sábado, 12 de outubro de 2024

As corporações que controlam as águas do Brasil

Recentemente, a empresa Equatorial, uma das principais distribuidoras de energia elétrica do país, assumiu a gestão da Sabesp, maior empresa de saneamento do Brasil, após ter disputado e vencido, sem concorrência, o leilão que levou à privatização da empresa, em julho de 2024. Em 2021, a Equatorial já havia sido vencedora do leilão, que privatizou o saneamento no estado do Amapá. Na época, por meio do pagamento de R$930 milhões de reais, a empresa tornou-se responsável pela gestão dos serviços de distribuição de água e coleta de esgoto em dezesseis cidades do Estado, passando a atender cerca de 700 mil pessoas.

Em São Paulo, o processo de privatização vendeu 32% das ações da companhia de saneamento do Estado. A Equatorial comprou 15% das ações por R$ 6,9 bilhões de reais, o suficiente para tornar-se acionista de referência. Os outros 17% foram vendidos para empresas menores e até mesmo pessoas físicas, por 7,8 bilhões de reais.

No total, foram arrecadados cerca de R$ 14 bilhões de reais com a venda das ações. Esse valor corresponde apenas a 5,38% do total dos investimentos previstos no plano regional de saneamento do Estado de São Paulo até o ano de 2060, que é de cerca de R$260 bilhões de reais.

Antes da privatização, a Sabesp era uma empresa mista, com 50% das ações públicas. Com a venda, o Governo deixou de ter controle acionário, mesmo possuindo 18% das ações da empresa.

A privatização retirou o controle do Estado sobre a Sabesp e transferiu para a Equatorial o direito de gerir a empresa e os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário para mais de 58% da população do Estado de São Paulo. É a segunda vez na história do saneamento brasileiro que uma empresa de energia elétrica passa a gerenciar os serviços de distribuição de água e esgotamento sanitário no país.

Mas, por que gigantes da energia, que comandam um dos setores mais lucrativos e eficientes do mundo, estão se interessando pelo saneamento? Essa é uma pergunta indispensável. Compreender como isto se dá é fundamental para a classe trabalhadora, que é atingida todos os meses com altas tarifas nos serviços públicos de luz, água e esgoto, direitos básicos que se tornaram meras mercadorias a serviço do capital financeiro, comprometendo a renda das famílias e a soberania nacional.

Ao analisar documentos e relatórios produzidos por bancos e entidades patronais encontramos algumas pistas que nos ajudam a compreender isto.

Primeiro, desde 2020, os bancos Credit Suisse, Miles Capital, Santander e a Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON SINDCON) já enxergavam o saneamento como um espaço que poderá ser até sete vezes maior que o setor elétrico. Após a aprovação da lei nº 14.026, instituições se reuniram e estabeleceram projeções em um cenário de privatização do saneamento. Considerando a estimativa feita à época, de que seria preciso criar uma dívida de mais de R$ 893 bilhões de reais para garantir a universalização do saneamento até 2033, bancos preveem que, nos próximos anos, o saneamento tende a ser um ambiente mais lucrativo que o setor elétrico. Para nós, esta é uma das principais razões pelas quais empresas que dominam o setor elétrico estejam interessadas em disputar o controle do saneamento.

A Equatorial, empresa do setor de energia, já vem disputando essa colocação. Após adquirir o controle da Sabesp, a Equatorial saltou de 734 mil consumidores para 28 milhões de clientes atendidos com serviços de distribuição de água, o que representou um crescimento de mais de 3.700%, em apenas três anos. Um salto gigantesco, que posicionou a Equatorial de vez no mercado de saneamento, conferindo-lhe o título de primeira empresa multi-utilities do Brasil, a única que possui negócios operando em diversos serviços públicos: energia elétrica, água, gás, saneamento, telecomunicações, como também negócios na área da energia solar e eólica.

Empresários já têm afirmado que a expertise da Equatorial garante à empresa o status de investidora de referência da maior empresa de saneamento do país. Ou seja, na visão dos agentes financeiros, empresas como a Equatorial, já consolidadas no mercado, são estratégicas para o saneamento e poderão explorar os serviços de água e esgoto, como já fazem com a energia elétrica.

Conhecida por ser a terceira maior empresa na distribuição de energia elétrica, atendendo cerca de 14 milhões de pessoas, agora, a Equatorial tornou-se a segunda maior distribuidora de água do país, com aproximadamente 29 milhões de consumidores. Um número que só não é superior ao total de consumidores atendidos pela empresa Aegea Saneamento e Participações S.A, líder no setor privado de saneamento básico, que atende mais de 31 milhões de pessoas em 500 cidades de 15 estados brasileiros.

Considerando os princípios de acesso, qualidade e equidade na prestação dos serviços públicos, o setor elétrico não deveria ser posto como um modelo positivo para outros setores.

Em primeiro lugar, passados 30 anos, as experiências de privatização na energia elétrica resultaram somente em aumento no preço dos serviços, diminuição da qualidade, endividamento das famílias e no enriquecimento do capital financeiro. A tão falada universalização do acesso à energia elétrica no Brasil, por exemplo, só aconteceu por meio de políticas e programas governamentais, como o Programa Luz para Todos, implementado nos anos 2000, através dos governos do PT.

A segunda preocupação diz respeito ao modelo de autofinanciamento por tarifas, aplicado nos locais onde o saneamento está privatizado. Utilizado no setor elétrico, desde os anos 90, esse modelo estabelece que a tarifa seja calculada com base no preço-teto e não no custo médio do serviço. Todavia, as tarifas são sujeitas a revisões e aumentos periódicos, para “assegurar o equilíbrio econômico-financeiro das empresas”. É essa simbiose com o setor elétrico, desde a sua reestruturação – seja na forma de regulação, metodologia tarifária, obrigatoriedade das licitações, o interesse pelos negócios da distribuição, até a formação de blocos regionais – que vem permitindo a privatização do saneamento em larga escala. Ela torna o ambiente muito favorável para que empresas de energia ocupem mais rapidamente este setor, tornando-se, inclusive, investidores de referência. Como declara a Equatorial de forma explícita, “o modelo regulatório é semelhante ao do setor elétrico, e isso favorece um maior desempenho econômico da empresa”.

Terceiro, observa-se que, diferentemente da energia, o saneamento possui diversas oportunidades de cobrança. São vários os serviços contemplados, incluindo água, esgoto, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. Portanto, uma única empresa poderá explorar diferentes serviços. As cobranças associadas ao modelo de autofinanciamento podem auferir às empresas uma mais-valia extraordinária, o que torna o mercado mais vantajoso para o capital. Certamente, empresas como a Equatorial estão interessadas no mercado que o saneamento pode ofertar.

Quarto, a privatização dos serviços de saneamento garante um retorno financeiro muito rápido às empresas, por meio do pagamento ao Estado pelo direito de concessão dos serviços com duração de 31 anos. Vejamos o exemplo da capital Teresina, Estado do Piauí, onde o valor líquido pago à Águas e Esgotos do Piauí S/A (AGESPISA) pela empresa Aegea Saneamento e Participações S/A, no ano de 2017, foi de R$ 160.130.000,00 (cento e sessenta milhões e cento e trinta mil reais). Este valor é menor que a arrecadação anual das tarifas pagas pelos teresinenses no ano de 2015 que, segundo dados da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE, já somava mais de R$174 milhões de reais.

Em 2018, com um ano de privatização, a receita líquida da Aegea, oriunda da arrecadação das tarifas, foi cerca de R$ 191,8 milhões de reais, segundo o demonstrativo financeiro da empresa. Mesmo contabilizando os gastos, nos primeiros anos a empresa arrecadou o valor da compra e atingiu um lucro extraordinário, saltando de 5 milhões e 896 mil reais, no ano de 2018 para 58 milhões e 519 mil reais, de lucro, em 2019, um aumento de mais de dez vezes no lucro líquido da empresa de um ano para outro. Isso é um protótipo do que tende a ocorrer em outros locais. Esse rápido retorno financeiro poderá atrair diversos setores, não apenas empresas ligadas ao setor de energia, tendo em vista a chance de obter, em pouco tempo, uma enorme lucratividade.

Quinto, diferentes setores da economia estão disputando os negócios da água e do saneamento, entre elas: Credit Suisse, Banco Itaú, Miles Capital, Santander, Banco Mundial, BNDESPar, Iguá Saneamento, BRK Ambiental, Aegea, BTG Pactual, FIP Saneamento, FI-FGTS, Equatorial, Suez, Brookfield, Equipav, Votorantim, Weg, Coca-cola, Ambev, Fundo Canadense, Fundo Japonês Sumitomo, Fundo Soberano de Singapura. Muitas dessas possuem, inclusive, acionistas em comum, como é o caso da Vale, Itaú, Sabesp, Suzano e a Magalu, ambas com investimento do fundo BlackRock. Esse interesse generalizado é a prova de que estes negócios geram uma enorme lucratividade.

Sexto, a Equatorial é uma empresa totalmente associada ao capital financeiro. Os seus acionistas são bancos e fundos de investimento, como: Opportunity (6,3%), Atmos (5,5%), Capital World Investors (5,2%), Squadra Investimentos (5,0%), Canada Pension Plan (5,0%) e BlackRock (5,0%); Outros (67,9%); Tesouraria (0,1%). São agentes financeiros que atuam na bolsa de valores, comprando e vendendo títulos e ativos, com o intuito de reproduzir e aumentar seu capital. O mercado da água e da energia é seguro para os acionistas, pois estes são serviços ligados diretamente às necessidades humanas. Os acionistas estão investindo nesses setores, pois o mais importante para eles é ter segurança no investimento que fazem. Nesse sentido, além de lucrativo, o saneamento vem sendo um mercado bastante seguro para o capital financeiro.

Entendemos que a classe trabalhadora precisa questionar tudo isto. Deve se perguntar o porquê de tantos aumentos nas contas? Para onde está indo esse dinheiro? A classe trabalhadora deve ser impreterivelmente contra aumentos nas contas de luz, água, esgoto, limpeza urbana. Precisa organizar-se para a luta. Em um mundo cada vez mais financeirizado, avançar no trabalho político de organização dos trabalhadores é uma tarefa necessária. Nas palavras de Bertolt Brecht, os trabalhadores devem estar sempre cientes do quanto “o preço do feijão, arroz, aluguel, água, esgoto, luz, aluguel dependem de interesses geopolíticos”.

 

Fonte: Por Dalila Calisto, em Outras Palavras

 

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