Como as hidrelétricas estão acabando com os
peixes no Rio Madeira
Ao amanhecer, vinte
pescadores receberam a informação de que peixes matrinxãs estavam descendo o
rio Aripuanã em direção ao Madeira, o maior afluente da Bacia Amazônica. Era a
oportunidade de interromper uma semana de pesca improdutiva em Novo Aripuanã, município
do sul do Amazonas, para se dividirem em três canoas de madeira e irem para o
rio. Deveria ser simples: só esperar o cardume, que nada na superfície, e
lançar a rede.
Às 11 horas da manhã,
sem sinal dos matrinxãs (Brycon melanopterus), metade dos pescadores desistiu
e, na canoa maior, retornaram à cidade. Um pescador observava tudo desde as
margens daquele encontro de águas brancas e pretas no Médio Madeira, ao mesmo tempo
em que, logo à sua frente, vários botos cor-de-rosa (Inia geoffrensis) e
tucuxis (Sotalia fluviatilis) surgiam para respirar enquanto caçavam peixes.
“Talvez o cardume nem chegue aqui, porque o rio está muito seco”, diz Raimundo
Dias.
No final de abril, a
bacia do Madeira estava em transição da estação chuvosa para a vazante. Com o
nível da água ainda alto, os peixes se agrupam em cardumes e migram dos lagos,
afluentes e igarapés para se alimentar de frutos, sementes e invertebrados terrestres
que caem nos igapós e nas várzeas do Madeira.
No entanto, há uma
década, mudanças abruptas e frequentes nos níveis dos rios têm desorientado os
padrões migratórios. Cientistas e pescadores atribuem esses picos irregulares
às usinas hidrelétricas do Madeira, duas grandes unidades instaladas no estado
vizinho de Rondônia. “Neste mês, a cheia e a seca já aconteceram umas quatro
vezes. O nível estava alto ontem. Está muito difícil para os peixes”, diz Dias.
Nascido e criado em
Novo Aripuanã, Dias tem 50 anos e sempre viveu da pesca, mas diz ele que manter
a atividade tem sido cada vez mais difícil devido à redução das capturas no
Madeira, o rio mais diversificado da Amazônia, com 1.406 espécies de peixes catalogadas.
“Havia muita fartura, não tinha como não pegar peixe aqui. De 10 anos para cá,
a pesca diminuiu. Essa hidrelétrica acabou com a gente”, diz o pescador.
A usina de Santo
Antônio, em Porto Velho, entrou em operação em março de 2012 e tem a quinta
maior capacidade energética do Brasil, e a de Jirau, instalada 115 quilômetros
rio acima, opera desde setembro de 2013; é a quarta maior do país.
De acordo com Dias, as
espécies mais afetadas pelas hidrelétricas são as mais consumidas localmente:
pacu (Mylossoma), aracu (Leporinus fasciatus), sardinha (Triportheus auritus,
T. angulatus), matrinxã (Brycon) e jaraqui (Semaprochilodus insignis, S. taeniurus).
Espécies de peixes de alto valor comercializadas para as grandes cidades, como
os bagres migratórios dourada (Brachyplatystoma rousseauxii) e piramutaba (B.
vaillantii), também desapareceram.
Essa escassez tem
impacto não só no comércio, mas também na alimentação dos moradores de Novo
Aripuanã. O peixe, principal fonte de proteína da população ribeirinha da
Amazônia, encareceu nos mercados e restaurantes. “A gente vendia um punhado de
matrinxãs por cinco reais. Agora, custa até 40 reais”, diz Dias.
• Um rio imprevisível
Em Humaitá, município
na divisa com Rondônia, a produtividade pesqueira é fortemente influenciada
pela sazonalidade. Quando o rio seca, muitas espécies vêm do Baixo Amazonas,
entram no Madeira pela foz e nadam rio acima até o rio de águas brancas, onde se
reproduzem.
No entanto, o pescador
José Pessoa, de 58 anos, diz que essa migração foi prejudicada porque o rio
perdeu a correnteza após as barragens. “O peixe precisa de corredeiras para
fazer a piracema”, explica, referindo-se ao período de reprodução. “Se não encontra
no Madeira, ele pega o Amazonas, nada até o Solimões e vai embora. Aqui, a
gente acaba não tendo nada.”
“Hoje em dia, o peixe
que a gente pega por aqui é quando o nível da água fica um pouco mais alto,
então o peixe sai dos lagos, viaja para outro e sobe [o Madeira]”, diz Pessoa,
que pesca desde os 13 anos. “Este ano, com pouca cheia, não vai ter tanto, porque
não tem água para eles viajarem.”
A pesca artesanal é
também afetada pela crise climática, que intensifica os fenômenos
meteorológicos. Em outubro de 2023, o Madeira sofreu a pior seca da história,
quando atingiu 1,10 metro de profundidade, influenciado pelo El Niño e pelo
aquecimento do Oceano Atlântico Norte. O Madeira baixou quase três metros em 15
dias, em junho de 2024, e Rondônia decretou estado de alerta para a seca.
Na comunidade de
Paraisinho, localizada 10 km ao norte de Humaitá, a pesca se tornou “quase
inexistente”, segundo João Mendonça, presidente da associação de agricultores
locais, que também representa os pescadores. A comunidade se sustenta graças à
agricultura de várzea, cuja produção é adquirida por programas governamentais
de alimentação.
“O período que deveria
estar secando está inundando”, diz Mendonça. “Quando deveria estar inundando,
está secando. O peixe fica fora de controle. Eles não fazem a piracema na época
certa. (…) Hoje, as pessoas vêm comprar frango [na cidade] porque está difícil
pegar o peixe na comunidade, tanto no lago quanto nas margens do rio.”
As barragens adotam o
modelo a fio d’água, que retém menos água em seu reservatório, mas ainda assim
afeta a hidrologia do Madeira. Depois de analisar os dados de descarga de três
estações hidrológicas, os cientistas descobriram que “as operações da barragem
aumentaram significativamente a variabilidade do fluxo diário e subdiário”.
Os cientistas mediram
isso monitorando mudanças repentinas no fluxo do rio — ou eventos de
“reversão”, as mudanças repentinas de um período de aumento para um período de
queda dos níveis, ou vice-versa, em dois dias consecutivos. Esse evento quase
dobrou (94%) na estação de Porto Velho, 5 km a jusante da barragem de Santo
Antônio. Em Humaitá, a 255 km dessa usina, o aumento foi atenuado (13%), mas
ainda significativo, segundo os pesquisadores, que atribuem os números às
oscilações na demanda de energia.
“Os eventos diários de
hidropisia [retenção de água] são muito frequentes devido à usina hidrelétrica,
porque ela controla a quantidade de água que retém e que libera”, diz a bióloga
Carolina Doria. Ela é coautora e coordenadora do Laboratório de Ictiologia e
Pesca, da Universidade Federal de Rondônia. “Essa variação abrupta no mesmo dia
tem um impacto muito grande sobre os peixes”.
O peixe sabe que
precisa sair das planícies de inundação, florestas e lagos alagados e nadar até
o rio principal quando o nível da água começa a subir diária e gradualmente,
diz Doria. “Se essa cheia e seca acontecer, o peixe nem sai do afluente. Ele se
perde. Fisiologicamente, há um descontrole.”
• Barreiras para a obtenção de peixes
saudáveis
Os moradores de
Humaitá estavam acostumados com períodos bem definidos para a pesca. “Os peixes
que a gente mais esperava na cheia eram o jaraqui e a matrinxã. Na seca, era o
pintado, o pacu e o curimatã”, diz Mendonça. “A gente pegava em grande quantidade.
Hoje, não dá para contar com isso”.
A dinâmica dos peixes
está intimamente ligada à disponibilidade de água na bacia, segundo Marcelo dos
Anjos, coordenador do Laboratório de Ictiologia e Ordenamento Pesqueiro do Vale
do Rio Madeira, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
“Estas espécies não
deixaram de ocorrer ali devido a uma preferência ambiental, mas porque deixaram
de ter acesso”, diz Anjos. “A fragmentação dos habitats tem levado ao declínio
das populações de peixes”. Segundo ele, essa perda de conectividade está ligada
a um conjunto de fatores: hidrelétricas, desmatamento, assoreamento dos rios,
mineração de ouro, assentamentos e expansão do agronegócio.
Samuel de Moraes,
presidente da associação de pescadores de Humaitá, observou que os ribeirinhos
do Madeira não podem mais se planejar de acordo com a dinâmica natural do
ambiente. “Se o rio estiver secando na lua nova, podemos ter uma boa produção,
porque os peixes saem dos lagos para se reproduzir”, diz Moraes. “Agora temos a
lua nova. Era para estar secando, mas está enchendo”. Ele também notou mudanças
no comportamento dos peixes que vivem nos afluentes e lagos da bacia do
Madeira.
Além das mudanças na
vazão do rio, os peixes também sofrem com a má qualidade da água, que vem
caindo no Madeira, de acordo com Adriano Nobre, biólogo da Universidade do
Estado do Amazonas (UEA). “As alterações antrópicas [feitas pelo homem] afetam
diretamente a qualidade da água”, diz Nobre. “As mudanças no regime hidrológico
feitas por hidrelétricas, a presença de mineração, o desmatamento, entre outros
fatores, têm influência sobre a manutenção da vida aquática.
Em abril,
pesquisadores da UEA começaram a desenvolver o primeiro Índice de Qualidade da
Água (IQA) para um rio de águas brancas na Amazônia, para entender a saúde do
Madeira. Em março, o grupo lançou o primeiro IQA para a Bacia Amazônica,
desenvolvido para rios de águas pretas.
Os investigadores da
UEA navegaram quase 800 km no Rio Madeira para avaliar o seu WQI; os resultados
ainda não foram divulgados.
• A pesca em crise
No mercado local de
Humaitá, Osvaldo de Araújo limpava branquinhas em sua banca enquanto relembrava
a época em que pescava no Lago de Três Casas, 45 km rio abaixo. “Era tanto
peixe que não dava para aguentar”, diz Araújo, um peixeiro de 63 anos. “A gente
pegava qualquer espécie que quisesse.”
Araújo costumava pegar
até meia tonelada de peixe em cinco dias em sua canoa, mas diz que hoje um
pescador pode levar pelo menos 10 dias para pegar 100 quilos. “Nesse mercado,
se não fosse o peixe de viveiro, essas bancas estariam vazias”, diz ele.
Houve uma redução de
39%, de 267 para 163 toneladas, na média anual do desembarque de peixes em
Humaitá, segundo estudo da Ufam, comparando os períodos antes (2002-10) e
depois (2012-16) das barragens. As espécies mais impactadas foram branquinha
(Curimata inornata), pirapitinga (Piaractus brachypomus), tucunaré (Cichia),
curimatã (Prochilodus lineatus), jaraqui e pacu. “Essas espécies são muito
utilizadas na culinária local, principalmente entre os ribeirinhos, e também
representam grande parte do esforço de pesca dessa população para o comércio
regional”, diz o biólogo Rogério Fonseca, coautor do artigo e coordenador do
Laboratório de Interações Fauna e Floresta da Ufam.
No período analisado,
os anos mais produtivos ocorreram antes da entrada em operação das
hidrelétricas: 2002 (294 toneladas), 2006 (350) e 2011 (407). Já os piores
desembarques de peixes aconteceram após as barragens: 2014 (158), 2015 (94) e
2017 (101). “Hoje, não estamos mais chegando a 100 toneladas”, diz Moraes.
A associação de
Humaitá tem cerca de 3.700 pescadores. O impacto das barragens “representa uma
perda de aproximadamente 1,8 milhão de reais por ano para a atividade pesqueira
em Humaitá”, segundo os pesquisadores.
Outro estudo recente
concluiu que cinco pontos de pesca tradicionais se tornaram improdutivos. Há
também locais com forte declínio nas capturas. No Córrego Beem, antes o mais
produtivo, a captura caiu 99%, de 164 toneladas para 1,3. No Lago Três Casas, a
redução foi de um terço, de 4,2 para 2,8 toneladas. Os pescadores precisaram
buscar lugares mais distantes e passaram a pescar em 25 novos locais, segundo
os pesquisadores. Em cada viagem de pesca, os ribeirinhos adquirem combustível,
gelo, contratam funcionários e compram alimentos para o tempo no rio. “Não vale
a pena ir para longe”, diz Araújo. “Hoje, a despesa de uma canoa para ir a um
lago é de 500, 600 reais. Se não trouxer peixe suficiente para cobrir os
custos, não dá para ir de novo.”
Em 2013, mais de 1.500
pescadores de Humaitá entraram na Justiça contra as empresas proprietárias das
usinas, com base em estudos que atribuíam às barragens impactos sobre a pesca e
o pescado. As ações pediam danos morais e patrimoniais.
No entanto, o juiz de
Humaitá considerou que os transtornos aos pescadores começaram durante a
construção das usinas, em 2007, e decidiu que as ações estavam prescritas
porque o prazo já havia passado. Os pescadores recorreram da sentença, e os
processos estão agora no Tribunal de Justiça do Amazonas.
• Uma tradição em risco
Numa tarde de
sexta-feira, muitas caixas cheias de jaraquis chegam ao mercado local de
Manicoré, um município 355 km a jusante de Humaitá. “Este ano, esperávamos uma
produção melhor, mas só agora esse peixe está chegando”, diz Ancelmo de
Menezes, um pescador de 59 anos. Antes das barragens, ele conta que costumava
capturar peixes em maior quantidade e diversidade. “Era matrinxã, era tudo.
Agora, como vocês podem ver, só tem esse peixe aqui.”
“As espécies de peixes
mais abundantes ficaram muito escassas”, diz Antônio Veiga, presidente da
associação de pescadores de Manicoré. Para ele, o declínio só não foi maior
porque Manicoré é cercada por cinco grandes afluentes do Rio Madeira, onde os
lagos têm boa produtividade.
Segundo Veiga, que
está à frente da associação há 25 anos, não houve nenhuma audiência ou consulta
pública sobre as usinas hidrelétricas na região. “Não tínhamos conhecimento de
nada de bom ou ruim que ela poderia trazer para o nosso município. Elas foram
instaladas em Rondônia, mas o impacto veio para o Amazonas”, diz.
“Ninguém tem o
controle da situação. O pescador já não sabe quando é que a água vem, quando é
que vai, como é que as margens vão ficar”, diz.
Em Manicoré, os
transtornos no rio e nos peixes fizeram com que muitos pescadores desistissem e
passassem a exercer outras atividades. Alguns começaram a garimpar ouro no
curso principal do Madeira, o que também causa muitos danos ao rio, acrescentou
Veiga, mas essa atividade ilegal está diminuindo após batidas da Polícia
Federal. Em setembro de 2023, os agentes destruíram 302 balsas e dragas de
garimpo espalhadas entre Manicoré e Autazes. Em maio de 2023, 86 embarcações
foram desativadas na região de Humaitá.
“Gerações de
pescadores estão sendo obrigadas a mudar de profissão. A mineração e o
desmatamento estão à sua porta. As atividades ilegais estão sendo empurradas
para estas pessoas, que se veem sem oportunidades”, afirmou Fonseca.
• Um futuro crítico
No final de junho, os
pescadores de Novo Aripuanã ainda estavam surpresos com a ausência de cardumes
de matrinxã. “Até agora, eles não desceram”, diz Allan de Barros, presidente da
associação de pescadores da cidade. Esse é um exemplo da incerteza da atividade
pesqueira causada pelo desequilíbrio do Madeira.
“Consumíamos de 100 a
150 toneladas de peixe por ano no município e exportávamos mais de 500
toneladas para Porto Velho e Manaus”, diz Barros. “Hoje, não pegamos nem o
suficiente para atender a demanda da cidade. É um fenômeno fora do normal”.
Em Novo Aripuanã, a
piramutaba subia o Madeira até três vezes por ano, mas, desde a instalação das
barragens, “nunca mais vimos um cardume em nosso rio”, diz Barros. Ele também
observa que as espécies de bagres diminuíram de tamanho: o filhote (Brachyplatystoma
filamentosum) chegava a 80 kg e a dourada, a 40 kg, mas hoje não passam,
respectivamente, de 10 kg e 6 kg.
Em meio a esse
contexto, o número de pescadores ativos na associação caiu quase pela metade.
“Os peixes estão longe e a despesa é enorme”, diz Barros. “A cidade não tem
fábrica de gelo ou subsídios para diesel e gasolina. Não temos uma câmara fria
para armazenar o peixe, assim poderíamos vendê-lo mais barato na baixa
temporada. Como o pescador irá tão longe para pegar esse peixe e vendê-lo por
um preço justo?”
Os pescadores de Novo
Aripuanã ainda não entraram na Justiça para serem reconhecidos como atingidos
pelas barragens. Mas Barros diz que a melhor compensação seria um repasse
contínuo de recursos, por exemplo, via royalties ou fundo de apoio, para que o
município pudesse investir na piscicultura artesanal, a fim de atender às
demandas dos cidadãos e ter recursos emergenciais para mitigar eventos
extremos.
No encontro dos rios
Madeira e Aripuanã, Raimundo Dias diz à Mongabay que a seca histórica de 2023
também contribuiu para o ano de pesca improdutiva na bacia do Madeira. Como
resultado, os preços de outros tipos de alimentos também subiram. Com o rio secando
rapidamente outra vez, Dias espera outra época difícil. “Se continuar secando
assim até agosto ou setembro, teremos uma crise muito grande aqui”.
Fonte: Mongabay
Nenhum comentário:
Postar um comentário