terça-feira, 22 de outubro de 2024

Além da estatística: a luta contínua por justiça social no Brasil

A superação da pobreza requer uma abordagem multifacetada que vá além das políticas de transferência de renda, embora estas continuem sendo importantes. É necessário um conjunto integrado de políticas que abordem as causas estruturais da pobreza

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O Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, celebrado anualmente em 17 de outubro, representa mais do que uma data no calendário global. Estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1992, este dia simboliza um chamado urgente à ação coletiva contra uma das mais persistentes mazelas da humanidade: a pobreza. No contexto brasileiro, marcado por profundas desigualdades históricas, esta data adquire uma ressonância particular, convidando-nos a uma reflexão crítica sobre as estruturas sociais, econômicas e políticas que perpetuam a pobreza e a exclusão social.

A instituição deste dia pela ONU não foi um ato isolado, mas parte de um movimento global mais amplo de reconhecimento dos direitos humanos e da necessidade de desenvolvimento sustentável. O objetivo principal era e continua sendo conscientizar a população mundial sobre a urgência de erradicar a pobreza e a miséria em todas as nações, especialmente nos países em desenvolvimento. No entanto, quase três décadas após sua criação, o desafio permanece monumental, particularmente em países como o Brasil, onde a desigualdade social tem raízes profundas e complexas.

No Brasil, a compreensão da pobreza requer uma análise histórica que remonta ao período colonial. A formação socioeconômica do país, marcada pela escravidão, pela concentração fundiária e por um modelo de desenvolvimento dependente, estabeleceu as bases para uma sociedade profundamente desigual. Como argumentou Caio Prado Júnior em sua obra seminal Formação do Brasil Contemporâneo (1942), a estrutura econômica colonial criou um padrão de exclusão social que persiste, em muitos aspectos, até os dias atuais.

A industrialização e a urbanização acelerada do século XX, longe de resolverem o problema da pobreza, em muitos casos o agravaram, criando bolsões de miséria nas periferias das grandes cidades. Florestan Fernandes, em A Revolução Burguesa no Brasil (1975), demonstrou como o desenvolvimento capitalista no país se deu de forma “autocrática”, sem romper com as estruturas de poder tradicionais e sem promover uma verdadeira democratização social.

Nas últimas décadas do século XX e no início do XXI, o Brasil experimentou diferentes abordagens para o combate à pobreza. A redemocratização trouxe consigo a promessa de maior justiça social, cristalizada na Constituição de 1988, que estabeleceu um amplo sistema de proteção social. No entanto, a implementação desses direitos sociais enfrentou desafios significativos, especialmente no contexto das políticas neoliberais dos anos 1990.

O início dos anos 2000 marcou uma mudança de paradigma nas políticas sociais brasileiras. A implementação de programas de transferência de renda condicionada, como o Bolsa Família, representou uma nova abordagem no combate à pobreza. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), entre 2003 e 2014, cerca de 36 milhões de brasileiros saíram da pobreza extrema. O período também foi marcado por políticas de valorização do salário mínimo e de expansão do acesso à educação superior, que contribuíram para a redução da desigualdade de renda.

No entanto, os avanços alcançados mostraram-se frágeis diante das crises econômica e política que se seguiram. A partir de 2015, observou-se uma reversão na tendência de queda da pobreza. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que, em 2021, cerca de 62,5 milhões de brasileiros viviam em situação de pobreza, o que representa 29,4% da população. Destes, aproximadamente 17,3 milhões encontravam-se em extrema pobreza.

A pandemia de Covid-19 exacerbou dramaticamente esta situação. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) aponta que, durante a crise sanitária, o desemprego atingiu níveis recordes, chegando a 14,7% no primeiro trimestre de 2021. A informalidade e a precarização do trabalho também se intensificaram, expondo a vulnerabilidade de grande parte da população brasileira.

É crucial entender que a pobreza vai além da mera insuficiência de renda. Trata-se de um fenômeno multidimensional que engloba privações em diversas esferas da vida. O acesso inadequado à educação, à saúde, à moradia, ao saneamento básico e a outros serviços essenciais são faces da pobreza que muitas vezes escapam às estatísticas tradicionais, mas impactam profundamente a qualidade de vida e as oportunidades dos indivíduos.

Nesse sentido, o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), desenvolvido pela ONU, oferece uma visão mais abrangente da pobreza. No Brasil, embora não haja um IPM oficial, estudos do IPEA utilizando metodologia similar indicam que a pobreza multidimensional afeta uma parcela significativa da população, mesmo entre aqueles que não são considerados pobres pela métrica da renda.

O déficit habitacional é um exemplo claro dessa multidimensionalidade. Segundo a Fundação João Pinheiro, em 2019, o déficit habitacional no Brasil atingiu 5,876 milhões de domicílios. Esta carência não apenas reflete a pobreza, mas também a perpetua, criando um ciclo vicioso de privações que se estende por gerações.

A questão do saneamento básico é igualmente alarmante. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) mostram que, em 2021, apenas 55% da população brasileira tinha acesso à coleta de esgoto. A falta de saneamento adequado tem impactos diretos na saúde pública e no meio ambiente, afetando desproporcionalmente as populações mais vulneráveis.

A desigualdade educacional é outro fator crucial na perpetuação da pobreza. Apesar dos avanços na universalização do acesso ao ensino básico, a qualidade da educação permanece um desafio. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) de 2021 mostra que o Brasil ainda está longe de atingir metas consideradas adequadas, especialmente no ensino médio.

A interseccionalidade entre pobreza, raça e gênero é um aspecto fundamental que não pode ser ignorado. Dados do IBGE mostram que a pobreza afeta desproporcionalmente a população negra e as mulheres. Em 2021, 38,6% dos pretos ou pardos viviam abaixo da linha da pobreza, contra 18,6% dos brancos. As mulheres, especialmente as negras e chefes de família, estão entre os grupos mais vulneráveis à pobreza.

O Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, portanto, deve ser visto como um momento de reflexão crítica sobre essas múltiplas dimensões da pobreza e da desigualdade no Brasil. Mais do que isso, deve ser um catalisador para a ação concreta e para a formulação de políticas públicas efetivas e duradouras.

A superação da pobreza requer uma abordagem multifacetada que vá além das políticas de transferência de renda, embora estas continuem sendo importantes. É necessário um conjunto integrado de políticas que abordem as causas estruturais da pobreza, incluindo reforma tributária progressiva, investimentos maciços em educação e saúde públicas, políticas de geração de emprego e renda, e combate às discriminações de raça e gênero.

A participação ativa da sociedade civil é crucial nesse processo. Movimentos sociais, organizações não-governamentais e iniciativas comunitárias desempenham um papel fundamental na luta contra a pobreza, não apenas como prestadores de serviços, mas como agentes de mobilização e pressão por mudanças estruturais.

O compromisso com a erradicação da pobreza deve ser entendido como parte indissociável de um projeto mais amplo de desenvolvimento sustentável e justiça social. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, particularmente o ODS 1 (Erradicação da Pobreza), oferecem um arcabouço importante para orientar as ações nesse sentido.

Em conclusão, o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza no Brasil não pode ser apenas uma data de reflexão, mas um chamado à ação contínua e transformadora. A persistência da pobreza em um país rico em recursos como o Brasil é um desafio ético e político que exige o engajamento de toda a sociedade. Somente através de um esforço coletivo e sustentado, baseado em evidências científicas e guiado por princípios de justiça social, poderemos avançar significativamente na construção de uma sociedade mais equitativa e verdadeiramente desenvolvida.

 

Fonte: Chiconelli Gomes, no Le Monde

 

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