Hans Kelsen e o eros platônico
A abordagem da
temática psicanalítica é um aspecto ainda relativamente pouco conhecido da obra
de Hans Kelsen, célebre autor da Teoria pura do direito. Bastante interessantes
e peculiares são os textos dedicados pelo jusfilósofo austríaco ao estudo psicanalítico
de Platão: o artigo “O amor platônico”, publicado em 1933 na revista Imago,
periódico dedicado às reflexões do movimento psicanalítico sobre as ciências
humanas; e o livro A ilusão da justiça, que retoma e expande as ideias
kelsenianas sobre o filósofo grego, publicado apenas em 1985.
Para Hans Kelsen, a
doutrina política platônica está calcada na homossexualidade do filósofo,
circunstância que explicaria uma tendência totalitária do projeto filosófico
platônico, caracterizado, entre outros fatores, pela projeção de uma vontade de
poder sobre a sociedade heteronormativa; pela exclusão da mulher da vida
pública; e pelo dualismo epistemológico do mundo das ideias.
“O amor platônico” foi
publicado na Imago em 1933, mesmo ano em que o jurista deixou a Alemanha, com a
ascensão do nazismo. Naquele momento, a SS e a SA hitleristas apresentavam-se
como uma continuidade da tradição germânica dos Männerbünde, confrarias militares
aristocráticas masculinas existentes ao tempo do II Reich, que situavam entre
seus antecedentes as fraternidades militares da elite espartana. Estas, por
sinal, são referidas por Hans Kelsen como exemplo de prática homoerótica na
Grécia (1995 [1985], p. 88-90).
Em seu artigo “Kelsen
e l’omosessualità maschile”, Tommaso Gazzolo, professor de filosofia do direito
na Universidade de Sassari, defende coexistirem na análise kelseniana duas
influências contraditórias. De um lado, haveria a filiação sincera de Hans Kelsen
à novidade psicanalítica, paradigma no qual seria impossível sustentar a
existência de tendências sexuais “normais” ou “naturais” em abstrato, visto que
o objeto do desejo sexual só se pode determinar no plano da história
individual. De outro, haveria a persistência de uma concepção heteronormativa
da sexualidade humana, herdada da psiquiatria do século XIX, segundo a qual as
relações heterossexuais seriam condição de viabilidade das sociedades humanas,
por seu viés reprodutivo, o que tornaria a homossexualidade uma condição
antinatural.
Desse modo, seu papel
na reprodução física do corpo político definiria a função social do padrão
heteronormativo, o que explicaria sua consagração pela ordem jurídica, que,
segundo Hans Kelsen, já desde a Grécia Antiga teria buscado manter a
homossexualidade em situação minoritária. Assim, para Tommaso Gazzolo, a partir
do momento em que Hans Kelsen expõe a justificação da heteronormatividade
jurídica por meio do argumento da manutenção populacional, haveria uma confu[ão
entre o ser da prática social-sexual majoritária e o dever-ser de sua
normatividade.
Entendemos, no
entanto, que a leitura do acadêmico italiano está equivocada, nesse particular,
pois preocupa-se Hans Kelsen em expor um juízo de conveniência sobre a norma,
sem endossá-lo ou considerá-lo fundamento de juridicidade. Não se pode divisar
como uma posição própria de Hans Kelsen uma justificação dessa normatividade,
ou seja, uma passagem do ser heterossexual para o dever-ser heterossexual, dado
que, na concepção kelseniana, o conteúdo da ordem normativa é um fator
contingente de análise.
Tommaso Gazzolo tem o
mérito de destacar a dimensão da normatividade, uma questão-chave no pensamento
de Hans Kelsen. Mas, ao tratar da heterossexualidade como “norma”, Hans Kelsen
não fundamenta ele próprio uma deontologia, mas apenas a expressão dessa orientação
sexual como o fenômeno socialmente preponderante. Especialmente em A ilusão da
justiça, não se trata de atribuir conotação moral à heterossexualidade, nem de
negar o potencial homoerótico inerente a todo indivíduo, posições afastadas por
Hans Kelsen com base nos resultados da investigação psicanalítica (1995 [1985],
p. 65).
Judith Butler já havia
observado uma contaminação do pensamento de Freud pelo jargão da psiquiatria do
século XIX, cujo enquadramento da patologia sexual tem em Krafft-Ebing seu
maior expoente. A nosso ver, porém, há um cerne revolucionário na linguagem da
análise freudiana pois esta, ao se valer da terminologia do século anterior,
subverte-a, ao não compreender os assim ditos “desvios” sob uma chave
patológica.
Evidência disso é a
conhecida correspondência entre Freud e pais de pacientes homossexuais, na qual
o criador da psicanálise explicita sua posição sobre a natureza não patológica
da orientação homossexual. Também a nota acrescentada em 1915 por Freud a seus
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade enfatiza a recomendação de não
segregação dos homossexuais e a percepção de que também o mecanismo psíquico de
formação da heterossexualidade, não apenas o da homossexualidade, requer
explicação (2016 [1905], p. 34-35).
Hans Kelsen, portanto,
é fiel a Freud. A ênfase kelseniana na ligação entre a suposta homossexualidade
de Platão e a alegada inclinação totalitária de sua obra não decorre de alguma
característica intrínseca da homossexualidade, mas de uma resposta psíquica do
filósofo, manifestada como vontade de poder, frente à necessidade de sublimação
do eros em uma sociedade homofóbica.
Contudo, isso não nos
pode impedir de reconhecer problemas significativos no estudo kelseniano de
Platão. O primeiro decorre de um materialismo vulgar, sem mediação dialética,
visto que Hans Kelsen enfatiza a origem aristocrática de Platão como evidência
suficiente de seu conservadorismo, acentuado pela manifestação de seu eros
homossexual. O segundo consiste em um nietzschianismo, também vulgar, no qual a
repressão do Eros platônico se traduz em uma pretensão pedagógica identificada
como vontade de poder sobre a sociedade.
Fonte: Por Ari Marcelo
Solon e Leonardo Passinato e Silva em A Terra é Redonda
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