Cozinha Solidárias: Um direito, não
“caridade”
Em meio ao período
eleitoral, as favelas chamaram atenção para a questão da fome e insegurança
alimentar em todo o país. Movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores
rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) são a
ponta de lança para a invenção de um mundo sem fome, disputando o sentido de
atuação do Estado e da organização popular. A fome é (ou deveria ser) um tema
central para as políticas municipais nos próximos quatro anos, com a
municipalização de pactos globais pelo enfrentamento à fome e à miséria pelo
mundo. Contudo, o debate apareceu pouco nas disputas eleitorais pelo país.
Como forma de
incentivar o debate público e alertar autoridades sobre o tema, em maio de
2024, um estudo apresentado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro indicou que
meio milhão de pessoas vivem com fome na capital fluminense e 2 milhões de
pessoas convivem com alguma situação de insegurança alimentar (leve, moderada
ou grave). Os dados nos revelam, ainda, que a incidência da fome e insegurança
alimentar é maior quando analisamos casas chefiadas por mulheres e por pessoas
negras. Se analisarmos por território, observa-se maior incidência da fome em
bairros mais pobres e em famílias cujos índices de escolaridade são menores. Um
olhar para os números nos ajuda a entender e localizar que no Brasil a
expressão da fome não é distribuída de forma isonômica entre todas as pessoas,
mas se desenvolve pelos rastros de uma formação social em que gênero, raça,
estrato da classe e território são fatores que podem facilitar ou dificultar
acesso aos direitos humanos fundamentais – inclusive o direito humano à
alimentação adequada, previsto expressamente em nossa Constituição.
Por outro lado, cresce
também a preocupação com o Estado que lida com a fome a partir da perspectiva
penal, com o aumento das prisões por furtos famélicos. Diante disso, a deputada
federal Taliria Petrone (PSOL-RJ) apresentou um projeto de Lei que visa incidir
nas altas taxas de encarceramento, indicando outras formas de responsabilização
para pessoas acusadas de furtos que estejam em situação de extrema pobreza ou
vulnerabilidade. A polêmica não foi sanada. A fome segue como uma poderosa
força social que mata, encarcera e limita as possibilidades de viver.
Não à toa, durante a
pandemia de coronavírus, centenas de grupos em favelas pelo país organizaram-se
para enfrentar a epidemia de fome, com ações de entrega de coleta de alimentos,
organização e distribuição de cestas básicas. No Dicionário de Favelas Marielle
Franco, há o inventário de algumas das principais ações realizadas à época, com
uma diversidade de modos de organização e também de objetivos. O tripé “nem
tiro, nem fome, nem covid” organizou parte da população nas favelas e inventou
uma possibilidade de vida em meio ao descaso do poder estatal à época. Grandes
movimentos nacionais, como o MTST, fortaleceram-se e ampliaram suas bases a
partir de lutas concretas, e hoje congregam cerca de 50 cozinhas solidárias
distribuídas em 13 estados e no DF. Além das cozinhas coordenadas pelo MTST, há
outras geridas pelo MST, pela ONG Ação Cidadania e por diversos grupos e
movimentos sociais pelo Brasil. A estimativa do governo federal é de que hoje
haja pelo menos 2.400 cozinhas em funcionamento. A nacionalização de tais
iniciativas nos fornece uma pista de quão enraizado é o problema da fome no
país.
Um breve olhar para
tal cenário indica a urgência de políticas intersetoriais – aliando educação,
assistência social, saúde e empregabilidade, por exemplo, sem deixar de lado a
aposta em mudanças estruturais nos padrões globais de produção, distribuição e
consumo de alimentos. No Rio de Janeiro, a criação de um Banco de Alimentos
Municipal, gerido pela Prefeitura, é uma das iniciativas que pode contribuir
para enfrentar tal cenário, ainda que tenha um limite baixo de abrangência
(cerca de 5 mil pessoas por mês). O banco é fruto de uma parceria entre a
prefeitura do Rio e a prefeitura de uma cidade alemã, bem como com uma rede
privada de supermercado. Com a parceria, alimentos que não seguem padrões
estéticos (mas continuam dentro dos parâmetros nutricionais mínimos para serem
servidos) são distribuídos gratuitamente para a população cadastrada junto à
Secretaria Municipal de Assistência Social, e recebem kits com cerca de 600g de
alimentos, que podem ser frutas, verduras ou legumes. Pequenas iniciativas, coordenadas
entre si, podem produzir grandes impactos no dia a dia da população, mas é
fundamental que haja um esforço global coordenado para que a fome e a miséria
deixem de ser uma presença marcante e constante na história do nosso país.
A nível nacional,
vivemos um período de reestruturação de políticas de combate à fome, que
congrega ações de estado – como o restabelecimento e ampliação dos programas de
redistribuição de renda como o Bolsa Família – com a aprovação de legislações
para regular o financiamento público para movimentações associativistas de base
comunitária, como a criação e fortalecimento de Cozinhas Comunitárias e
recriação do Programa de Aquisição de Alimentos (Lei 14.628/2023), de autoria
do deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP). O objetivo de tais medidas, de
“promover o acesso à alimentação, à segurança alimentar e à inclusão econômica
e social”, é alinhado com objetivos globais de desenvolvimento sustentável e
enfrentamento à pobreza e miséria. Tal iniciativa inscreve-se em um conjunto
maior de pactos que o Brasil tem participado, como a própria “Aliança Global
contra a fome e a pobreza”, aprovada no Rio de Janeiro pelos representantes que
estarão na reunião do G20 em algumas semanas. Tal aliança pretende, até o ano
de 2023, apoiar e acelerar esforços para erradicar a fome e a pobreza em nível
global, por meio de políticas de redução de desigualdades alinhadas com os
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.
Para uma boa
estruturação dos pactos e alianças globais, estes devem prestar atenção
especial aos importantes rastros que políticas associativistas tem deixado no
cotidiano da população. A relação entre as políticas de Estado e as lutas dos
movimentos sociais nesse contexto podem contribuir, com um espírito de
colaboração, para a construção de medidas que sejam sustentáveis e duradouras,
enfrentando de forma radical a situação da fome e insegurança alimentar e
nutricional em nosso país. Seja a partir do olhar para as experiências de
sucesso das Cozinhas Solidárias, seja pelo importante legado e atuação de
organizações do terceiro setor, como a “Ação da Cidadania contra a Fome, a
Miséria e pela Vida”, ou até mesmo pelo olhar atento e cuidadoso às histórias da
fome, como as que Carolina Maria de Jesus nos conta em sua obra. O ponto de
partida é o reconhecimento da fome como problema global, cujos governos locais
possuem tarefas urgentes e necessitam buscar recursos para enfrentar. Políticas
de compras de alimentos e apoio a pequenos agricultores, inauguração de
restaurantes populares, mobilização de atores da sociedade civil como
comerciantes e organizações sociais, conscientização da população em relação ao
desperdício e à necessidade de promoção da solidariedade alimentar, fomento da
produção de alimentos em cinturão verde das cidades, incentivos para o
desenvolvimento científico e tecnológico para aumentar a eficiência dos
programas de alimentação em relação à produção e com conservação de alimentos,
além da logística, enfim, são muitas as iniciativas que correspondem ao poder
público e à sociedade local.
As Cozinhas Solidárias
emergiram em um momento crítico da história recente do Brasil, durante a
pandemia de covid-19, um período em que a insegurança alimentar se agravou e
milhões de brasileiros se viram em situações de vulnerabilidade extrema. Nesse
contexto, essas cozinhas se tornaram um recurso fundamental de sobrevivência,
organizadas por movimentos sociais como o Movimento dos(as) Trabalhadores(as)
Sem-Teto (MTST), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Ação
da Cidadania, que se mobilizaram para oferecer refeições gratuitas e dignas
para aqueles que mais sofriam com a fome.
As cozinhas solidárias
transcendem o papel de apenas fornecer alimento. Elas são espaços de
mobilização política e social, onde se articulam soluções coletivas para
problemas estruturais, como a fome e a pobreza. Denise De Sordi, em seu artigo
no “Le Monde Diplomatique Brasil“, descreve as cozinhas como uma porta de
entrada para um futuro mais justo, construído pelas mãos de jovens, idosos,
pessoas em situação de rua, trabalhadores precarizados e pequenos agricultores.
Elas se tornam, assim, locais de resistência e solidariedade, onde diferentes
segmentos da sociedade se encontram para enfrentar coletivamente a crise
alimentar.
Essas cozinhas,
espalhadas por favelas, periferias e até zonas urbanas centrais, operam com uma
lógica que ressignifica a assistência alimentar. A comida, muitas vezes
preparada com alimentos agroecológicos provenientes da parceria com pequenos
agricultores e movimentos de reforma agrária, não é vista como caridade, mas
como um direito. As refeições são distribuídas sem burocracia, sem
investigações, acolhendo pessoas que estão em situação de extrema pobreza,
trabalhadores informais, entregadores de aplicativo e famílias inteiras que se
deslocam grandes distâncias em busca de alimentação.
As Cozinhas Solidárias
também atuam como centros de integração e formação social. A interação entre os
voluntários, as comunidades locais e os beneficiários vai além da distribuição
de marmitas. Universitários, em projetos de extensão, participam dessas iniciativas,
promovendo debates sobre saúde pública e políticas sociais, ao mesmo tempo em
que desenvolvem novas abordagens para questões sociais emergentes.
As cozinhas funcionam
como um elo entre o campo e a cidade, com pequenos produtores rurais fornecendo
alimentos frescos e orgânicos diretamente para a preparação das refeições. Esse
processo não só garante uma alimentação saudável para as populações vulneráveis,
como também promove a soberania alimentar e fortalece a agricultura familiar. A
parceria com movimentos como o MST é essencial para que os pequenos
agricultores possam planejar suas safras e garantir uma fonte de renda estável,
mesmo em tempos de crise.
Ainda que essas
cozinhas tenham surgido em meio à emergência sanitária e social, sua relevância
vai além da pandemia. Elas apontam caminhos para políticas sociais duradouras e
estruturadas, necessárias para a reconstrução do tecido social brasileiro. Como
Denise De Sordi destaca, as cozinhas solidárias apresentam uma alternativa ao
modelo de assistência social baseado em soluções individuais e burocráticas.
Elas mostram que o combate à fome deve ser coletivo e que o Estado precisa
reconhecer e apoiar essas iniciativas como parte de uma política pública
permanente.
O legado das Cozinhas
Solidárias, especialmente durante a pandemia, demonstra que, apesar da falta de
apoio governamental em muitos momentos, a sociedade civil pode se organizar de
forma rápida e eficiente para garantir o básico: o direito à alimentação. Essas
cozinhas não apenas alimentam corpos, mas também nutrem a esperança de um
futuro mais justo e igualitário.
• Objetivo
O objetivo principal
das cozinhas solidárias é garantir o direito à alimentação de pessoas em
vulnerabilidade social, oferecendo refeições saudáveis e gratuitas. Elas também
atuam como espaços de integração comunitária, formação social e promoção da
saúde, além de fortalecerem os laços sociais nas comunidades onde estão
inseridas. O Programa Cozinha Solidária, regulamentado pela Lei nº 14.628/2023,
institucionalizou essas ações, garantindo recursos para sua continuidade e
expansão em todo o território nacional.
• Políticas públicas e Cozinhas Solidárias
O Programa Cozinha
Solidária, instituído pela Lei nº 14.628/2023 e regulamentado pelo Decreto nº
11.937/2024, foi criado pelo governo federal com o objetivo de fornecer
alimentação gratuita e de qualidade para a população em situação de
vulnerabilidade socioeconômica e insegurança alimentar, incluindo pessoas em
situação de rua. A iniciativa faz parte de um esforço nacional coordenado pela
Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do
Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (SESAN/MDS), que
se comprometeu a apoiar mais de 2.000 cozinhas solidárias em funcionamento no
Brasil.
Essas cozinhas estão
organizadas em uma grande rede de solidariedade, ofertando refeições e serviços
essenciais a populações em risco social, operando principalmente em territórios
vulnerabilizados. O Programa Cozinha Solidária oferece apoio financeiro e
logístico para que essas iniciativas possam se manter e expandir, fornecendo
recursos complementares às doações de parceiros e indivíduos que já sustentam
essas cozinhas. Além disso, o programa promove a compra de alimentos da
agricultura familiar, garantindo que alimentos frescos e saudáveis cheguem às
cozinhas e, consequentemente, às populações que mais precisam, através de uma
articulação com outros programas, como o Programa de Aquisição de Alimentos
(PAA).
Cada unidade de
cozinha solidária possui gestão própria, desempenhando não apenas a função de
fornecer refeições, mas também atuando como um espaço de formação comunitária.
Entre as atividades complementares realizadas estão oficinas de educação
alimentar e nutricional, além de ações que promovem a integração e o
fortalecimento dos laços sociais nos territórios onde estão inseridas. Essas
cozinhas são definidas como uma tecnologia social de combate à fome, um exemplo
de como a sociedade civil se organiza voluntariamente para enfrentar a
insegurança alimentar.
Para garantir a
continuidade e a sustentabilidade dessas ações, o governo credencia entidades
gestoras — entidades privadas sem fins lucrativos — que podem operar
diretamente a cozinha solidária ou apoiar outras cozinhas com os recursos
financeiros fornecidos pelo programa. Com isso, o governo federal reconhece e
potencializa a importância das cozinhas solidárias como uma política pública
essencial para a superação da fome no Brasil.
• A importância durante a pandemia
A pandemia de covid-19
foi um momento crucial para a expansão das cozinhas solidárias. Com o aumento
do desemprego e a intensificação da fome, essas iniciativas se tornaram
fundamentais para milhões de brasileiros que passaram a depender de refeições
gratuitas para sobreviver. Além da distribuição de alimentos, as cozinhas
solidárias desempenharam um papel importante na educação sobre alimentação
saudável e sustentável, incentivando o consumo de produtos locais e de hortas
comunitárias, e conectando a luta contra a fome com a soberania alimentar.
• Quantas Cozinhas Solidárias existem no
Brasil?
Segundo dados do
governo federal, há cerca de 2.400 cozinhas solidárias ativas no Brasil. Essas
cozinhas são responsáveis por fornecer mais de 1 milhão de refeições por mês.
Elas fazem parte de uma rede de apoio que começou de forma espontânea durante a
pandemia e foi posteriormente estruturada com o apoio do Programa Cozinha
Solidária, em colaboração com movimentos sociais e organizações da sociedade
civil.
Diante da gravidade do
problema da fome no país, que afeta milhões de brasileiros, os números de cozinhas
solidárias e a cobertura que alcançam são, infelizmente, extremamente
irrisórios. Será necessário um grande esforço de todos os níveis de governo em
uma ação abrangente, abrangendo distintos aspectos envolvidos em uma resposta
efetiva para o enfrentamento da fome. As cozinhas solidárias são uma ação
importante, que brotou dentro da própria sociedade como resposta emergencial e
que necessitam ser incentivadas e apoiadas pelas políticas públicas. Mas, será
necessário ter políticas e ações da sociedade que criem uma rede ampla e
abrangente para superarmos o quadro estrutural da fome no país.
Fonte: Por Flávia
Cândido, em Outras Palavras
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