sábado, 12 de outubro de 2024

Alexandre Aragão de Albuquerque: A nova batalha - pedágio versus dízimo

Das ciências sociais advém uma compreensão sobre religião como sendo um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições nos humanos, buscando atingir o âmago da consciência – as almas – para assim conduzi-las com efetividade segundo seus objetivos.

Trata-se de uma “ferramenta” inventada em um determinado tempo e lugar, por certas pessoas, para impor seus propósitos a outras, revelando, consequentemente, seu caráter político. Uma invenção conceitual, politicamente motivada, para classificar o mundo entre aqueles que são e aqueles que não-são como nós, aqueles que são favor de nós e aqueles que são contra nós.

Religião compreende, portanto, uma dimensão institucional e organizada, do campo religioso, por meio de espaços, tempos, ritos, símbolos, doutrinas, liturgias, autoridades, práticas, tradições, comunidades, mitos, artes, literatura, premiações, ameaças e condenações. Desses elementos, dois são fundamentais: a Tradição e a Comunidade, por meio das quais liga-se e religa-se um grupamento de pessoas, baseadas numa determinada fé, com o objetivo de união entre si e com o Mistério da Transcendência.

A fé, em seu sentido estrito, refere-se a uma suposta palavra de Deus revelada, implicando como consequência aos crentes uma acolhida inquestionável e inabalável de uma interpelação transcendente, mediada pela revelação, pela autocomunicação de Deus na história, atestada por assim ditas testemunhas escolhidas.

Pelo menos quatro dimensões compõem uma fé religiosa. A dimensão intelectual – Fides – por meio da qual o crente assume como verdade as proposições de uma determinada crença, dispensando-a de comprovação científica ou factual. Fiducia, que se refere ao compromisso emocional de estar ligado à Fonte mediante as indicações de determinada doutrina religiosa. Há ainda a Fidelitas, a lealdade em colocar em prática os códigos estabelecidos. E por fim, a dimensão comunitária – Comunitas – congregando os crentes na vivência material do discurso de um determinado sistema religioso. 

Assim, não se trata apenas de devoção. Mas de instituições sociais, econômicas e políticas no interior das quais as biografias individuais e coletivas são vividas. Toda fé apresenta-se comprometida com algo. Importa saber com que causas e em que medida se compromete. Neste sentido é emblemática a citação de Tomás de Aquino (1225-1274) ao expressar que “certos povos vivem num grau de barbárie que só podem ser regidos pela vara. É lícito guerrear contra os pagãos se eles ofendem a fé cristã com a idolatria, que é a blasfêmia das blasfêmias”.

As eleições municipais de 2024 apresentaram um novo capítulo da disputa do mercado da fé, com forte presença do fundamentalismo religioso na vida política brasileira. Pablo Marçal (PRTB - SP), coach messiânico, de extrema-direita e autoproclamado cristão, surgiu como promessa de turbinar uma espécie de bolosonarismo 2.0, apoiado abertamente pela mídia do grande capital, que lhe abriu as portas a todos os debates por ela promovidos, mesmo sem o partido do referido candidato possuir a representatividade mínima na Câmara Federal que lhe garantisse assento nestes eventos, conforme dispõe a Lei eleitoral.

De olho nas almas sedentas das promessas e garantias de Deus, Marçal fundou em 2021 o Quartel General do Reino (QGR), um movimento religioso híbrido que combina elementos de religião e autoajuda com forte referência à sua imagem. Mesmo tendo Jesus Cristo como o líder espiritual do seu Quartel, Marçal apresenta-se como uma figura central do seu movimento. Em sua estrutura religiosa não há dízimo, não há templos, e os crentes têm acesso a Deus sem a necessidade da intermediação e da obediência a pastores ou pastoras. O coach messiânico, ao contrário, cobra esporadicamente pedágios ao oferecer pacotes religiosos: cursos por meio dos quais ele promete destravar a vida de seus milhões de seguidores digitais, combinando conteúdos de autoajuda, desenvolvimento pessoal e espiritualidade, apresentando-se como forte ameaça à estrutura neopentencostal enraizada no Brasil, com seus inúmeros templos, dízimos e pastores milionários.

Em entrevista concedida à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de São Paulo, no último dia 08 de outubro, o pastor Silas Malafaia sentiu o golpe da emergência do Quartel de Marçal e partiu para o ataque. Malafaia considera Pablo uma pessoa muito inteligente e carismática, muito fora da curva. Conhecedor da linguagem evangélica (“dos seus códigos”, como diria Umberto Eco no maravilhoso romance O Nome da Rosa), ao contrário de Bolsonaro que não sabe nada de evangelho. Por fim, para Malafaia, Marçal sabe usar as redes digitais como ninguém, acarretando como consequência a admiração de boa parte do povo evangélico, que segundo Malafaia, “está agindo por paixão”.

Em seu destempero notório, Malafaia deixa expor, na referida entrevista a Bergamo, uma espécie de desespero diante da novidade. “Não concordamos com calúnia, nem difamação. O povo de Deus quer ser guiado por redes sociais? Eu fui levantado como uma voz profética. O povo de Deus não é guiado por homens, é guiado pela Palavra e não pela paixão”, berrou Malafaia.

A indagação vem à tona: o que acontecerá se esse povo, desses pastores e pastoras neopentecostais, por conta da influência de Marçal, deixar de frequentar seus templos, seus cultos, deixar de seguir suas doutrinas e determinações pastorais e, principalmente, deixar de ofertar sistematicamente o seu dízimo fiel? Não é à toa que Malafaia, detectando a ameaça, partiu para o ataque com toda munição contra esse seu novo inimigo.

 

•        Só os perdedores não escapam, Pablo Marçal. Por Moisés Mendes

Pablo Marçal é um traste abandonado no meio de mais uma tempestade, e desta vez não há bombeiro que possa salvá-lo. Ninguém irá socorrê-lo, por ser perdedor e ter virado uma espécie de Eduardo Cunha harmonizado.

A política fez com Marçal, pelo voto, o que já havia feito com Bolsonaro em 2022. Derrotado na eleição, Bolsonaro teve pelo menos a chance da jogada do golpe, que Marçal não tem.

Se não tivesse exagerado, se tivesse calibrado a índole estelionatária e contido a arrogância misturada à ingenuidade, Marçal poderia ter pulado várias casas no jogo pesado da política. As incomodações seriam administráveis inclusive com o sistema de Justiça.

Se tivesse ido para o segundo turno, poderia até ser derrotado depois, mas teria suas imunidades. Sairia da eleição como protagonista e seria olhado de outra forma pelos que agora devem pegá-lo. Seria respeitado até por Kassab, o novo Francelino Pereira, dono do PSD, o maior partido do Ocidente.

Se tivesse derrotado Ricardo Nunes e chegado à disputa final, Marçal poderia ser não só respeitado, mas até temido pelo sistema de Justiça, sempre cuidadoso e cordial com poderosos de direita, muito antes e depois da ascensão do bolsonarismo.

Esse sistema que pega manés com facilidade, manda para a cadeia, acusa, julga e condena em apenas oitos meses, como aconteceu com os invasores do 8 de janeiro, é lerdo e vacilante diante de quem souber gerir o próprio poder político e econômico.

Se tiver um desses poderes, ou os dois combinados, o delinquente de elite da direita, da velha e da nova, escapa quase sempre. Só cai se estiver avariado e se for abandonado pela própria turma, a da política e a do dinheiro. Aécio nunca sofreu esse abandono e sobreviveu.

Marçal sabe como isso funciona. Poderosos sob investigação há meia década não foram alcançados por um sistema que finge querer pegá-los. O sistema que vacilou e decidiu que, antes da eleição, não deveria saltar em cima dos golpistas, dos contrabandistas e ladrões de joias, vampiros das vacinas e grandes financiadores dos bloqueios de estradas. Era bom esperar.

Se tivesse ido para o segundo turno, Marçal teria superado uma etapa importante e mudado de nível. Estaria quase ao lado dos grandes impunes, dos inalcançáveis porque provocam temores nos que deveriam cercá-los.

Alguns pastores que afrontam o Supremo, por exemplo, nem precisam se preocupar porque têm o poder da fé de milhões de evangélicos que os protegem. São poderosos porque outros rezam por eles por apenas 10% do que ganham.

Como também ainda são poderosos os empresários contrabandistas, sonegadores, golpistas, negacionistas, cloroquinistas e negociantes de vacinas que nem existiam na pandemia.

Marçal poderia se juntar a essa turma, se conseguisse agregar poder político à proteção do crime organizado e dos que se dedicam à pregação das prosperidades. Seria mais completo do que Malafaia, com a força do voto, do dinheiro e dos rebanhos cristãos, e não só dos neopentecostais.

Como perdedor, já pode se preparar para se juntar aos que tombaram por falta de suporte. Marçal tem contra si o fato de que é calouro nas instâncias de poder, sem turma forte na política e sem protetores nas esferas institucionais.

No mundo em que se meteu, tudo funciona como nas máfias e nas gangues. Não há como sobreviver sem histórico de vitórias contra os inimigos, sem grupo organizado e sem alguém que diga, só erguendo a sobrancelha, nesse ninguém toca.

Marçal desafiou a Polícia Federal e insinuou que não teme a Justiça, até porque já escapou de condenações pelo benefício da prescrição, essa que geralmente favorece os impunes de sempre. E, antes da eleição, ainda decidiu atacar Alexandre de Moraes.  

Com seus sapatinhos sem meia, chegou a jantar com gente do segundo time da Faria Lima e a se sentir parte até da grã-finagem da ala rentista de um sistema que diz combater.

Mas pode se preparar para o pior. E o pior começa com o abandono de quem vai dizer que nunca viu esse cara nem em parada de ônibus de Barueri.

 

•        Inelegibilidade de Marçal é questão de tempo, dizem aliados

Aliados do ex-candidato do PRTB à Prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal, já se preparam para uma provável condenação que pode torná-lo inelegível pela Justiça Eleitoral. De acordo com fontes ouvidas por Malu Gaspar, do jornal O Globo, há um consenso entre os apoiadores de que Marçal deverá ser afastado das disputas eleitorais até 2032, o que o impediria de concorrer nas eleições presidenciais de 2026 e 2030.

A expectativa é que as ações contra Marçal comecem a ser julgadas pela Justiça Eleitoral de São Paulo no início do próximo ano, podendo chegar ao Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) até o final do primeiro semestre. A previsão é que uma decisão definitiva do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ocorra no segundo semestre de 2025, entre outubro e novembro, exatamente um ano após o primeiro turno da eleição municipal. Fora da disputa, Marçal enfrenta pelo menos dez ações de investigação judicial eleitoral (Aijes) já protocoladas.

Esses processos, movidos pelo Ministério Público Eleitoral (MPE) e por adversários como Guilherme Boulos (Psol), Tabata Amaral (PDT) e José Luiz Datena (PSDB), ainda estão na fase inicial da Justiça Eleitoral de São Paulo, aguardando a coleta de provas e análises mais detalhadas, que podem incluir a quebra de sigilo bancário do candidato e de suas empresas. O objetivo é apurar se houve abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação durante a campanha.

Entre as acusações, destacam-se a monetização de perfis em redes sociais, a divulgação estratégica de cortes de vídeos de Marçal e a oferta de apoio a vereadores em troca de doações para a sua campanha. Contudo, o ponto mais crítico para seus aliados é o impacto causado pela divulgação de um laudo médico falso, utilizado para acusar Guilherme Boulos de uso de drogas. O laudo foi desmentido publicamente, inclusive pelas filhas do médico cujo nome foi utilizado no documento, e a Polícia Federal abriu um inquérito para investigar o caso.

Conforme apurado, o laudo, que continha um RG incorreto de Boulos, citava um “surto psicótico” em uma data em que o candidato do Psol estava em uma ação de distribuição de cestas básicas. “Marçal esticou demais a corda e perdeu a eleição para ele mesmo. Ele vai ser condenado pelo conjunto da obra, o laudo falso foi a cereja do bolo”, comentou um dos aliados, apontando que o episódio comprometeu a ida de Marçal ao segundo turno.

<><> Especialistas apontam gravidade do caso

Para especialistas e ex-ministros do TSE, ouvidos pela coluna sob anonimato, a situação de Marçal é considerada mais séria do que a de Francischini, pois o laudo falso foi divulgado poucos dias antes do primeiro turno e afetou diretamente a disputa. O ex-ministro Admar Gonzaga afirma que o caso é “concreto de inelegibilidade”, ressaltando que Marçal se beneficiou diretamente da mentira. “Não é possível que ele não sabia que aquele laudo era falso. E se não sabia, diante do teor, era sua obrigação de tomar todos os cuidados antecipadamente.”

Outro ex-ministro destacou que a ação foi premeditada, uma vez que Marçal já vinha fazendo acusações contra Boulos ao longo da campanha, prometendo divulgar as "provas" no momento oportuno. “A narrativa foi toda deliberadamente construída e liberada ao longo da campanha”, pontuou.

Para se defender, Marçal insiste no argumento de que exerceu o “direito à livre manifestação do pensamento” ao divulgar o conteúdo e nega ter fabricado ou manipulado o laudo. Contudo, especialistas acreditam que, diante das provas, o TSE terá um caso sólido para declarar a inelegibilidade do ex-coach.

 

Fonte: Brasil 247

 

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