Por que identidade racial de Kamala é
questionada, e não só por Trump?
“Eu não sabia que ela
era negra até alguns anos atrás, quando ela se tornou negra e agora ela quer
ser reconhecida como negra. Então, não sei. Ela é indiana ou negra?”,
questionou o candidato republicano à Presidência, Donald Trump, em uma
entrevista recente na qual comentava a raça de sua oponente, a democrata Kamala
Harris.
Esta foi uma das
várias manifestações de Trump sobre a identidade de Kamala, atual
vice-presidente do país, cujo pai é negro e jamaicano e a
mãe, indiana.
“Ela não é negra. É o
que eu ouvi, que ela é indiana”, disse a cantora Janet Jackson ao jornal
britânico The Guardian, em setembro, ao mencionar a democrata. Na mesma
conversa, ela admitiu que poderia estar mal informada, mas “me contaram que
descobriram que o pai dela era branco”.
Jackson talvez
estivesse se referindo a alguma das postagens virais nas redes sociais com
falsas conclusões sobre a certidão de nascimento de Kamala. No documento, de
1964, a mãe da presidenciável, uma imigrante indiana, se autoclassifica como
“caucasiana” — modo como os indianos se identificavam nos EUA nos anos 1960. No
atual senso comum, porém, o termo tem sido usado como sinônimo de branco. “Ela
é uma mulher branca!!!”, concluiu uma das comentaristas de internet que
espalhava uma interpretação incorreta do documento de Kamala.
Kamala Harris se
autoidentifica como negra e de origem indiana há décadas. Segundo o Instituto
Nacional de Saúde dos EUA, uma pessoa pode ser negra sem ser afro-americana.
“Um afro-americano (‘Afro-american', em inglês) é uma pessoa cujas origens
estão em qualquer um dos grupos raciais negros da África”, diz o site do
Instituto Nacional dos EUA.
Já o termo negro
(‘Black’) “é mais amplo e inclusivo” do que o afro-americano. “Alguém pode
nascer na Jamaica, viver nos EUA e se identificar como negro, mas não
afro-americano”. Há também quem entenda o termo afro-americano como uma
referência aos descendentes de escravizados nos EUA (leia mais abaixo).
Kamala afirma que
Trump recorre a questionamentos à identidade e cor da pele da democrata para
atacá-la e aprofundar divisões raciais entre os próprios americanos. Veículos
de imprensa dos EUA como, a revista New Yorker, qualificam tais comentários do
republicano como “racistas”.
Já aliados de Trump,
como o candidato a vice e senador J.D. Vance, não apenas sustentam suas
declarações como acusam Kamala de oportunismo racial/eleitoral.
“Ela falseia quem ela
é a depender da audiência em frente à ela — e então essa é quem ela é e quem
ela sempre foi”, disse Vance, notando que Kamala fala em “Black English” em
detrimento de um dialeto mais formal quando a plateia é majoritariamente negra.
Em um pleito que pode
ser definido por uma margem de apenas dezenas de milhares de votos, ganhar a
preferência de certos grupos demográficos fará a diferença. E os eleitores
negros são historicamente uma das reservas mais importantes de votos.
Há duas semanas, a
Iniciativa de Opinião Pública da Howard University ouviu 963 prováveis eleitores negros nos sete principais Estados-pêndulo do país (Arizona, Geórgia, Michigan, Nevada, Carolina do Norte, Pensilvânia e Wisconsin), que devem definir o novo
ocupante da Casa Branca.
A pesquisa mostrou que
82% dizem que votarão em Kamala, enquanto 12% preferem o ex-presidente Donald
Trump. Outros 5% estão indecisos e 1% planeja escolher outro candidato.
Pode parecer — e é —
uma liderança confortável para a democrata. Mas, em 2020, em um levantamento
comparável, o antecessor de Kamala e atual presidente Joe Biden aparecia com 7
pontos percentuais a mais do que ela entre os negros. Já uma pesquisa do New York
Times e Siena College divulgada no último dia 12 sugere que a distância entre a
preferência de eleitores negros por Biden em 2020 e por Kamala agora pode ser
ainda maior, de 10 pontos percentuais.
Analistas concordam
que para manter a possibilidade de vencer nesses Estados, Kamala precisa
conquistar os votos deste grupo que ainda lhe faltam - e por isso mesmo Barack
Obama acaba de ser mandado à Pensilvânia para exortar o eleitorado negro a
escolhê-la. “Meu entendimento, com base nos relatórios que recebo de campanhas
e comunidades, é que ainda não vimos os mesmos tipos de energia e participação
em todos os setores de nossos bairros e comunidades como vimos quando eu estava
concorrendo", disse Obama à audiência negra, para na sequência
repreendê-la.
"De um lado,
vocês têm alguém que cresceu como vocês, os conhecem, foi à faculdade com
vocês", em referência à Kamala Harris, enquanto de outro lado, com Donald
Trump, ainda nas palavras de Obama, "há alguém que tem demonstrado
consistentemente desrespeito, não apenas pelas comunidades, mas por vocês como
pessoa. E ainda assim, estão considerando ficar de fora?"
Mas a discussão supera
— e muito — apenas a mera matemática dos votos. Para alguns americanos (brancos
e não brancos), é motivo de comemoração ter Kamala como potencialmente a
primeira mulher negra a assumir a Presidência dos EUA, enquanto há mesmo entre
os movimentos afro-americanos quem questione o real significado disso.
Em um cenário
eleitoral marcado por tensões raciais - a exemplo da falsa alegação de Trump de
que migrantes haitianos comem cachorros e gatos de estimação dos americanos — a
disputa sobre a identidade de uma das presidenciáveis é também uma discussão
sobre representação, preconceito e composição da sociedade.
·
A novidade
multirracial
Há uma intensa
movimentação no tecido social americano: a identidade de Kamala Harris é, de
certa forma, uma novidade para o país. Como outros 33,8 milhões de americanos
(10% da população dos EUA), Kamala se considera uma pessoa multirracial ou
miscigenada.
Foi apenas nos anos
2000 que o Censo americano passou a permitir que a população se identificasse
com mais de uma raça. De lá para cá, este é o grupo populacional que mais
cresce no país.
Em comparação, no
Brasil, o termo mais próximo ao multirracial do Censo americano é o pardo,
aquele que se identifica como uma mistura de duas ou mais cores de pele, ou
raças — incluindo branca, preta e indígena - na definição do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) .
São mais de 92 milhões
de brasileiros, ou 45% da população que se identificam como pardos, o que os
torna o maior grupo dentre a população brasileira, segundo dados do Censo de
2022.
Não é fortuita a
diferença entre a atual composição populacional de Brasil e Estados Unidos, os
dois maiores países das Américas, compostos por migrantes, indígenas e negros
escravizados.
Enquanto no Brasil a
miscigenação foi incentivada como uma política de Estado entre o fim do séculos
19 e o início do 20, nos EUA o que se viu foi justamente o contrário.
Diferentes Estados e mesmo municípios do sul do país passaram a adotar o que
ficou conhecido como leis Jim Crow, uma forma pejorativa de se referir a
pessoas negras no século 19.
Tais regras
determinavam a segregação total entre brancos e não-brancos. Neste último grupo
estavam todos que tivessem alguma ascendência negra, ainda que fosse apenas por
“uma gota de sangue”, termo que batizou a regra.
Os dois grupos raciais
estavam proibidos de ocupar os mesmos espaços públicos, fossem escolas,
igrejas, hospitais, restaurantes, repartições públicas, ônibus e trens. Na
prática, vivia-se sob um regime de apartheid.
Invariavelmente, as
instalações acessíveis aos brancos eram superiores às reservadas aos demais. Em
certos Estados, negros ficavam proibidos de morar nos mesmos bairros que
brancos e eram impedidos de votar (até 1965) e casamentos interraciais também
eram considerados ilegais até 1967.
“Foi apenas na década
de 1960, ou seja, já durante a vida de Kamala Harris e Donald Trump, que o
apartheid americano instaurado legal e politicamente começou a ser
desmantelado. Somos pessoas que nasceram no apartheid e isso deixa uma herança
imediata. Quando pensamos em raça e racismo, não estamos falando apenas sobre o
legado da escravatura (abolida em 1863). Estamos falando sobre o legado de Jim
Crow e isso não é algo remoto, de um passado muito distante, para a maioria dos
americanos”, afirmou à BBC News Brasil a historiadora Martha Jones, professora
da Johns Hopkins University e especialista em temas de raça e escravidão nos
EUA.
Para que o sistema de
segregação funcionasse plenamente, o conceito de raça tinha que ser fixo e
estritamente aplicado. E a miscigenação tinha que ser impedida — e ter um alto
custo para quem ainda assim a praticasse.
“Não estamos falando
apenas de raça e racismo em termos sociológicos, econômicos ou culturais.
Estamos falando de um sistema de leis e políticas que se baseava na visão de
que existia uma pessoa branca, uma negra, uma ameríndia e uma asiática e que
direitos e privilégios eram arbitrados por lei a partir desse prisma”, diz
Jones.
É neste contexto — e
em meio ao movimento das lutas pelos direitos civis — que Kamala Harris nasce,
em 1964, em Oakland, na Califórnia. Ela foi criada de modo a espelhar essa
multiplicidade identitária.
“Eu cresci
frequentando uma Igreja Batista negra e um templo Hindu”, contou Kamala Harris
ao jornal Los Angeles Times em 2015, durante sua campanha a uma vaga para o
Senado americano. “Minha mãe indiana tinha consciência de que estava criando
duas meninas negras (Kamala e a irmã, Maya)”, relata Kamala, cujo nome
significa Lótus em sânscrito, em seu livro The Truths We Hold.
Em diversas ocasiões,
porém, ela destacou que a consciência de sua negritude “não veio em prejuízo da
minha identidade indiana”.
Entre suas memórias de
infância estão viagens à Índia e fins de semana na casa do pai, um economista
professor da Universidade Stanford, em Palo Alto, no Vale do Silício.
“Os filhos dos
vizinhos não eram autorizados a brincar com a gente porque éramos negras”,
recordou Kamala, sobre essas visitas.
Nos anos 1970, sua
turma na escola primária foi apenas a segunda a ter alunos racialmente
misturados — graças a uma decisão da Suprema Corte que anos antes derrubou a
segregação escolar racial.
Tanto o pai, o
economista jamaicano Donald Harris, quanto a mãe, a bióloga indiana Shyamala
Gopalan, levavam Kamala e Maya às manifestações pelos direitos civis que
culminaram na queda do regime de separação racial no país. Anos mais tarde,
Kamala atribuiria sua decisão de estudar direito a três gigantes deste mesmo
movimento: Thurgood Marshall, Charles Hamilton Houston e Constance Baker
Motley.
O curso superior foi
feito na maior universidade negra do país, a Howard University, em Washington
DC, capital dos EUA. Lá, ela se tornou também presidente da Associação dos
Estudantes Negros de Direito. E compôs a irmandade de mulheres universitárias
afro-americanas Alpha Kappa Alpha.
Já senadora, atuou
como integrante da Comissão Negra e da Comissão Asiático Americana — o que,
aliás, nem sempre é possível. Uma das antigas regras congressuais ainda em
vigor nos EUA impede, por exemplo, que membros da Comissão Hispânica também
participem da Comissão Negra, o que obriga parlamentares latinos e negros a
escolher em que aspecto de sua identidade militarão, ou então a lutar por uma
exceção à regra.
Kamala sempre teve uma
postura reservada sobre sua identidade racial e as situações que viveu por
causa dela na sociedade americana. “Não me sinto obrigada a cantar longas
baladas sobre minhas experiências com a injustiça”.
Em 2015, questionada
sobre a questão racial, ela dizia se recusar a, em seus termos, “ser colocada
nesta ou naquela caixinha”.
Para Martha Jones, o
fato de que parte da população — e do Congresso — ainda tenha dificuldade em
assimilar a ideia de identidades miscigenadas pode ser explicada justamente
pelo peso histórico do recente apartheid na formação da consciência política
americana.
“Não deveria ser algo
excepcional a menos que você concorde com a ideia de que raças deveriam ser
puras porque funcionam como um delimitador de direitos, privilégios e poder. E
se usaremos raça para arbitrar as coisas, as pessoas que são chamadas de mistas
são um advento preocupante porque não cabem muito bem nas caixas, na
perspectiva do apartheid”, diz Jones.
Roger House, professor
emérito de História Americana do Emerson College, também vê ecos de apartheid e
da ideologia que o instaurou no uso político feito por Trump e seus aliados da
questão identitária de Kamala.
“Para compreender o
questionamento de Donald Trump sobre a origem racial de Harris, é importante
compreender os fundamentos da supremacia branca do movimento MAGA (Make America
Great Again). É uma forma de minar a sua credibilidade como pessoa de cor e como
americana de pais imigrantes. As duas questões (raça e migração) estão
interligadas na política do Trumpismo”, afirmou House à BBC News Brasil.
Grupos extremistas e/
ou supremacistas brancos como Proud Boys e a Ku Klux Klan já endossaram
publicamente a candidatura de Trump.
E embora oficialmente
Trump tenha rejeitado o apoio de nacionalistas brancos, neonazistas,
supremacistas brancos e outros grupos de ódio, em 2022, logo após se lançar
presidenciável, Trump jantou em seu resort com Nick Fuentes, um conhecido líder
supremacista branco.
·
Negra, mas não
afro-americana?
House afirma ainda que
“os ataques de Trump” foram facilitados pelo modo “fluido” como Kamala tem
tratado sua identidade, algo revelador de outro mal-estar social. Em que pese
as condições de Kamala como mulher de origem negra e indiana, não é um resultado
óbvio que a comunidade afro-americana se sinta representada por ela.
“A herança racial de
Kamala Harris é uma faca de dois gumes para os negros americanos”, afirma Roger
House, do Emerson College.
“Sim, ela é uma mulher
negra, mas de origem imigrante tanto do lado paterno quanto materno. Como tal,
alguns diriam que lhe falta a autêntica experiência negra americana e,
portanto, a identidade. A base dessa identidade é uma memória coletiva de
herança partilhada e uma forte crença num destino comum. Portanto, não a vejo
como uma representante orgânica do “grupo étnico” negro americano”, conclui.
Assim como Barack
Obama, o primeiro presidente negro dos EUA, cujo pai era queniano, Kamala não
descende de negros que tenham sido escravizados nos EUA.
Sua linha de
ascendência do lado jamaicano é um tanto quanto incerta. Segundo seu pai,
Donald Harris, eles seriam parentes de um irlandês dono de escravizados que se
estabeleceu na Jamaica.
“Minhas raízes
remontam, à minha avó paterna, Srta. Chrishy (nascida Christiana Brown,
descendente de Hamilton Brown, considerado como proprietário de plantações e de
escravizados e fundador da [cidade jamaicana] Brown’s Town)”, escreveu Donald Harris em um artigo para o jornal Jamaica Globe, em 2018.
Mas serviços de
checagem, como o PolitiFact, encontraram
registros de ascendência da família Harris na Jamaica relacionadas a uma mulher
qualificada como “labourer” tanto na certidão de nascimento como na de óbito.
“Labourer” era o termo
usado na Jamaica para designar aqueles que haviam sido emancipados da condição
de escravidão ou seus descendentes.
Quando o pai de Kamala chegou
aos EUA vindo da Jamaica, em 1961, ele era parte de uma pequena minoria. Havia
apenas 125 mil negros imigrantes àquela altura em todo o país, dentre 20,5
milhões de negros na população americana como um todo (11%), descendentes das
centenas de milhares de homens e mulheres traficados para os Estados Unidos e
lá escravizados no período colonial.
O cenário atual é bem
diferente. Se no início dos anos 1960, 1 em cada 164 negros nos EUA era
estrangeiro, em 2019, 1 em cada 10 negros no país era estrangeiro, segundo o
Instituto de Pesquisa Pew Research.
São quase 5 milhões de
pessoas, das quais mais da metade desembarcou em território americano depois
dos anos 2000.
A chegada dos
migrantes trouxe características novas à comunidade negra, mas também deixou
evidente certas tensões. Parte dos grupos negros americanos que advogam por
medidas de reparo pelo histórico de escravatura do país defendem que tais
compensações sejam concedidas exclusivamente para pessoas negras que possam
provar serem descendentes de homens e mulheres escravizados nos Estados Unidos,
e não para toda e qualquer pessoa negra que viva no país.
Existe entre
estudiosos e militantes negros a percepção de que a vida na sociedade americana
é mais difícil para o grupo que descende de escravizados nos EUA do que para os
demais negros.
Algo análogo à questão
do colorismo, conceito usado para
denunciar que a mistura entre grupos étnico-raciais (no passado, frequentemente
fruto da violência sexual de colonos brancos contra negras escravizadas) não
criou uma convivência harmoniosa entre os diferentes, mas uma hierarquização
social, com negros de pele clara normalmente tendo mais facilidades ou sendo
menos alvos de preconceito/racismo do que os de pele mais escura.
“O fato de os dois
políticos negros mais proeminentes do Partido Democrata terem pele clara e não
terem a identidade negra americana tradicional revela as restrições de raça,
cor e status nesta sociedade”, diz House.
Ele vê em Obama uma
tentativa bem-sucedida de se integrar aos negros de Chicago, onde construiu sua
carreira política. Já Kamala, na visão de House, foi alçada ao poder “pelos
brancos do partido Democrata”, e não por uma militância racial específica.
Por essa perspectiva,
há um certo ceticismo de estudiosos e militantes negros sobre o real
significado da chegada destas figuras a postos de poder. Se Kamala fosse uma
descendente de negros escravizados nos EUA, com uma trajetória também típica de
alguém deste grupo, ela estaria hoje neste mesmo lugar?, questionam.
Por fim, House
relembra as tensões inerentes à miscigenação na comunidade negra desde os
tempos da escravatura — experiência que aliás se repetiu no Brasil.
“Posso dizer que a
história de mistura racial na comunidade negra é uma experiência complicada e
perigosa. Durante a escravidão, cerca de 10% dos escravizados eram filhos de
senhores de escravos nascidos da violência sexual ou da manipulação de mulheres
indefesas. Muitos destes filhos foram doutrinados a se perceber como superiores
aos demais pretos por terem sangue branco correndo nas veias. Alguns foram
usados por donos de plantações como espiões ou capatazes. O legado dessa
dolorosa e confusa experiência assombra as relações sociais entre os negros até
hoje.”
Fonte: BBC News Mundo
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