Fumaça na Amazônia: os impactos na saúde
revelados por pesquisadora
Para quem vive nas
áreas mais isoladas da Amazônia, a fumaça não é apenas um problema de ar. Ela
está presente nos rios e na pouca água da chuva que ainda cai durante a
estiagem. Dissipada temporariamente nas capitais da Amazônia quando chove, logo
retorna com o cheiro e a neblina. A Amazônia Legal, somente em 2024, já conta
com 221 mil focos de incêndio até 10 de outubro, 78% a mais que em 2023. Sandra
Hacon, médica pesquisadora da Fiocruz, descreve e explica o impacto dessa
realidade em entrevista exclusiva.
A pesquisadora atua na
área de saúde pública e epidemiologia na Escola Nacional de Saúde Pública
(ENSP/Fiocruz). Conhecida por suas contribuições em estudos sobre doenças
infecciosas, vigilância e políticas de saúde, ela se destaca em trabalhos
relacionados à resposta a surtos e epidemias, como na pandemia de Covid-19.
Em 2021, Sandra
coordenou um estudo que comprovou que temperaturas elevadas faz crescer o risco
de doenças e de óbito por “estresse térmico”, principalmente em regiões do
Norte e Nordeste do Brasil. Esse estudo considerou o aumento de temperatura
global de 1,5 °C (2011-2040), 2 °C (2041-2070) e 4 °C (2071-2099), comparado
aos níveis pré-industriais.
Quatro anos antes,
Sandra, junto a outros pesquisadores, demonstrou pela primeira vez que as
partículas de queimadas da Amazônia, além de causar inflamação e estresse
oxidativo, podem danificar material genético e causar a morte de células
pulmonares. Dependendo do nível do dano, uma célula pulmonar pode morrer ou se
reproduzir de forma desordenada, o que leva ao câncer de pulmão.
Pesquisas conduzidas
por Sandra, em 2009, já mostravam um efeito significativo da fumaça gerada
pelas queimadas na Amazônia. Um estudo intitulado “Avaliação dos efeitos das
queimadas para a saúde humana na área do arco do desmatamento: a construção de
indicadores para a gestão integrada de saúde e ambiente”, com dados dos
municípios de Alta Floresta e Tangará da Serra, em Mato Grosso, revelou uma
redução da capacidade pulmonar de crianças e adolescentes em até 0,34 litros
por minuto para cada aumento de 10PM 2,5 de material particulado fino.
Segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS), o PM2,5 é capaz de penetrar profundamente nos pulmões e
entrar na corrente sanguínea, causando impactos cardiovasculares,
cerebrovasculares (AVC) e respiratórios. A pesquisa da Fiocruz mostrou também
um aumento de 7% nas internações em unidades básicas de saúde para cada 10PM
2,5, além da presença de asma acima da média dos municípios brasileiros, com
21% e 26% nas respectivas cidades.
Há pelo menos 30 anos,
a fumaça não é uma novidade na Amazônia. Respirar a fumaça das queimadas tem
sido como fumar de quatro a cinco cigarros por dia, até o dobro, dependendo do
lugar onde o amazônida está. Sem escolha, alguns são obrigados a “fumar” 24
horas por dia em algumas capitais onde a fumaça não cessa desde julho. O
cenário é de um “experimento natural” aplicado forçadamente às populações
locais, conforme alertam os pesquisadores.
O problema se mantém
presente, e ainda com a máquina pública incapaz de enfrentar essa questão. “Nem
todas as unidades de Saúde estão atentas, ainda que tenhamos uma situação
ambiental crítica no País”, afirma Sandra. O problema é que algumas áreas estão
em situação bem mais críticas do que outras. Segundo a pesquisadora, Mato
Grosso, Amazonas e Rondônia estão entre as mais críticas da atualidade.
<><> Leia
abaixo a entrevista
• Amazônia Real – Quantos brasileiros
estão internados por problemas relacionados às fumaças?
Sandra Hacon –
Infelizmente, a gente não tem isso na ponta da língua. Dados de quem foi
internado na semana passada, no mês passado, não estão no sistema.
Precisaríamos ser mais ágeis para que a gente possa dar essa resposta. E por
que não sabemos? Porque estes problemas que estão acontecendo, que chamamos de
hotspot, deveriam receber uma
notificação compulsória. Como é que a gente sabe que foram 5 milhões de pessoas
afetadas pela dengue na epidemia de abril a março? Porque é uma doença
notificada. Todos os casos de indivíduos que vão ao hospital com sintomas, uma
alergia muito forte, uma asma, bronquite, são notificados. Não é uma situação trivial. A gente já
trabalhou intensamente na Amazônia em situações de desmatamento e de fogo, e as
respostas não são muito diferentes.
• É possível que a sociedade saiba o
número de internações diárias por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG),
como ocorria com o boletim de Covid-19?
Sandra: Sim, é
possível. O Ministério da Saúde precisa dar essa ordem para as unidades de
saúde. Acredito que se houver uma solicitação em massa da mídia por essa
informação, o Ministério da Saúde irá fornecer.
• O SUS está preparado e tem capacidade de
lidar com o aumento de casos de doenças respiratórias durante os períodos de
queimadas, tanto na parte de atendimento quanto na coleta de dados?
Sandra: O Ministério
da Saúde não tem poder de mando sobre os municípios e Estados. Eles não podem
simplesmente exigir algo de Manaus, por exemplo. Vale lembrar a atuação do
governador Wilson Lima durante a pandemia de Covid-19, e ele foi reeleito.
• A senhora acredita que pode haver
omissão de dados por parte das Secretarias de Saúde?
Sandra: É possível, em
qualquer lugar do Brasil. Mas o impacto dos incêndios na saúde e na economia da
Amazônia é tão visível que não vejo interesse em omitir os dados. O problema é
que há poucos funcionários para analisar e publicar os dados. Precisamos de
mais agilidade para ter acesso à informação. Vale ressaltar que alguns artigos
internacionais têm usado inteligência artificial para estimar esses dados, já
que não estão disponíveis oficialmente. Mesmo que o Estado tente omitir os
dados, a inteligência artificial pode fornecer estimativas próximas da
realidade.
• Um estudo de 2009 em que é autora já
apontava para um aumento de internações por conta da fumaça e de asma em
crianças e adolescentes de 21% em Alta Floresta e 26% em Tangará da Serra (MT).
A senhora esteve recentemente na região. O cenário atual é parecido com o visto
há 15 anos?
Sandra: A fumaça já
afetava a população e aumentava a mortalidade nos municípios, com níveis acima
do recomendado pela OMS. Mas a intensidade não se compara com a de hoje.
Realizamos diversos estudos em diferentes municípios, e eu, pessoalmente, nunca
vivenciei uma situação tão crítica com a fumaça em Alta Floresta como a de
agora. Em 2019, o número de internações de crianças menores de 5 anos em Mato
Grosso dobrou. Infelizmente, não conseguimos analisar os dados em tempo real,
somente após o período, constatando a duplicação das internações. E a situação
atual? É preocupante, pois sabemos que nem todos os municípios conseguem uma
fidelidade nesses números, então a gente não tem isso da noite para o dia.
• Vocês também não conseguiram esses dados
de internação até agora?
Sandra – A gente não
tem isso ainda. Quem pode solicitar o aumento de internações semanalmente é o
Ministério da Saúde, não nós [Fiocruz]. Não temos essa capacidade ou função de
pedir para as Secretarias de Saúde para que mandem para nós. Eles não vão mandar.
Eu comecei a fazer isso no Mato Grosso em janeiro, pedindo se poderiam mandar
os boletins de internações dos anos anteriores. Ainda não conseguimos. As
pessoas nos hospitais e nas unidades de saúde estão superocupadas com a demanda
e os problemas aumentaram, enquanto o número de profissionais diminuiu.
• Como analisa a ascensão do negacionismo
na Amazônia e a relutância dos Estados em divulgar números?
Sandra – Olha, esses números de SRAG devem ter aumentado
porque a quantidade de área queimada hoje é bem superior ao que acontecia em
2009. Além disso, temos a questão da seca intensa, que aumenta a
inflamabilidade da floresta. Sabemos que há um fogo orquestrado no Brasil. Não
é possível que várias áreas queimem ao mesmo tempo sem uma coordenação. Hoje
temos temperaturas bem mais altas e a duração dessa exposição aumentou muito.
Isso, combinado com uma seca intensa que reduz a umidade do solo, torna o cenário
muito mais grave. A crise climática mudou o cenário meteorológico dos biomas.
Então tem uma seca intensa, umidade relativa do ar muito baixa, e a gente sente
isso, a gente fica com falta de ar falando, a garganta ardendo e por aí vai.
Essas questões hoje são bem diferentes.
• Há algum exemplo de doença surgindo por
conta da fumaça?
Sandra – Uma pediatra
de Alta Floresta me contou sobre vários casos de miocardite em crianças, e
muitos estavam indo a óbito no seio da mãe mamando. Acho que isso está ligado à
condição atmosférica. Naquela época, a fumaça era muito intensa no município e
na Amazônia como um todo. A miocardite é uma inflamação do músculo do coração,
mas investigar isso era impossível para ela por falta de equipamentos. Então,
possivelmente, tivemos casos de miocardite relacionados à fumaça. Aumentou a
miocardite na Amazônia hoje? Não sei, precisaria ser investigado.
• Além dos amazônidas respirarem a fumaça,
muitos estão ingerindo essa água e tomando banho que contêm materiais
particulados. É um ceário possível, não?
Sandra – É muito pior
do que isso, os indígenas não têm água para beber. Eles estão tentando beber
essa água com gosto terrível. É uma queixa incessante dos indígenas com quem
trabalho no Xingu. A fuligem se deposita nos rios, na vegetação. Quanto maior a
partícula, mais próxima da fonte ela se deposita; quanto menor, mais distante
ela vai e mais profundamente atinge o nosso organismo.
• Não existem estudos sobre a ingestão de
uma água da chuva contaminada por fuligem?
Sandra – Nessa água
vai ter material particulado, agrotóxicos, metais, hidrocarbonetos. A população
pode beber essa água? Não, não deveria. Com a seca intensa, os rios em áreas
indígenas estão secando. Como eles vão conseguir água? Água de carro pipa? Acho
que não. Mesmo pesquisadores renomados não haviam pensado na questão da água.
Eu mostrei para eles que o material particulado nos rios traz um gosto que os
indígenas não conseguem beber, além de causar coceira na pele e problemas
dermatológicos, já que usam a mesma água para tomar banho e beber.
• E a concentração dessas substâncias e
materiais fica muito maior com o rio seco, né?
Sandra – Sim, e não é
só o ser humano, os animais também sofrem, muitos já estão morrendo por falta
d’água. O problema da água é mais sério do que o do ar, porque a água acumulada
se torna contaminada. O lençol freático é alimentado pela água da chuva e, sem
chuva, a situação fica muito grave. O Ministério da Saúde reconhece esse
problema. Eles recebem mensagens dos indígenas dizendo que não têm água para
beber. E não são só os indígenas, são os quilombolas, os ribeirinhos, a
população do interior que dependia dessa água. O resto dos rios é uma água de
lama, contaminada biológica e quimicamente.
• Como as partículas de fuligem se
distribuem no organismo?
Sandra – As partículas
grandes ficam no nariz, onde temos pelinhos que filtram essas partículas. É por
isso que às vezes sai muita secreção do nariz. As partículas menores, com
diâmetro menor que 2,5 mícrons, conseguem alcançar os alvéolos pulmonares e a
corrente sanguínea. Na corrente sanguínea, as nanopartículas se distribuem de
forma sistêmica. Se a pessoa já tem um problema respiratório ou alergia, fica
mais propensa a sofrer com essas partículas. A respiração e a inalação fazem
com que essas partículas cheguem à corrente sanguínea. Crianças que passam mais
tempo ao ar livre respiram mais dessas micropartículas. É por isso que a
recomendação é não ficar ao ar livre e não fazer exercício, pois isso aumenta a
capacidade pulmonar e a inalação de micropartículas.
Fonte: Amazônia Real
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