sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Eleições Municipais: o que de novidade trazem para a Política

Passada as eleições municipais de 2024, continuam as análises e avaliações sobre o quadro político que se esboça a partir do processo eleitoral. À superfície, no âmbito mais tradicional da política e de seus fóruns de interpretação, aí incluídos os grandes meios de comunicação, eles próprios parte dessa tradição, o tom das análises repercute a leitura impressionista, do jogo de perdas e ganhos, levando em conta o desempenho das forças que representam o espectro ideológico da luta por poder entre conservadores e progressistas, entre direita e esquerda, e de desempenho das respectivas legendas e de suas candidaturas.

Assim, para essas análises, ganhou a direita entre seu centro e sua extrema, com 90 milhões de votos sobre 21 milhões atribuídos à esquerda, seu centro e sua extrema (disponível aqui): – nessa contabilidade do aparente, a síntese é a do ‘Perdeu ganhando’ ou ‘Ganhou perdendo’. A partir daí, conclusões simplistas que balizam o resultado pela ainda sobrevivente polarização entre direita (Bolsonaro) e esquerda (Lula).

Claro que há interpretações que procuram arranhar a superfície do aparente e escavar um pouco mais fundo na prospecção de algum nexo de causalidade. Ah, o resultado corresponde ao uso das formidáveis máquinas burocráticas instaladas no país desde 2018 até 2022, com a tomada do aparelho governamental, bastando ver as reeleições, principalmente de prefeitos e de prefeitas e seus aliados; também o esquema de aplicação das emendas e do fundo eleitoral público, fatores determinantes para a produção dos resultados. É possível, mas não explica tudo, porque há contradições na apropriação desses dados (disponível aqui).

Antecipando esses elementos contraditórios que se apresentariam durante as eleições municipais e que deverão ter impactos importantes nas eleições gerais de 2026, o Grupo de Análise de Conjuntura Social da CNBB – Padre Thierry Linard, do qual faço parte, apresentara aos bispos brasileiros, em seu encontro de 12 de setembro, um amplo apanhado das questões que deveriam ter atenção forte no contexto das mutações em curso na cena política do país, depois da retomada da aliança democrático-popular com a eleição do Presidente Lula (disponível aqui) – Eleições Municipais de 2024:  entre a política nacional e agenda local ).

O Grupo também pautou para nova análise, dirigida à reunião dos bispos de novembro, uma avaliação a parir do resultado das eleições e da cartografia que delas se possa esboçar. Em encontro preparatório para a produção do texto de análise, na última quinta-feira (10/10), fizemos uma primeira rodada de conversa sobre o processo, incluindo as nossas percepções sobre as interpretações e projeções em circulação.

Num Grupo formado por expressões de uma alta intelectualidade, notadamente do sistema PUC (Pontifícias Universidades Católicas), economistas, cientistas políticos, juristas, teólogos, mas não só, eu por exemplo, sou da UnB, o bispo que nos coordena Dom Francisco Lima Soares é sociólogo, com doutorado na Sorbonne, todos esses aspectos foram considerados e serão esquadrinhados na Análise, mas a mim me chamou a atenção, duas ou três considerações preliminares, tomadas aqui mais ao modo de como ouvi do que à maneira estrita como foram ditas.

A primeira do professor Antonio Carlos A. Lobão – da PUC/Campinas. Ele chamou a atenção para questões que não se explicam pelo uso de máquina, de fundos, de emendas ou da avaliação impressionista de prefeitos que tenham sido reeleitos. Para o que ele considera “uma hiperpolitização por parte da direita, com um trabalho político, com uma mobilização da direita, com atividades da direita, com um projeto político”, resultante de esvaziamento do político criado pelo discurso da esquerda. Para ele, o embate traz a percepção de que “a esquerda não tem mais projeto. A única defesa da esquerda é conservadora: banco central, orçamento, equilíbrio fiscal, STF etc. Deixamos de ter uma ação de massa para ter uma ação de alianças. Sequer a Igreja está nas periferias. A teologia da libertação foi substituída pela teologia da prosperidade. As novas classes médias dos governos Lula, viraram instrumentos e espaços da nova direita. Taxação dos ricos, taxas de juro etc. Não politizamos nada. Não conseguimos defender mais nada, não saímos mais para as ruas. A desculpa da Lava-Jato não serve mais para o tema da criminalização da política. Não sabemos usar as redes sociais” (o que se revela no efeito Pablo Marçal).

De modo parecido, o professor Ricardo Ismael – PUC/Rio, destacou que na ascensão da direita no Brasil, não se pode perder de vista que “mudou a base social; evangélicos cresceram, por conta do discurso identitário (da esquerda) que os joga no colo da direita; as forças de segurança mudaram, para os votos da direita, além da questão do tráfico e milícia – sem um discurso para a área de segurança pública; dificuldades dos sindicatos no mundo do trabalho; o agronegócio se afirmando como eixo de ingressos, tudo gerando – mudança estrutural na economia e na sociedade”. Há uma decalagem entre o discurso e ação política da liderança mais popular do País (Lula) e uma crise de comunicação desse discurso em face das expectativas que o eleitoral abre para as aspirações de diferentes segmentos (classes) do social, e seus projetos de vida.

Talvez isso explique, lembrou a professora Tânia Bacelar – UFPE, que até a economia, em geral determinante na variação de tendências eleitorais, mesmo numa conjuntura de altos resultados, não tenha repercutido no pleito porque nesse processo não é só o “contexto conjuntural, de curto prazo”, o que repercute, mas o que é ainda consciência possível, e que se “processa nas mudanças estruturais”, de longo prazo, não afloráveis à consciência real (Goldman, Paulo Freire). Daí porque, para Melillo Dinis – Inteligência Política (IP), esses balizamentos devam se dispor como questões-guias para orientar uma análise de conjuntura do pós-eleições no entrelaçamento dos fios condutores formados por elementos polarizadores, tangidos pela violência política, pela corrupção eleitoral, pelo assédio eleitoral e pelas mediações comunicacionais, num enlace entre ética religião e política.

De minha parte, atento a essas observações preliminares, que interpelam antes de tudo, qual a novidade ou as novidades que podem ser designadas no pleito de 2024, procuro estar atento, menos ao jogo de perdas e de ganhos, aos carismas que se forjam desde os embates, mas aos elementos gestados no substrato do próprio processo que podem enervar a política.

Claro que penso a política em seu sentido autêntico, ético (na perspectiva que opera a institucionalidade que humaniza, que nutre a cidadania. Penso com Aristóteles, na afirmação, ele dizia em seu tratado sobre a Política, que ela é a mediação para a constituição do Zoonpoliktikon (animal político)o modo como o ser se faz humano na medida em que desenvolve a capacidade natural de viver em sociedade e participar da vida política, de ser livre, de exercitar a gestão da polis (a cidade e todas as outras formas de comunidade). Sem essa aptidão, o humano não se constituía, para Aristóteles, o escravo, para ele, não tendo esse atributo na polis, não passava de um instrumento, uma ferramenta que fala.

Na sua forma matizada pelo tomismo, é desse modo que o cristianismo concebe a política, pensada como “a forma mais sublime de viver a caridade“, um ensinamento manifestado desde o papa Pio XI e reforçado depois pelo Concílio Vaticano II, pelo papa Paulo VI, pois que busca romper “com a mentalidade de que política é coisa ruim, com a qual o cristão não pode estar engajado; pelo contrário, deve encontrar no ambiente político a sua vocação e o serviço ao povo de Deus.”, tal como se pontuou aqui no Jornal Brasil Popular (disponível aqui)– A política, as eleições no Brasil em 2024 e a intenção de oração do Papa Francisco para o mês de agosto: “Estratégias coletivas para Encantar a Política”.

O Papa Francisco ao atualizar essa noção, tal como já o fizera na Exortação Evangelii Gaudium, nº 205, “A política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum”, a distingue porque ela “escuta a realidade, que está a serviço dos pobres, que se preocupa com os desempregados e sabe muito bem como pode ser triste um domingo quando a segunda-feira é um dia a mais sem poder ir trabalhar”. (Confira-se a íntegra da mensagem disponível aqui).

Vamos às novidades.

As Eleições de 2024 foram os primeiros pleitos municipais com a participação de federações partidárias. As federações partidárias são a reunião de dois ou mais partidos políticos (que já têm registro no TSE), com afinidade programática, a fim de que atuem como se fossem uma única agremiação. Três federações partidárias se registraram para o pleito: Federação Brasil da Esperança (Fe Brasil): Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Partido Verde (PV); Federação PSDB Cidadania: Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e Cidadania (Cidadania) e Federação PSOL Rede: Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e Rede Sustentabilidade (Rede).

Os partidos que integram federações partidárias elegeram 7.658 vereadores nas eleições municipais deste ano. Em 2020, essas mesmas siglas – que à época concorreram de forma isolada – conquistaram 10.403 cadeiras nas Câmaras Municipais do país.

Apenas o PT (que, ao lado de PCdoB e PV, forma a Federação Brasil da Esperança) e a Rede (da Federação PSOL Rede) elegeram mais vereadores desta vez do que há quatro anos: o PT passou de 2.668 para 3.127; e a Rede, de 148 para 172.

Os demais partidos tiveram queda. A Federação PSDB Cidadania elegeu 3.437 vereadores neste ano, sendo 3.000 do PSDB e 437 do Cidadania. Em 2020, as duas legendas elegeram 5.980 vereadores, sendo 4.396 do PSDB e 1.584 do Cidadania.

Já o PSOL viu o número de vereadores cair de 92 para 80. (disponível aqui).

Mandatos Coletivos. Também conhecida como candidatura compartilhada, a candidatura coletiva acontece quando um grupo de pessoas se une para lançar um representante como candidato nas eleições para uma vaga na Câmara Municipal da cidade ou para o Congresso. As candidaturas coletivas são formadas por duas ou mais pessoas, mas apenas uma delas assume o cargo como titular. Caso sejam eleitos, os membros passam a ter um mandato coletivo, onde decidem coletivamente sobre propostas e votos no Congresso. O fato de ser um mandato coletivo é um acerto informal entre seus integrantes. Oficialmente, apenas uma pessoa é responsável pelo mandato. Nos mandatos compartilhados, os integrantes decidem em conjunto, mas sua decisão conta como apenas um voto, independentemente do número de participantes. As decisões são discutidas pelo grupo e levadas ao plenário pelo representante formal que assumiu o cargo.

A partir dos dados do Tribunal Superior Eleitoral, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em parceria com o coletivo Common Data, divulgou o perfil das candidaturas das Eleições 2024, com recorte das coletivas. O PT conta com 72 candidaturas coletivas, seguido pelo Psol com 64, PCdoB com 16, PSB com 12, PDT com 10, PV com 10 e Rede com 9. No campo da direita, União Brasil e Republicanos têm 7 candidaturas cada. Mas o TSE ainda não divulgou dados relativamente aos resultados consolidados dessa modalidade de candidatura.

A novidade da candidaturas coletivas é que elas trazem a constatação de que, até os partidos de esquerda, ainda são muito pouco inclusivos, mesmo na participação de setoriais e de diretórios. Dentre os partidos com representação no Congresso, o Psol é o que mais tem candidatas mulheres, com 40%; o PT tem 36%, enquanto a maioria dos partidos de direita apenas cumpre o mínimo estabelecido pela legislação.

Em 2024, são 280 candidaturas coletivas, sendo 54% lideradas por mulheres, 59% por negros (pardos e pretos) e 19% por mulheres pretas. Já o número geral de candidatos para o pleito deste ano é de 454.528, sendo 66% de homens, 46% de pessoas brancas e apenas 4% de mulheres pretas. (disponível aqui; disponível aqui).

Apesar da dificuldades de aprendizagem para o exercício parlamentar desse instrumento que aproxima as bases sociais do sistema partidário e das repetidas mensagens de descontinuidade de sua regulamentação, há mais expectativa de que frustração voltada para a sua consolidação como modelo democrático.

Candidatos que se declararam de etnias indígenas foram eleitos prefeitos de sete municípios brasileiros no primeiro turno das eleições municipais (disponível aqui). Os dados do sistema do Tribunal Superior Eleitoral também mostram que 214 indígenas se elegeram vereadores no pleito, sendo 180 homens e 34 mulheres.

Essa foi também uma eleição com nítida caracterização da Diversidade. O Brasil registrou um recorde de pessoas LGBT+ eleitas nas eleições municipais de 2024. O País teve 225 pessoas LGBT+ eleitas neste pleito, um aumento de 130% em relação ao anterior (disponível aqui). Os dados são de um levantamento da organização não governamental VoteLGBT O Brasil registrou 225 pessoas LGBT+ eleitas nessas eleições municipais, sendo três delas para prefeituras. O número representa um aumento de 130% em relação ao registrado no pleito de 2020, sendo um recorde, de acordo com um levantamento da organização não governamental VoteLGBT. Os dados mostram que as 225 pessoas foram eleitas em 190 municípios, de 22 estados e de 19 partidos políticos. Nessas cidades, 28 foram eleitas em capitais, no Legislativo e no Executivo. PT, PSD e Psol lideram o ranking, com 61, 26 e 18 pessoas eleitas, respectivamente.

Para Martina Medina, editora da matéria, em 2024, pela primeira vez foi possível registrar a orientação sexual e a identidade de gênero nas candidaturas das eleições brasileiras. Os dados fornecidos pelo TSE ampliaram o alcance dos mapeamentos que historicamente eram conduzidos pela sociedade civil. No entanto, ainda é necessário um processo de verificação das informações sobre identidades LGBT+ produzidas pela justiça eleitoral.

Quilombolas vencem eleição para prefeito em 17 cidades. A maior parte dos eleitos é de homens; há duas mulheres no grupo (disponível aqui). Nas eleições do Legislativo, 262 homens e 72 mulheres quilombolas conseguiram uma vaga para as câmaras municipais de suas cidades. Os municípios que elegeram esses candidatos ficam nas regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste. Nenhum quilombola foi eleito prefeito em cidades da Região Sul.

Número de vereadores pretos e pardos eleitos aumenta e chega a 26.789 no Brasil (disponível aqui). O Brasil terá, a partir de 2025, total de 26.789 vereadores que se declaram negros (pretos e pardos) no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). São 786 a mais em relação a 2020 quando foram eleitos 26.003 vereadores. Aumento foi pequeno, mas representa um avanço. Os vereadores negros correspondem a 45,86% do total de eleitos. Em 2020, essa proporção foi de 44,46%. Os dados são do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Em relação aos vereadores eleitos no país, 22.739 (ou 38,93%) se declaram pardos. Outros 4.050 (6,93% do total) se denominaram pretos. Enquanto o número de vereadores eleitos que se declararam indígenas também subiu: passou de 181 (031% do total) para 241 (0,41% do total), ou mais 60 vereadores. Apesar de ainda representarem uma parcela muito pequena das câmaras municipais, o aumento da proporção deles em relação aos demais eleitos foi considerável, de 32,2%.

Conforme a matéria, a parcela de vereadores brancos encolheu. Foram 31.100 eleitos em 2020 (53,53% do total) em 2020 e 30.846 (52,81% do total) nestas eleições.

Mas, para mim, a novidade mais expressiva está na articulação inédita feita pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que levou à eleição de 133 candidaturas à vereança e à prefeitura, ligados à luta pela Reforma Agrária. Dessa forma, foram conquistados 110 eleitos e eleitas para os cargos de vereador e vereadora, além da ocupação de 23 prefeituras e vice-prefeituras pelo país, sobretudo em cidades interioranas, distribuídos em 19 estados brasileiros.

Os dados me foram passados por Diego Vedovato, assentado, bacharel em direito pela primeira turma especial do Pronera (Programa de Educação do Campo), atualmente fazendo mestrado em Direito na UnB (Diego, muitos vão se lembrar, era um dos dois assessores que me apoiavam na bancada da Comissão da Câmara dos Deputados durante meu depoimento na CPI do MST; o outro assessor era o advogado popular, também pós-graduando na UnB, Saulo Dantas). Diego me lembra que são milhares de assentamentos que envolvem uma base de mais de 400 mil famílias que em sua maioria apoiaram localmente candidatos progressistas dos mais variados partidos, inclusive especialmente do PT, mas não exclusivamente do PT.

Formaram um total de 597 candidatos: 58 prefeitos; 15 vices, 524 vereadores de 365 cidades. Sendo eleitas: 133 candidaturas (MST: 46 x Aliados: 87), assim distribuídas: Prefeituras: 21 (MST: 1 x Aliados: 20); Vice-prefeito: 2 (MST: 2 x Aliados: 0); Vereadores: 108 (MST: 43 x Aliados: 67).

O cerne da articulação implica uma pedagogia da ação política, apoiar propostas assumidas pelas candidaturas eleitas, enquanto compromissos de campanha: o apoio à democratização do acesso à terra, incentivo à produção e cooperação de alimentos saudáveis e combate à fome, iniciativas de sustentabilidade e cuidado permanente com o meio ambiente, defesa da educação, saúde, cultura e diversidade (disponível aqui).

Não se trata ainda, é evidente, de tomar o trem rumo à estação Finlândia, conforme o célebre ensaio de Edmund Wilson. A ação política e o seu impulso pela via eleitoral, não tem arranque revolucionário, socialista, cristão, ou qualquer outra disposição de solidariedade para conduzir a uma distribuição justa da riqueza socialmente produzida.

Mas essas novidades parecem indicar um entranhamento do cotidiano político nas eleições e representar uma mediação para o que pode expressar como passagem da consciência real para a consciência possível. Podem ativar outras possibilidades de mais aguda radicalização democrática e participativa, tal qual, em 1988, o protagonismo político dos movimentos sociais inscrito na transição entre a ditadura e um regime de enunciado democrático, gerou a possibilidade de dar mais intensidade à democracia representativa e de constitucionalizar base política para a novidade da democracia participativa.

Volto aqui a esses dois termos que tomo no sentido em que já os expliquei em entrevista para o Instituto Humanitas, da Unisinos – Universidade do Vale do Rio dos Sinos: perceber o diapasão do movimento inexorável de emancipação dos sujeitos na história e na construção do país. Ainda quando nem todos se arrepiem numa escala de mesma e simultânea tonalidade. Os ruídos e as dissonâncias do tempo do movimento, mais agudos ou mais graves, são próprios do processo do ensaio de manifestação do social. É importante não se impacientar, nem recriminar o andamento ainda insensível à harmonia, do mover-se em conjunto para uma intensificação da promessa apoteótica. Povo não é tema, não é partitura que se deva executar no limite da melodia composta desde uma pré-compreensão autoral que lhe é exterior. É realidade e não pode ser desconsiderado ainda que, em suas reações de conjuntura, vague na inconsciência do que verdadeiramente o constitui como sujeito emancipado. Tanto mais quanto entre a sua consciência real (aferível por pesquisas) e a sua consciência possível que se desencadeia ao imprevisível (lembra o sociólogo Lucien Goldmann, tão atentamente lido por Paulo Freire), sombreiam as distorções ideológicas, das religiões e crenças, das reduções legalistas, do simbólico repressor da ordem militarizada e das ilusões despistadoras engendradas pelos meios de comunicação. Contra tudo isso, a consciência autônoma aflora. Goldmann advertiu: “o povo que agora cuspia na tumba do czar era o mesmo que no dia anterior beijava o chão que ele pisava”.

 

Fonte: Por José Geraldo de Sousa Junior, no Jornal Brasil Popular

 

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