sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Ocidente: Breve história de uma derrocada

Até que ponto precisamos ir pelo ralo até acordarmos? Muitos de nós estão cientes das catástrofes ambientais e sociais que estamos construindo, mas a compreensão individual tem pouca influência no processo global de tomada de decisões. Temos, de fato, corporações poderosas e as reuniões de Davos que elas usam para se congratular. Porém, os cosméticos, no estilo ESG, não nos impedirão de chegar ao desastre. Uma abordagem global pode ajudar. A ganância é estúpida.

Uma mudança sistêmica é necessária e inevitável, mas estamos acostumados a simplesmente empurrar as coisas para ver o que acontece e a tomar medidas em larga escala somente depois que as catástrofes acontecem. O New Deal foi possível, no sentido de que havia força política para ele, depois que o desastre de 1929 havia penetrado em tantos interesses que Franklin Roosevelt foi eleito presidente dos EUA, e teve força para tomar medidas para mudanças estruturais. Tributar as fortunas financeiras e promover tantos investimentos em infraestrutura e bem-estar só foi possível quando a dor se espalhou e atingiu os mais abastados.

As instituições de governança global que ainda temos só se tornaram possíveis diante do desastre da Segunda Guerra Mundial, com mais de 60 milhões de mortos, outro número semelhante de feridos, cidades bombardeadas em todo o mundo, o choque da bomba atômica e um sentimento geral de que precisávamos de instituições de governança global. Tivemos Yalta, mas também Bretton Woods e muitas instituições que possibilitaram alguma regulamentação em escala global. Mas isso foi há 80 anos, e a capacidade de governança global não melhorou, apesar das muitas mudanças: descolonização, informática, conectividade global, dinheiro virtual, gigantes corporativos de escala mundial, plataformas de comunicação, financeirização global nas mãos do setor de gestão de ativos. Nunca é demais repetir que nossas instituições de governança global datam da década de 1940.

Atualmente, temos 193 países membros da ONU e um pequeno núcleo de membros do Conselho de Segurança, que representam outra era. Como ainda podemos esperar que o acordo monetário baseado no dólar faça sentido em 2024? Os desafios ambientais globais mal eram imaginados em 1944; a enorme desigualdade que está explodindo e se aprofundando até mesmo nos países ricos mal era discutida. O principal sentimento era o horror, e o principal desafio era a reconstrução do que havia sido destruído em muitos países. O plano Marshall foi apenas uma parte das medidas tomadas, mas forneceu soluções práticas para as necessidades mais urgentes. Foi uma grande ajuda para os países que precisavam, em parte motivada pelo grande urso no Oriente, mas o mais importante é que ajudou simultaneamente as nações necessitadas e estimulou a economia dos EUA ao fornecê-la. Certamente foi uma solução vantajosa para todos, estimulando a reconstrução e o crescimento em ambos os lados.

Atualmente, podemos imaginar uma reorientação estrutural em nível global? Temos de esperar por outra crise financeira global e pela Terceira Guerra Mundial? Estamos nos afogando em estatísticas sobre a fome no mundo (800 milhões) e mais de dois bilhões em insegurança alimentar, estamos vendo incêndios e inundações em todos os lugares, enquanto os céticos estão se perguntando se, afinal, pode haver algo nessa alegação de mudança climática. Estamos engolindo resíduos plásticos em todas as refeições e pisando neles em todas as praias. Empresas privatizadas de gestão de água despejam esgoto em rios e mares por toda parte (Grã-Bretanha, meu Deus!), navios pesqueiros de alta tecnologia destroem a vida nos oceanos, as florestas do Brasil, do Congo e da Indonésia estão sendo derrubadas (isso aumenta o PIB), os produtos químicos persistentes (PFAs) estão por toda parte e nem os países nem as empresas fazem nada a respeito, além de apontar o dedo uns para os outros.

A desigualdade está atingindo níveis grotescos, e temos que assistir à reunião absurda de governos que decidiram despejar 50 bilhões de dólares, uma quantia enorme, na guerra da Ucrânia, ao mesmo tempo em que Elon Musk recebeu um cheque de 46 bilhões de dólares para uso pessoal. E não é apenas a questão da pobreza, com o sofrimento gigantesco que ela gera, mas também a própria desigualdade, a sensação desesperadora de estar preso no fundo do poço, alimentando a frustração, o ódio e o populismo de extrema direita. Até mesmo o Papa está pregando por uma nova economia. Estamos chegando a um momento em que os diferentes desastres convergem e provocam uma crise civilizatória. Isso possibilitará uma mudança estrutural? Os EUA estão basicamente pedindo mais guerra em todos os lugares, afogando o mundo em equipamentos militares, impulsionados pela enorme máquina de guerra militar e econômica. O domínio global da Pax Americana é um sonho doentio. As guerras permanentes que Washington trava não levarão a um sistema mundial coerente. Precisamos de um pacto global.

Basicamente, o chamado Norte Global tem 16% da população, mas 56% da riqueza acumulada. Contudo, de acordo com Relatório da Riqueza Global, do banco suíço UBS, o , “a participação da população adulta é mais do que o dobro da participação da riqueza na América Latina, cinco vezes a participação da riqueza na Índia e dez vezes a participação da riqueza na África”. (p.15) As riquezas estão lá em cima; a população está aqui embaixo. A China está fora do cenário, mas é um ator poderoso para a mudança global estrutural. Em paridade de poder de compra, o PIB de 2022 é de 31 trilhões de dólares na China e 25 trilhões de dólares nos EUA. Em 2024, deve chegar a 36 trilhões e 28 trilhões, respectivamente.1 Não há Pax Americana em vista, e uma nova estrutura de poder global está surgindo. Ou mais guerras, e muito possivelmente a guerra final.

A questão não é nova. Li novamente o relatório de 1980, produzido sob a coordenação de Willy Brandt, ex-chanceler alemão e prêmio Nobel da Paz, [North-South: a program for survival].2 A capa do livro apresenta um mapa global muito semelhante ao acima, a divisão global estava lá e só se aprofundou. Quando o relatório foi apresentado, com grande impacto internacional, no mesmo ano, Ronald Reagan e Margareth Thatcher estavam chegando ao poder, com um programa geral de mais desigualdade, aprofundando a divisão global, na visão de que os ricos são a solução e o Estado é o problema. Nesses 44 anos desde que o relatório foi publicado, vimos um aprofundamento da desigualdade e dos dramas ambientais, tantas conferências e resoluções internacionais para enfrentá-los, mas uma explosão do poder corporativo e uma erosão das democracias, bem como das instituições de regulamentação global. A tecnologia avançando, a democracia retrocedendo.

Hoje temos a Agenda 2030 — 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, bem projetados, aprovados por todas as nações (com os EUA em um ioiô de entrada e saída) e claramente inatingíveis nas tendências atuais. Mas olhar para trás, para o que ficou conhecido como Relatório Brandt, é preocupante. No resumo das recomendações, o relatório começa com a questão dos países mais pobres: “Deve ser lançado um programa de ação que inclua medidas emergenciais e de longo prazo para ajudar os cinturões de pobreza da África e da Ásia, especialmente nos países menos desenvolvidos.” O segundo item diz respeito à fome e aos alimentos: “É preciso acabar com a fome e a desnutrição em massa”, com base em fluxos financeiros para o desenvolvimento agrícola e em um conjunto de outras medidas. O relatório continua com recomendações ligadas à proteção do meio ambiente, ao “terrível perigo para a estabilidade mundial causado pela corrida armamentista, à necessidade de reformas sociais e econômicas no Sul, complementando o papel a ser desempenhado pelo meio ambiente internacional”.

O relatório resume as recomendações relativas às transações de commodities, com mais processamento local, industrialização e regulamentação do comércio mundial. Particularmente interessante é a questão das corporações transnacionais: “Legislação, coordenada nos países de origem e de destino, para regulamentar as atividades das empresas transnacionais em questões como comportamento ético, divulgação de informações, práticas comerciais restritivas e padrões trabalhistas”. A ordem monetária mundial precisa de uma reforma urgente, com uma moeda internacional: “Tal moeda substituiria o uso de moedas nacionais como reservas internacionais”, uma referência direta ao absurdo domínio do dólar, evidente até mesmo neste momento. Seria necessária a participação do Sul “na equipe, na administração e na tomada de decisões do FMI”.

De modo geral, o relatório enfatiza a necessidade de “uma nova abordagem para o financiamento do desenvolvimento”, atribuindo “um papel maior na tomada de decisões e na gestão dos países mutuários” e criando um “Fundo Mundial de Desenvolvimento” com filiação universal e tomada de decisões compartilhada de forma mais equilibrada entre mutuantes e mutuários, e usando o dinheiro arrecadado com a tributação do “comércio internacional, produção ou exportação de armas, viagens internacionais, bem como bens comuns globais, como os minerais do fundo do mar”. Tudo isso exige um fortalecimento do sistema da ONU e de várias organizações multilaterais.

Tudo isso lhe parece familiar? Bem, eu participei da cúpula mundial da Rio-92, depois da Rio+20 e, atualmente, da batalha árdua pela Agenda 2030 no Brasil. O fato é que nós, assim como outros países, estamos nos afogando na desigualdade e nos desastres ambientais, ao mesmo tempo em que temos de ouvir graves considerações do mundo corporativo, atualmente fortemente ligado à política, à grande mídia, aos think tanks e até mesmo a uma boa parte da academia. Desde o Relatório Brandt de 1980, com uma apresentação clara dos desafios e das medidas necessárias, já se passaram 44 anos e ainda estamos conversando. Qual COP estamos preparando, a COP29? A última foi em Dubai, estávamos discutindo petróleo e mudanças climáticas. Em Dubai.

Esse mundo organizado para os 15% não está funcionando. A China, hoje a maior potência econômica, não será derrubada com o mimetismo do apoio armamentista de Taiwan pelos EUA; a Rússia não sairá do mapa-múndi, a Índia não teve problemas em deixar o dólar para o comércio de petróleo, os Brics estão se expandindo rapidamente, Dilma Rousseff está à frente do Novo Banco de Desenvolvimento, também chamado de banco dos Brics, o presidente Lula está trabalhando em uma iniciativa poderosa para costurar os interesses dos países do Sul Global. E as populações dos países em desenvolvimento estão atualmente conscientes do absurdo de sua pobreza. Em números compreensíveis, o PIB mundial de 110 trilhões de dólares equivale a 4.200 dólares por mês para uma família de quatro membros. Nossos problemas não são econômicos, mas de organização social e política.

Uma questão fundamental é o que acontece nos Estados Unidos, economicamente mais frágeis, mas um gigante militar. E eles atingiram um nível de desigualdade que abre caminho para o populismo de extrema direita, impulsionado pela trágica mudança de 2010 na Constituição que permite que grandes fortunas elejam políticos. O sangue está secando e coagulando em um sistema político, econômico e cultural diferente, desigual, autoritário e liderado pelo poder corporativo global que conecta o complexo militar e industrial de armas, o domínio da comunicação em escala mundial da GAFAM, a capacidade de vigilância global (GAFAM, NSA, CIA, Five Eyes etc.). É uma mistura perigosa. Tantos políticos de alto nível mentindo com todos os dentes sobre os resultados das eleições e sobre tantas questões, em uma potência militar tão grande, é assustador.

A desigualdade tem impactos sociais, principalmente para os pobres, mas também em termos de poder político dos ricos. Nenhuma democracia pode funcionar quando se aprofunda a desigualdade — entre outros motivos, porque os ricos se esforçarão para aumentar seu poder para extrair mais riquezas. O gráfico abaixo é explícito:

De 1990 a 2019, praticamente 30 anos, vemos na cor dominante mais escura a evolução da participação dos 10% mais ricos na riqueza dos EUA. Na cor mais clara abaixo, a participação dos 50% a 90%. E pouco visível na parte inferior, a linha milimétrica mostra a evolução dos 50% inferiores, metade da população dos EUA estagnada na base, vendo seus filhos sem perspectivas. Frustrados e furiosos, eles sabem que foram deixados de fora e se tornam um grande cliente para o discurso de ódio e o populismo de direita. Isso, obviamente, não se limita aos Estados Unidos. Mas o peso militar e político dos EUA ameaça o equilíbrio mundial global.

Por que estou voltando ao Relatório Brandt, um documento de 1980? Porque, além de mostrar as medidas óbvias necessárias para um desenvolvimento sustentável global em escala mundial, ele mostra a saída óbvia: o plano Marshall para a Europa estimulou o desenvolvimento em ambas as extremidades. Uma iniciativa de desenvolvimento mundial para o Sul Global teria um impacto semelhante, representando para os países mais ricos uma nova fronteira econômica, um estímulo para mais produção, mais empregos e desenvolvimento em ambos os lados. Um pacto global eficaz não se trata de dinheiro para os pobres, mas de um lembrete realista de que orientar nossas capacidades financeiras, econômicas e tecnológicas para onde elas são mais necessárias é o caminho mais eficiente não apenas para evitar a catástrofe, mas para gerar prosperidade global, incluindo o Norte Global.

Gerar desenvolvimento e empregos nos países mais pobres é muito mais sensato do que construir muros e gritar contra os imigrantes. A catástrofe está se aproximando também no Norte Global, um pesadelo político. Mas tente convencer Elon Musk… Sim, eu chamo esses tipos de caras de idiotas da alta tecnologia. Precisamos de mudanças estruturais.

 

•        Expansão do BRICS fortalecerá influência do Sul Global ao mundo, diz especialista

O BRICS, após sua expansão, vai unir os países do Sul Global e fortalecer ainda mais sua influência e representação na governança global, disse à Sputnik Li Yonghui, chefe do Departamento de Cooperação Multilateral e Regional do Instituto da Rússia, Europa Oriental e Ásia Central da Academia Chinesa de Ciências Sociais.

A cúpula do BRICS será realizada na cidade russa de Kazan de 22 a 24 deste mês de outubro. Um total de 33 países, dos quais 24 a nível de altos funcionários, inclusive o presidente brasileiro Lula da Silva, já confirmaram sua participação.

Yonghui disse que o aumento do número de participantes do BRICS demonstra o grande progresso do mecanismo de cooperação na associação, bem como "a abertura, a inclusão e a representatividade da cooperação do BRICS".

"A realização da cúpula do BRICS em Kazan mostra que os países do BRICS estão desempenhando um papel cada vez mais importante na governança global", continuou o especialista.

O BRICS, segundo ele, tem como objetivo reformar e aprimorar o sistema de governança global, especialmente no atual ambiente internacional instável.

"Após a expansão, o BRICS unirá estreitamente os países do Sul Global, aumentará ainda mais sua influência e representação na governança global, defenderá a multipolaridade mundial igualitária e ordenada e a globalização econômica inclusiva, e explorará novas maneiras de alcançar o desenvolvimento sustentável por meio da cooperação multilateral", concluiu Li Yonghui.

O BRICS é uma associação interestatal criada em 2006. A Rússia assumiu a presidência do BRICS em 1º de janeiro de 2024.

O ano começou com a entrada de novos países-membros na associação: além de Rússia, Brasil, Índia, China e África do Sul, o BRICS agora inclui Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita.

A 16ª Cúpula do BRICS em Kazan vai ser o principal evento da presidência russa.

 

Fonte: Por Ladislau Dowbor em Meer - Tradução: Glauco Faria, para Outras Palavras/Sputnik Brasil

 

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