatório, menos
energia limpa e barata. Assim, os pesquisadores reivindicam “atividades de
monitoramento e fiscalização pelo poder público para a proteção da floresta”.
Ressaltam também que, como as TIs são as áreas mais bem conservadas, “os
indígenas devem ser beneficiados por programas de Pagamento por Serviços
Ambientais (PSA) e doações para garantir o seu modo de vida e reprodução
cultural”.
“Essas florestas estão
preservadas há milênios. As terras indígenas preservadas prestam um serviço
socioeconômico muito importante ao país, mas discussões do tipo no Congresso,
por exemplo, praticamente não existem. Imagina como seria a discussão sobre a
defesa dos povos indígenas se um representante do tamanho das empresas do setor
elétrico sentasse na mesa agora para discutir o que podemos fazer juntos.”. Em
setembro do ano passado, o Senado aprovou, em votação relâmpago, o marco
temporal, que determina que as terras indígenas devem estar restritas às áreas
ocupadas pelos povos na promulgação da Constituição de 1988. Organizações
indígenas discordam da tese e dizem que o marco vai inviabilizar novas
demarcações. O tema está sendo discutido no Supremo Tribunal Federal.
Já na Bacia do Paraná
a categoria fundiária mais relevante são os imóveis privados, em tese mais
distantes do alcance do poder público. Ainda assim há o que fazer. O estudo
sugere, por exemplo, linhas de financiamento especiais para agricultura
sustentável, incluindo manejo de pastagens, sistemas agroflorestais e
integração lavoura-pecuária-floresta nessas áreas. “A pecuária pode ser
relevante e produtiva sem precisar desmatar. A escolha é muito clara. A falta
de chuva vai afetar esses locais também”, alerta Gustavo Pinto.
O especialista lembra
que, em um contexto de transição energética, uma das vantagens comparativas do
Brasil frente ao resto do mundo é justamente a capacidade de geração de energia
renovável – como se aprende na escola desde cedo. “Indústrias podem querer vir
pra cá porque aqui se produz de maneira limpa. Graças aos rios voadores. Sem
essa matriz, deixamos de ser atrativos para investimentos.”
Segundo ele, não é
impensável um cenário em que as usinas hidrelétricas se tornem obsoletas porque
simplesmente não têm mais água para gerar energia. “É um grande risco.”
Fonte: Por Matheus
Pichonelli, na Piauí
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