Como a reforma agrária transformou um
latifúndio escravagista em agrofloresta produtiva no Pará
Trabalho análogo à
escravidão, ocultação de corpos em um cemitério clandestino e desmatamento
desenfreado são alguns dos crimes que marcam o passado sombrio da fazenda
Cabaceiras, localizada em Marabá, no sudoeste do Pará. No entanto, a história
do local tomou um novo rumo quando as terras foram desapropriadas para a
reforma agrária.
Os 9.774 hectares da
fazenda que antes eram palco de violações socioambientais hoje formam o
assentamento 26 de Março, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o
MST, que abriga três mil famílias e produz alimentos sem agrotóxicos,
principalmente por meio de um sistema de cultivo que preserva a vegetação: a
agrofloresta.
A mesma área que era
marcada pela improdutividade do latifúndio hoje produz açaí, cupuaçu, mel,
cacau, mandioca (e seus derivados), banana, e hortaliças, entre outros
cultivos. Mas o caminho até esse cenário foi longo. O solo que as famílias
encontraram logo depois da desapropriação, em 2008, era bastante degradado por
conta do desmatamento desenfreado para abrir áreas de pastagem. Dos mais de 9
mil hectares, 5 mil eram destinados para pasto. Diante desse cenário, muitas
famílias pioneiras do assentamento decidiram seguir criando gado.
No início, aliás,
muitos agricultores conseguiram acessar créditos do governo federal justamente
para a pecuária leiteira. Hoje, ainda há quem produza leite, mas em menor
número, já que ganhou força no assentamento o reflorestamento aliado à produção
diversificada, que também ajuda a recuperar o solo.
Esse é o foco da
agrofloresta, um sistema de cultivo em que agricultores cultivam vários
alimentos, árvores e, às vezes, até criam de animais em um mesmo espaço.
Diferentes espécies vegetais são cultivadas juntas, criando uma relação de
cooperação. Enquanto as árvores fornecem sombra e proteção contra a erosão,
plantas de ciclo curto como as hortaliças aproveitam o solo enriquecido pela
matéria orgânica das árvores.
Além disso, a presença
de diferentes espécies aumenta a resistência contra pragas e doenças e melhora
a qualidade do solo, aumentando a biodiversidade. Tudo isso ajuda a promover
uma agricultura mais sustentável e menos dependente de agrotóxicos.
Jonas Rodrigues Lopes
explica que o cacau e o açaí são o foco de suas terras, mas que também planta
banana, café, mandioca, tangerina, limão e laranja. Seu cacau nativo tem flores
de cheiro cítrico, gosta de contar o agricultor, que também cria galinhas e
porcos. “Mas o porco aqui é só pro nosso consumo mesmo, nós temos uns 11
porcos, é uma gordura e uma banha saudável”, diz, animado mesmo com a produção
de cacau.
Marca de agroflorestas
bem sucedidas, a diversidade na roça de Lopes também está presente no lote de
Manoel Messias Bernardo da Silva, que planta frutas como murici (ou muruci),
cupuaçu, acerola, goiaba, jaca, manga, bacaba e um açaí mais claro e de sabor
diferente do tradicional. Silva vende polpas, como a de cupuaçu, a R$ 10 o
quilo.
Ele explica que as
três frutas levam cerca de oito meses para a maturação. Já a família de
Teresinha Rodrigues Carneiro planta mandioca, amendoim, feijão e fava, e vem
conseguindo uma renda de R$ 2 mil a R$ 3 mil no mês somente com a farinha
produzida.
A fartura da produção
do 26 de Março também passa pela apicultura. Uma parceria com a prefeitura de
Marabá apoia cerca de 100 famílias assentadas que trabalham na produção de mel.
“Ajudamos no manejo das abelhas com a doação de itens como caixas, fumigador,
macacão, e também damos assistência técnica e orientação para os produtores”,
explica o técnico Mateus Silva.
·
De latifúndio escravagista à agrofloresta
produtiva
A transformação de um
latifúndio escravagista em um exemplo de produção agroecológica, que ainda
ajuda a recuperar o bioma amazônico, não é o único motivo que faz do
Assentamento 26 de Março um símbolo da reforma agrária e da justiça
social.
A importância
histórica do 26 de Março também se dá pelo fato de que ele foi fruto da
primeira desapropriação do país justificada pelo registro de trabalho escravo.
Ou seja, foi o primeiro assentamento criado sob a influência da Proposta de
Emenda à Constituição 438/2001, que prevê o confisco
de terras de empresas e fazendeiros escravagistas.
O local era ocupado
pela fazenda Cabaceiras, de propriedade da família Mutran, que foi autuada por
empregar trabalhadores em situação análoga à escravidão.
A autuação, que também
abarcou violações ambientais, levou o Incra, em 2008, a desapropriar as terras
para fins de reforma agrária. Mas a fazenda foi palco de outros crimes além
desses. No local, foi descoberto um cemitério clandestino com dez covas, onde
estavam corpos que até hoje não foram identificados.
“Os restos mortais
eram provavelmente de trabalhadores assassinados. Algumas das ossadas estavam
cheias de cordas, como se a pessoa tivesse sido amarrada antes de morrer”,
conta Giselda Coelho Pereira, diretora nacional do setor de produção do MST. Os
crimes, no entanto, nunca foram devidamente investigados.
“Era uma lógica muito
comum, de botar a pessoa para trabalhar e depois, quando ela fazia alguma
cobrança, eles mandavam embora e eliminavam no caminho”, explica a irmã de
Jonas Lopes, Izabel Rodrigues, pedagoga e agricultora, que atua no MST há 35
anos.
O cemitério fica em
meio à mata, no local da antiga fazenda Cabaceiras que a professora Maria Suely
Gomes chama de “ruínas oligárquicas”. A alguns metros dali, a diretora do
Instituto Federal do Pará, o IFPA, mostra a placa que havia colocado há alguns
meses indicando que era proibido caçar. Uma placa cravejada por três balas de
calibre 38.
Os tiros são um
lembrete de como a violência, a morte e a pistolagem são uma sombra quase
invisível na região. O passado violento ainda se mantém presente no Pará, um
dos estados recordistas de violação de direitos humanos, especialmente no
campo.
É o estado com mais
conflitos no campo do país, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, a CPT. Foram 183 conflitos no estado, afetando mais de 38 mil
famílias. O Pará também é o estado com mais ocorrências de trabalho escravo no
mesmo ano, com 21 casos e 247 trabalhadores resgatados.
Em seus 61 anos de
vida, o assentado Gessi Gomes Estriano relembra das dificuldades em se viver na
região – das antigas como o massacre de Eldorado de Carajás até as mais
recentes. “No mandato do Jair [Bolsonaro] eu não estava dando conta de
comprar nada, nem ferramenta. Aí nós parou porque não tinha como. Íamos no
Incra e não éramos recebidos. Quatro anos de derrota”, diz o agricultor. Ele
conta que se nega a derrubar as árvores de seu lote para deixar “para as
futuras gerações”.
É também nas próximas
gerações que o MST foca ao investir em agroflorestas – ou sistemas
agroflorestais – como parte fundamental da visão nacional do movimento. A
organização pretende plantar 100 milhões de árvores nos próximos 10 anos, como
estratégia para produzir alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, e lidar com a
crise climática e a insegurança alimentar. O projeto inclui o plantio de
árvores frutíferas, madeireiras e ornamentais, assim como a manutenção de
sementes das espécies florestais.
·
‘Uma afronta ao agronegócio’
Outra aposta para
ajudar as próximas gerações a combater tanto os problemas decorrentes ou
agravados pela emergência climática como a violência no campo é o investimento
em educação. O Campus Rural de Marabá do IFPA fica em um terreno doado pelo MST
e oferece o curso de nível técnico, superior e de pós-graduação em áreas como
Agropecuária, Agricultura Familiar, Recuperação de Áreas Degradadas, entre
outros. A maioria dos estudantes é formada por camponeses, indígenas,
quilombolas, ribeirinhos e extrativistas.
O campus rende frutos
que reverberam, segundo os assentados, em toda a comunidade. A reportagem pode
ver o orgulho das famílias e dos jovens que estudam e, ao mesmo tempo, vivem em
seu cotidiano questões ligadas à terra.
É o caso da Kailane
da Conceição Silva, aluna do curso de Agroecologia. “Lá no IFPA a gente
estuda SAFs (sistemas agroflorestais) e aqui no assentamento a gente também tá
estudando muito sobre o que é produzido e a importância da agricultura de modo
sustentável no Pará”, conta.
Maria Suely, diretora
do Campus Rural do IFPA, ressalta a importância do projeto
político-pedagógico do campus, que consiste em trabalhar a formação dos jovens
e adultos na perspectiva da agricultura familiar com os princípios da
agroecologia, em uma região caracterizada pela expansão da pecuária, da
mineração e das hidrelétricas.
“O campus em si já é
uma afronta e já se contrapõe à batalha do agronegócio na região. Ele já é uma
contraposição porque, primeiro, combate o desmatamento, a expansão da pecuária,
o trabalho escravo e a exploração descontrolada da terra.”
¨
Governo precisa tratar
agroecologia como saída para crise climática
“Se 50 anos
atrás alguém dissesse que botos iriam morrer de calor, ninguém
acreditaria”, falou Ailton Krenak, o primeiro indígena imortal na Academia
Brasileira de Letras, no encerramento do 12º Congresso Brasileiro de
Agroecologia, em 23 de novembro. Mas estamos vendo não só o rio Solimões seco,
cheio de barcos atolados e motocicletas por seu leito, em plena Amazônia,
esperança da salvação do planeta.
No Sul, as inundações matam e botam a perder toda a lavoura, enquanto São Paulo fica no escuro por cinco dias. Dias antes do início da COP 28, a maior conferência mundial do clima, a resposta de Krenak para a emergência climática foi
categórica: “A agroecologia tinha que acontecer agora, numa escala planetária”.
Mas o que isso quer dizer, exatamente?
Desigualdades sociais,
devastação ambiental, crise climática, má alimentação e fome são fenômenos
socioecológicos associados à forma como os alimentos são produzidos,
transformados, distribuídos e consumidos. Não podem ser tratados como problemas
isolados a serem ponderados por políticas setoriais.
A agroecologia é um
enfoque científico que busca reconciliar os sistemas alimentares com os
ecossistemas e com as culturas dos povos. Sua prática combate as mudanças
climáticas e a fome, conserva a biodiversidade e contribui para a promoção da
saúde pública. Tudo isso com comida de verdade, produzida pela agricultura
familiar, no campo e nas cidades.
A agroecologia não se
reduz a questões de manejo agrícola, como a implantação de sistemas
agroflorestais ou a produção sem veneno. Ela está orientada a reestruturar os
sistemas alimentares, desde a produção até o consumo.
É importante
entendermos que a questão social não se resolve separadamente da questão
ecológica, e vice-versa. Se nossos problemas sociais forem enfrentados só com
respostas sociais, a tendência é que aprofundem as questões ecológicas,
poluindo mais. E políticas ambientais podem ser francamente antissociais.
Um exemplo é a transição energética via parques eólicos na região de atuação do Polo da Borborema, na Paraíba.
Neste território em que a agroecologia vem sendo promovida há décadas, os
parques eólicos são impostos de cima para baixo, levando violência, poluição
sonora e, principalmente, inviabilizando uma transição socioecológica em curso,
apoiada inclusive com recursos de políticas públicas.
O discurso que
sustenta esse tipo de projeto defende que as soluções para os problemas da
humanidade virão das tecnologias voltadas à descarbonização da economia. No
entanto, as tecnologias propostas só são acessíveis pela via dos mercados e são
controladas por grandes empresas. O que precisamos neste momento é do
desenvolvimento de outras economias, que sejam reconectadas às dinâmicas da
natureza e da sociedade e que dependam menos dos mercados globalizados.
A agroecologia defendida por Ailton Krenak representa esse tipo de economia.
Uma que equilibra os dois lados da balança, enfrentando a insegurança alimentar e
nutricional com soberania. Ao produzir em bases agroecológicas e escoar a
produção em circuitos curtos de distribuição, baixa-se a emissão de gases de
efeito estufa, promovendo uma agricultura resiliente às mudanças climáticas,
conservando a biodiversidade, os mananciais hídricos e os solos.
Alimentos saudáveis e
adequados são produzidos em quantidade para abastecer toda a população. Postos
de trabalho são gerados. De ciclos viciosos degenerativos, parte-se para ciclos
virtuosos regenerativos. Esse é o sentido da transição ecológica justa.
Se queremos de fato
encontrar soluções para as crises que enfrentamos, precisamos tratar os
problemas como socioecológicos. Por isso, a agroecologia é emergencial. No
entanto, para que ela avance, precisamos de políticas e legislações
adequadas.
Enquanto a maior parte
dos orçamentos e o apoio ideológico forem orientados para o agronegócio, a
agroecologia ficará confinada a experiências bem sucedidas emblemáticas, mas
incapazes de dar respostas amplas à crise socioecológica.
É preciso, por
exemplo, que o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, o Pronara, seja
instituído. Algo no sentido diametralmente oposto ao Pacote do Veneno que acaba de ser aprovado pelo Senado. É necessário também impor limites ao consumo
de alimentação ultraprocessada e
à concentração de terra no Brasil.
Políticas favoráveis à
agroecologia não podem ser pensadas setorialmente. Isso significa a necessidade
de envolvimento ativo de toda a Esplanada dos Ministérios. O Ministério da
Economia, por exemplo, deve apoiar a transição agroecológica com políticas fiscais,
hoje totalmente favoráveis às monoculturas e ao uso de agrotóxicos.
É preciso inverter
essa lógica. O agronegócio não paga imposto para exportar e conta com pesados
subsídios públicos. Sua propalada eficiência econômica é falsa.
No 12º Congresso
Brasileiro de Agroecologia – organizado pela Associação Brasileira de
Agroecologia, em parceria de inúmeras redes por todo o país – foram lançadas
políticas importantes, como a retomada do programa Ecoforte e a instalação da
Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.
Sem dúvida, são
conquistas a serem celebradas. Mas não podemos perder de vista que são muito
restritas diante da emergência climática e do aprofundamento da crise
socioambiental.
Fonte: Por João Paulo
Guimarães, em The Intercept
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