Além da estatística: a luta contínua por
justiça social no Brasil
A superação da pobreza
requer uma abordagem multifacetada que vá além das políticas de transferência
de renda, embora estas continuem sendo importantes. É necessário um conjunto
integrado de políticas que abordem as causas estruturais da pobreza
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O Dia Internacional
para a Erradicação da Pobreza, celebrado anualmente em 17 de outubro,
representa mais do que uma data no calendário global. Estabelecido pela
Organização das Nações Unidas (ONU) em 1992, este dia simboliza um chamado
urgente à ação coletiva contra uma das mais persistentes mazelas da humanidade:
a pobreza. No contexto brasileiro, marcado por profundas desigualdades
históricas, esta data adquire uma ressonância particular, convidando-nos a uma
reflexão crítica sobre as estruturas sociais, econômicas e políticas que
perpetuam a pobreza e a exclusão social.
A instituição deste
dia pela ONU não foi um ato isolado, mas parte de um movimento global mais
amplo de reconhecimento dos direitos humanos e da necessidade de
desenvolvimento sustentável. O objetivo principal era e continua sendo
conscientizar a população mundial sobre a urgência de erradicar a pobreza e a
miséria em todas as nações, especialmente nos países em desenvolvimento. No
entanto, quase três décadas após sua criação, o desafio permanece monumental,
particularmente em países como o Brasil, onde a desigualdade social tem raízes
profundas e complexas.
No Brasil, a
compreensão da pobreza requer uma análise histórica que remonta ao período
colonial. A formação socioeconômica do país, marcada pela escravidão, pela
concentração fundiária e por um modelo de desenvolvimento dependente,
estabeleceu as bases para uma sociedade profundamente desigual. Como argumentou
Caio Prado Júnior em sua obra seminal Formação do Brasil Contemporâneo (1942),
a estrutura econômica colonial criou um padrão de exclusão social que persiste,
em muitos aspectos, até os dias atuais.
A industrialização e a
urbanização acelerada do século XX, longe de resolverem o problema da pobreza,
em muitos casos o agravaram, criando bolsões de miséria nas periferias das
grandes cidades. Florestan Fernandes, em A Revolução Burguesa no Brasil (1975),
demonstrou como o desenvolvimento capitalista no país se deu de forma
“autocrática”, sem romper com as estruturas de poder tradicionais e sem
promover uma verdadeira democratização social.
Nas últimas décadas do
século XX e no início do XXI, o Brasil experimentou diferentes abordagens para
o combate à pobreza. A redemocratização trouxe consigo a promessa de maior
justiça social, cristalizada na Constituição de 1988, que estabeleceu um amplo
sistema de proteção social. No entanto, a implementação desses direitos sociais
enfrentou desafios significativos, especialmente no contexto das políticas
neoliberais dos anos 1990.
O início dos anos 2000
marcou uma mudança de paradigma nas políticas sociais brasileiras. A
implementação de programas de transferência de renda condicionada, como o Bolsa
Família, representou uma nova abordagem no combate à pobreza. Segundo dados do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), entre 2003 e 2014, cerca de 36
milhões de brasileiros saíram da pobreza extrema. O período também foi marcado
por políticas de valorização do salário mínimo e de expansão do acesso à
educação superior, que contribuíram para a redução da desigualdade de renda.
No entanto, os avanços
alcançados mostraram-se frágeis diante das crises econômica e política que se
seguiram. A partir de 2015, observou-se uma reversão na tendência de queda da
pobreza. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam
que, em 2021, cerca de 62,5 milhões de brasileiros viviam em situação de
pobreza, o que representa 29,4% da população. Destes, aproximadamente 17,3
milhões encontravam-se em extrema pobreza.
A pandemia de Covid-19
exacerbou dramaticamente esta situação. O Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) aponta que, durante a crise
sanitária, o desemprego atingiu níveis recordes, chegando a 14,7% no primeiro
trimestre de 2021. A informalidade e a precarização do trabalho também se
intensificaram, expondo a vulnerabilidade de grande parte da população
brasileira.
É crucial entender que
a pobreza vai além da mera insuficiência de renda. Trata-se de um fenômeno
multidimensional que engloba privações em diversas esferas da vida. O acesso
inadequado à educação, à saúde, à moradia, ao saneamento básico e a outros serviços
essenciais são faces da pobreza que muitas vezes escapam às estatísticas
tradicionais, mas impactam profundamente a qualidade de vida e as oportunidades
dos indivíduos.
Nesse sentido, o
Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), desenvolvido pela ONU, oferece uma
visão mais abrangente da pobreza. No Brasil, embora não haja um IPM oficial,
estudos do IPEA utilizando metodologia similar indicam que a pobreza
multidimensional afeta uma parcela significativa da população, mesmo entre
aqueles que não são considerados pobres pela métrica da renda.
O déficit habitacional
é um exemplo claro dessa multidimensionalidade. Segundo a Fundação João
Pinheiro, em 2019, o déficit habitacional no Brasil atingiu 5,876 milhões de
domicílios. Esta carência não apenas reflete a pobreza, mas também a perpetua,
criando um ciclo vicioso de privações que se estende por gerações.
A questão do
saneamento básico é igualmente alarmante. Dados do Sistema Nacional de
Informações sobre Saneamento (SNIS) mostram que, em 2021, apenas 55% da
população brasileira tinha acesso à coleta de esgoto. A falta de saneamento
adequado tem impactos diretos na saúde pública e no meio ambiente, afetando
desproporcionalmente as populações mais vulneráveis.
A desigualdade
educacional é outro fator crucial na perpetuação da pobreza. Apesar dos avanços
na universalização do acesso ao ensino básico, a qualidade da educação
permanece um desafio. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) de
2021 mostra que o Brasil ainda está longe de atingir metas consideradas
adequadas, especialmente no ensino médio.
A interseccionalidade
entre pobreza, raça e gênero é um aspecto fundamental que não pode ser
ignorado. Dados do IBGE mostram que a pobreza afeta desproporcionalmente a
população negra e as mulheres. Em 2021, 38,6% dos pretos ou pardos viviam
abaixo da linha da pobreza, contra 18,6% dos brancos. As mulheres,
especialmente as negras e chefes de família, estão entre os grupos mais
vulneráveis à pobreza.
O Dia Internacional
para a Erradicação da Pobreza, portanto, deve ser visto como um momento de
reflexão crítica sobre essas múltiplas dimensões da pobreza e da desigualdade
no Brasil. Mais do que isso, deve ser um catalisador para a ação concreta e
para a formulação de políticas públicas efetivas e duradouras.
A superação da pobreza
requer uma abordagem multifacetada que vá além das políticas de transferência
de renda, embora estas continuem sendo importantes. É necessário um conjunto
integrado de políticas que abordem as causas estruturais da pobreza, incluindo
reforma tributária progressiva, investimentos maciços em educação e saúde
públicas, políticas de geração de emprego e renda, e combate às discriminações
de raça e gênero.
A participação ativa
da sociedade civil é crucial nesse processo. Movimentos sociais, organizações
não-governamentais e iniciativas comunitárias desempenham um papel fundamental
na luta contra a pobreza, não apenas como prestadores de serviços, mas como agentes
de mobilização e pressão por mudanças estruturais.
O compromisso com a
erradicação da pobreza deve ser entendido como parte indissociável de um
projeto mais amplo de desenvolvimento sustentável e justiça social. Os
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, particularmente o ODS 1
(Erradicação da Pobreza), oferecem um arcabouço importante para orientar as
ações nesse sentido.
Em conclusão, o Dia
Internacional para a Erradicação da Pobreza no Brasil não pode ser apenas uma
data de reflexão, mas um chamado à ação contínua e transformadora. A
persistência da pobreza em um país rico em recursos como o Brasil é um desafio
ético e político que exige o engajamento de toda a sociedade. Somente através
de um esforço coletivo e sustentado, baseado em evidências científicas e guiado
por princípios de justiça social, poderemos avançar significativamente na
construção de uma sociedade mais equitativa e verdadeiramente desenvolvida.
Fonte: Chiconelli
Gomes, no Le Monde
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