sábado, 12 de outubro de 2024

Brasil elegeu 26 trans. Muitas por partidos que as odeiam

No último domingo, dia 6, o campo progressista viveu novos momentos de alegria e aflição, como costuma acontecer nas eleições. Se, por um lado, vibramos com a ida de Guilherme Boulos para o segundo turno em São Paulo, ou com a conquista de Natália Bonavides rumo ao segundo turno em Natal, também é verdade que nos chocamos, mais uma vez, com a força da extrema direita.

Na maioria das capitais, os cenários das câmaras de vereadores são tristes, com a ascensão ou consolidação de reacionários e fundamentalistas religiosos.

Porém, um recorte interessante – e que muitas vezes passa despercebido por muita gente – é a presença das pessoas trans na política. Neste ano de 2024, o Brasil teve 26 pessoas trans eleitas, sendo 25 mulheres trans/travestis e 1 homem trans.

Sem dúvidas, sendo o Brasil um país com um longo e profundo histórico de violências transfóbicas, esse número é um bom sinal, apesar de uma leve diminuição em relação a 2020, quando 30 candidaturas trans foram eleitas. Nós, pessoas trans, estamos deixando de viver à margem da história e estamos ocupando espaços que antes eram inimagináveis.

Já é um fato conhecido que este é o país que mais mata pessoas trans no mundo, dentre os países que possuem algum tipo de levantamento minimamente confiável sobre a comunidade LGBTI+.

Segundo dados do Trans Murder Monitoring, o TMM, que analisa informações sobre homicídios de pessoas trans em diversos lugares do mundo, foram assassinadas 321 pessoas transgênero no Brasil, entre outubro de 2022 e setembro de 2023.

Nesse cenário, onde vidas trans são atravessadas pela violência e pela falta de esperanças e perspectivas no futuro, é muito significativo ver reafirmada a presença de transgêneros na política.

Se tantas vezes tentaram nos arrancar a humanidade, então iremos usar todas as ferramentas possíveis para humanizar aquelas e aqueles que se parecem conosco. Se diariamente nos tiram a dignidade e nos empurram para a vergonha, só nos resta defender uma sociedade onde direitos e orgulho sejam inegociáveis.

E que estejam ao alcance de todas as pessoas, pois estamos justamente falando de direitos e não de privilégios.

•        A comunidade trans é diversa e contraditória como todas as outras

Porém, a comunidade trans é diversa e complexa, como qualquer outra. Aliás, nem sempre o termo “comunidade” faz sentido. Dentre as 967 candidaturas trans registradas esse ano no TSE, diversas estão inseridas em coligações de direita e até de extrema direita, com PP, PL, União Brasil, Republicanos, PSD, MDB e etc.

É algo estranhíssimo quando constatamos o óbvio: a maioria desses partidos defende, direta ou indiretamente, o cerceamento dos direitos das pessoas trans.

Lucas Pavanato, do PL, se tornou o vereador eleito mais votado de São Paulo, com 161.328 votos. Durante a campanha ele se auto intitulava o “candidato anti-woke”, emulando o reacionarismo transfóbico estadunidense. Dentre as “propostas” dele, está a proibição do uso de banheiros públicos por pessoas transgênero. A eterna fixação da extrema direita com o nosso cocô e o nosso xixi.

Portanto, causa muito estranhamento imaginar que em outros cantos do Brasil alguma pessoa trans estava concorrendo à vereança pelo PL ou por algum partido coligado ao PL. E aí, mais uma vez é importante afirmar: representatividade, por si só, não basta.

•        Mais que eleger trans, legislar em defesa de trans

Eu quero ver mais pessoas trans na política ou em qualquer outro espaço que não seja de marginalização e extrema precarização, como nos dias de hoje ainda é regra.

Mas eu também desejo que os parlamentos e todos os outros espaços de poder institucional sejam ocupados por pessoas que tenham profunda consciência de classe e que não confundam seu sucesso pessoal com uma suposta conquista automática para todas as pessoas trans.

Nenhuma travesti em situação de rua irá deixar de passar fome simplesmente porque outra travesti foi eleita. O que essa legisladora irá fazer (quais leis irá propor, quais outras irá votar a favor ou contra, quais alianças políticas ela irá fortalecer, quais denúncias irá fazer, quais articulações irá construir com seu mandato etc) é o que ajudará a criar mecanismos para que possa existir uma realidade onde pessoas não fiquem sem teto e não sejam submetidas ao martírio da fome.

A política institucional precisa ser ocupada por gente comprometida com justiça social. E numa realidade onde o patriarcado e a transfobia andam de mãos dadas, é muito importante que parte dessa gente seja trans. Talvez fosse revolucionário se as travestis pudessem levar para as câmaras de vereadores e assembleias legislativas a solidariedade e as táticas de guerrilha que aprendem nas ruas.

Poderemos acompanhar, nos próximos 4 anos, na Câmara Municipal de São Paulo, as trajetórias de Amanda Paschoal, eleita pelo PSOL, e de Thammy Miranda, reeleito pelo PSD.

Tenho absoluta certeza de que será tudo muito ilustrativo, sobre a necessidade de termos gente aguerrida e comprometida com a melhoria da cidade e da qualidade de vida da população; e a importância de não elegermos identidades vazias, que buscam apenas o poder pelo poder.

Como disse, pessoas trans são diversas. São complexas. Falar sobre isso de forma aberta é muito importante, pois nos humaniza. E, num cenário onde a extrema direita mundial tem nos usado como bode expiatório, colocando um alvo nas nossas costas em nome de uma suposta “defesa das crianças” ou “salvação da família”, é fundamental que a nossa humanidade esteja explícita, que a nossa alma seja percebida, que a nossa intelectualidade seja reconhecida.

Dentro da política institucional ou fora dela, pessoas trans precisam estar visíveis, pois visibilidade muitas vezes é sinônimo de sobrevivência.

 

•        Amanda Paschoal: "Estamos construindo futuro e resistência com a qualidade entregue por nós LGBT"

Quando as urnas da cidade de São Paulo foram apuradas no último domingo (6), elas revelaram que Guilherme Boulos (PSOL) e o prefeito Ricardo Nunes (MDB) iriam ao segundo turno, mas também revelaram a nova composição da Câmara dos Vereadores da capital paulista.

Entre os nomes eleitos, está Amanda Paschoal (PSOL), a quinta vereadora mais votada da cidade de São Paulo, com 108.654 mil votos. Amanda não chega sozinha; ela vem apadrinhada por Erika Hilton (PSOL), hoje um dos principais nomes e liderança da esquerda brasileira.

Na entrevista que você confere a seguir, Amanda Paschoal fala sobre a votação expressiva que teve e de sua relação de amizade e trabalho com a deputada federal Erika Hilton. Além disso, Paschoal também revela à Fórum sua trajetória de vida e como se encontra com o fazer político.

Sobre sua chegada à Câmara Municipal da cidade de São Paulo, Amanda Paschoal analisa que ela está dentro de um contexto de construção de futuro e de uma outra sociedade possível, onde a mentalidade LGBTfóbica seja superada e uma outra, que não desumaniza corpos trans e travestis, prevaleça.

“Que nós possamos formar lideranças para construir mesmo a resistência e o futuro com proposta, com compromisso, com qualidade mesmo do trabalho que é entregado por nós LGBTs justamente pra construir, pra construir, não, né, pra desconstruir o imagético que nos rodeia até hoje. Uma sociedade que é pautada na LGBTfobia, no racismo e na misoginia”, dispara Amanda Paschoal.

•        Como foi ser eleita e com 108 mil votos? Como você recebeu isso?

Amanda Paschoal - Estou muito feliz. E foi assim que eu fiquei, assim que eu descobri o resultado. Eu já imaginava que iria me eleger: pelo apoio da Erika [Hilton], pelo resultado, pela devolutiva das pessoas mesmo.

Foi uma campanha de rua, todos os dias. A campanha foi muito bem recebida, foi muito bem organizada. A equipe que eu coloquei na campanha... A gente construiu uma campanha de mobilização, de comunicação crítica. Conseguimos entregar um trabalho bem excelente. Mas ainda assim eu achei que 108 mil votos foi um número bem alto. Eu fiquei muito feliz, muito satisfeita.

Agora é dar continuidade mesmo ao legado da Erika na Câmara a partir do ano que vem e construir mesmo esse trabalho, esse mandato com responsabilidade para garantir que essas pessoas, que depositaram um voto em mim, saiam satisfeitas com o trabalho que eu puder entregar em nome da cidade.

•        Eu gostaria que você contasse um pouco da sua trajetória para nós.

Amanda Paschoal - Eu nasci no Jardim São Bernardo, próximo ao Grajaú, extremo sul da capital. Aos sete anos, me mudei para Aracaju, onde cresci na zona de expansão perto do mar e do rio. Então, tive o acolhimento dos meus pais, que possibilitou me desenvolver, desenvolver mais o meu senso crítico, a minha personalidade, a minha própria personalidade mesmo. Meus pais me acolheram, minha mãe principalmente, com quem eu tinha uma relação mais próxima. Quando eu levo para ela meu reconhecimento sobre ser trans, aos 14 anos, fui acolhida. Tive amizades com muitas LGBTs em Sergipe também, a principal é minha amiga até hoje, a Sofia Favero, minha amiga desde a sexta série.

Então venho para São Paulo e consigo, depois de muita luta, ingressar no mercado de trabalho... Trabalhei em telemarketing, que foi o meu primeiro emprego, e trabalhei na bilheteria de um cinema, onde passei por transfobia. Passei por transfobia em vários trabalhos, mas no cinema eu passei por muita transfobia. Eu ainda não tinha alterado meus documentos. Foi muito puxado... Onze anos atrás, era outro contexto... mas a transfobia se perpetua até hoje.

•        A militância política, quando começa?

Amanda Paschoal - A minha militância eu começo a beber da fonte através do Facebook, que naquele tempo era no Facebook.

Uma amiga minha de infância, a Sofia Favero, tinha uma página no Facebook que se chamava "Travesti Reflexiva". Eu também bebi muito da página "Feminismo Sem Demagogia", e página pessoal da Daniela Andrade... Tinham outras páginas que construíram nossa militância e a resistência que a gente cria por ser, única e exclusivamente, um corpo abjeto para a sociedade. A gente tinha como criar algum tipo de resistência, desenvolver um senso crítico e estratégias mesmo, ferramentas de sobrevivência, sendo um corpo que não tinha nenhum direito assegurado, que não tinha a humanidade mesmo assegurada em nenhum lugar que eu queria ocupar.

Então, eu passo por essas experiências mais precárias de trabalho e, com a referência do que eu já tinha bebido ali, das militâncias da internet também, pegando o exemplo da minha irmã, com quem eu morei por muitos anos, eu começo a tentar ingressar no ensino superior através dos vestibulares convencionais. Só que eu não tinha preparo, porque eu terminei o ensino médio por supletivo, já tinha passado um tempo, 2010, já era 2013, tinha feito alguns vestibulares, mas eu nunca tinha passado, porque eu não tinha saberes mais formais, específicos dos vestibulares convencionais.

Em 2015, criaram o Cursinho Popular de Transformação, que era o projeto piloto do Cursinho Popular de Transformação, que eu encontrei, inclusive, na internet. Aí, eu me vinculo a esse cursinho. Entro nesse projeto, que acontecia no CRD (Centro de Referência da Diversidade - Brunna Valin).

Fui para o Cursinho Popular de Transformação, que era uma iniciativa criada por pessoas cis para construir esse ingresso das pessoas trans e travestis nos vestibulares da educação formal, principalmente pelo ENEM. E lá eu me encontro afetivamente. A gente já se encontra afetivamente com essas pessoas, e com as pessoas trans que participaram desse projeto. Levo outras pessoas também para participar, como a Patrícia Borges, que é uma ativista militante, que também foi assessora da Erika Hilton e que também trabalhou na minha campanha.

Do Cursinho, nascem vários frutos muito prósperos para o nosso núcleo trans, como o Transarau, que surgiu no final de 2015 e existe até hoje. Também criamos a Antologia Trans, que teve duas tiragens, um livro que reúne 29 poetas trans, travestis e não-binários. Conseguimos imprimir o livro pelo Projeto VAI, e já esgotaram as duas tiragens.

Eu entrei no Cursinho em agosto de 2015. E aí, no final do ano, já ingresso na Faculdade de Gestão de Turismo. Já tinha feito o técnico em Meio Ambiente antes, que foi minha experiência educacional ali, antes da produção superior.

Depois, passo para a Gestão de Turismo no Instituto Federal de São Paulo. Aí, fiz o Instituto Federal, continuo no Transarau, no Cursinho de Transformação, mas mais como suporte, no Transarau um pouquinho mais presente. Depois que eu terminei a graduação em Gestão de Turismo, eu fiz uma especialização em Gestão Cultural Contemporânea, pelo Instituto Singularidades em parceria com o Itaú Cultural.

Por muito tempo, conciliei dois empregos, e surgiu uma outra oportunidade, que foi trabalhar com vendas. Aí, trabalhei como vendedora em várias lojas no centro, isso por quatro anos. Depois, começo a trabalhar no MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand) como orientadora de público. Saí do MASP para ir trabalhar com a Érica no começo de 2021.

•        Como foi esse período com a Erika Hilton?

Amanda Paschoal - Comecei a trabalhar com ela no dia 22 de janeiro de 2021. Fiz a entrevista e nós já tivemos uma conexão, uma sinergia, e aí eu entrei na recepção, em janeiro de 2021. Fiquei na recepção, acho que um mês e pouco, um pouco mais que isso, mas comecei a conciliar, também fui assessorando a chefe de gabinete, e participando das reuniões de articulação política. Depois, comecei a dar suporte também para o Rodrigo Abreu, que era o responsável pela agenda da Érica, e em maio de 2021 eu assumo a coordenação da agenda dela e fico com Erika full time.

•        Trajetória incrível, Amanda. Agora, eu quero voltar para a sua eleição: ao mesmo tempo em que você recebeu 108 mil votos, a população da capital também consagrou como mais votado um candidato que se promoveu com uma plataforma anti-trans. Qual é a sua análise para a Câmara Municipal que se desenha para a próxima legislatura?

Amanda Paschoal - Primeiro, eu avalio assim: As pautas anti-trans colocando um candidato como o mais votado, eu acho preocupante, acho triste mesmo que as pessoas se identifiquem com isso, sem pautas propositivas para a cidade. Todas as pautas dele [Lucas Pavanato/PL] são inconstitucionais. Eu acho triste, eu acho preocupante mesmo que a população de São Paulo se identifique com propostas que colocam as pessoas trans como pessoas que não deveriam ocupar lugar nenhum.

Mas, ao mesmo tempo, eu estar eleita também com um número bem expressivo de votos acho que é algo que nivela para mostrar que não estamos de brincadeira. Não vamos voltar para lugar nenhum. E é necessário, sim, que sigamos ocupando, que a gente construa o debate, construa a resistência mesmo a esse tipo de discurso, que eu acredito que é mais para tumultuar, e eles não vão conseguir aprovar nada.

Mas vai ser difícil. Vai ser difícil porque as figuras da direita mais fundamentalista cresceram dentro da casa. Então, a partir do ano que vem, eu vou ter que lutar.

•        Não vai ser fácil, mas quando analisamos a figura do candidato do PL, é tudo uma performance, pois as coisas que ele propõe não são nem atribuições do município.

Amanda Paschoal - Exatamente. Ou é inconstitucional ou não é atribuição municipal. Às vezes, é mais um trampolim mesmo essa chegada na Câmara dessa figura, para as eleições de 2026, acredito que seja isso. Mas, ainda que seja, serão dois anos de muito tumulto na Câmara Municipal, e aí perde a população de São Paulo.

•        Tanto nas eleições de 2020 quanto nas deste ano, nós tivemos a eleição de LGBT em todas as regiões do Brasil, nas pequenas e grandes cidades. Como você avalia isso?

Amanda Paschoal - Eu acho excelente, fico muito feliz. Espero que isso tenha continuidade e acredito que vai ter e que vai crescer, desde os últimos pleitos vem crescendo, e espero que a gente se articule e se organize para ocupar cada vez mais espaço.

 E, assim como a Erika tem feito comigo e segue fazendo, que nós possamos formar lideranças para construir mesmo a resistência e o futuro com proposta, com compromisso, com a qualidade mesmo do trabalho que é entregue por nós LGBTs, justamente para construir, para construir, não, né, para desconstruir o imagético que nos rodeia até hoje. Uma sociedade que é pautada na LGBTfobia, no racismo e na misoginia.

•        Quais serão as principais demandas de seu mandato?

Amanda Paschoal - As principais pautas são as mesmas para a continuidade do legado da Erika: a defesa dos direitos humanos, combate à fome, defesa da população LGBTQIAQN+, defesa da cultura, investimento em fomento à cultura, à saúde, à educação, valorização dos profissionais da saúde e da educação. Retomar o investimento no Fundo Municipal de Combate à Fome, que a Erika aprovou. Inclusive, essa é uma das minhas principais propostas: a partir da construção do orçamento do ano que vem, destinar 500 milhões para o Fundo Municipal de Combate à Fome, pensando em cozinhas solidárias principalmente nos bairros periféricos, na implementação de cozinhas solidárias e também cozinhas-escolas para trazer empregabilidade e formação para as pessoas em situação de rua. E também a criação do Fundo Municipal de Políticas LGBTQIAQN+ em diálogo com outros fundos, para garantir ações transversais de acesso à saúde, empregabilidade e moradia.

 

Fonte: Por Lana de Holanda Pelech,  em The Intercept/Fórum

 

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