sábado, 12 de outubro de 2024

Urariano Mota: Narrar e denunciar sempre a história da ditadura

Os mais jovens, a maioria da população, desconhecem os crimes da ditadura brasileira. 

Os escritores, jornalistas, historiadores e cineastas temos uma tarefa de Sísifo: recomeçar a contar a história da ditadura todos os dias.

Como tento fazer a seguir, numa das muitas páginas em que a denúncia dos crimes, a luta e o amor avultam no romance “A mais longa duração da juventude”

“Então a advogada Gardênia anotará da entrevista com Vargas: ‘Ele era um tipo romântico, ingênuo’. O que isso queria dizer? Ali na sala está corporificado para ela: de braços abertos, Vargas protege a companheira e a filha. No diário da advogada: ‘eu conversei com ele que fugisse, ao que ele se negou dizendo que isso não faria, porque zelava pela segurança da filha e da esposa’. E Vargas, na defesa sem armas, na imaginada que pode dar às pessoas do seu extremado carinho, registra o diário da advogada: ‘Eu pedi que ele deixasse a criancinha sob meus cuidados. Ele me falou que não ia levar Nelinha para uma aventura, porque ela era uma pessoa frágil, e seria também assassinada. Aí era pior, porque a menina ficaria órfã, sem ninguém’. 

Nesse ponto flagramos a pessoa, a coragem e terror de Vargas: a consciência de que será morto. Mas não só morto a tiro, de bala. Morto depois de intensa tortura e sofrimento. Aqui entra o ponto nevrálgico, ele sabe que não demora ser brutalizado, se continuar no Recife. Mas não deseja que a sua mulher o acompanhe, na hipótese de fuga ou adiamento da execução. Se ele é o condenado, por que atrair, dividir o inferno com quem ama? 

- Fuja, fuja, Vargas. O momento de escapar é agora – fala a advogada. 

Mas ele, o homem ‘romântico ingênuo’, não quer fugir. À distância podemos ver a lógica fria do heroísmo em lugar do romântico, penso. A advogada Gardênia lhe atribui a qualidade de romântico porque ele defende de modo absoluto a integridade física da companheira. Um caso de paixão de enamorado, talvez. E acrescenta o ingênuo, porque ele se nega a receber o oferecimento prático do mundo real, a saber: fugir, salvar-se, para depois em segurança avaliar o estrago que deixa. Mas não estamos preparados para ver a grandeza no instante em que ocorre. Ou melhor, só vemos o grande quando ele nos impacta de modo bárbaro. Por exemplo, Gregório Bezerra sendo espancado a golpes de ferro na cabeça pelas ruas do Recife. Na sua altiva resistência vemos. Mas não enxergamos que o heroísmo vem antes da tragédia. Na decisão que antecede o desfecho não vemos a grandeza. O próprio Vargas, naquela hora em que abre os braços no apartamento de Gardênia, nada vê de excepcional. Ele apenas age para defender pessoas do seu amor, age apenas por justiça. Não levará para a desgraça a companheira querida e sua Krupskaia. Não permitirá que corram riscos maiores que viver com um ‘terrorista’. E ameniza a própria bravura com uma fórmula prosaica: 

- Talvez eles nem me peguem agora. É tempo de eu vender livros pedidos pelas escolas. Com o dinheiro da comissão, eu fujo. Entendeu, doutora? Mas fique com os meus documentos. Se a situação apertar, já estão com a senhora 

Aperta a mão da advogada e sai. Desce pelas escadas para melhor refletir, como se no tempo entre o quarto andar e o térreo houvesse um acréscimo de vida. E vem parando nos trechos intermediários, a retardar a sua hora, até alcançar a portaria e sair para a Rua Sete de Setembro. Agora, é o mundo real sem mais discussão filosófica. E o real são ele, Daniel e Fleury....... 

O horror das mortes em 1973 é o retrato do seu último instante físico. Não é justo resumir uma vida humana assim. Sobre um animal sentimos a brutalidade: ‘O novilho continuava lutando. A cabeça ficou pelada e vermelha, com veias brancas, e se manteve na posição em que os açougueiros a deixaram. A pele pendia dos dois lados. O novilho não parou de lutar. Depois, outro açougueiro o agarrou por uma pata, quebrou-a e cortou-a. A barriga e as pernas restantes ainda estremeciam. Cortaram também as patas restantes e as jogaram onde jogavam as patas dos novilhos de um dos proprietários. Depois arrastaram a rês para o guincho e lá a crucificaram; já não havia movimento’. Se essa infâmia narrada magistral por Tolstói nos fere quando pensamos no gado, o que diremos de pessoas no matadouro? 

Penso em Vargas e seu sacrifício, o heroísmo que ninguém notou. Morto como mais um boi, gado abatido qualquer. Se não lhe comemos a carne, comemos a sua grandeza, porque o defecamos em nova brutalidade. Onde está Vargas, onde buscar Vargas? Ele está na sala da advogada Gardênia, quando ela lhe propõe a fuga, que corra e suma antes de ser morto, e ele se nega porque Nelinha era muito frágil? Ele está no ônibus, quando luta febril ao vislumbrar a sua última hora, da qual possui a certeza, e para ela caminha ainda assim? ‘Nelinha está salva’, ele se fala. ‘Ela continuará a viver. Ela e a minha filhinha continuam. Venham, malditos’. E nisso, ao expressar também a crueza do seu isolamento, pois não estava ‘organizado’, sem vínculo direto com organização clandestina, onde buscar o terrorista Vargas? Desta maneira ele ficou adiante, conforme o viu a advogada Gardênia: 

‘Vargas, que eu conhecia muito, estava também numa mesa, estava com uma zorba azul-clara, e tinha uma perfuração de bala na testa e outra no peito. E uma mancha profunda no pescoço, de um lado só, como se fosse corda, e com os olhos abertos e a língua fora da boca’. Vargas teria sido puxado por corda para o matadouro? Aos bois partem o rabo, rompem a cartilagem, para assim ele arremeter para o lugar onde o sangram. A homens arrastam? Nos laudos da ditadura, não há uma narração da dor. Mentirosos, chegam a ocultar a causa mortis, ao esconder lesões, ao eufemizar a barbárie. Tudo que falam é uma adaptação do cadáver à fraude da repressão política. É nessas circunstâncias que cresce o valor do depoimento da advogada, que testemunhou e preencheu as lacunas, o vácuo dos laudos tanatoscópicos: 

‘Soledad estava com os olhos muito abertos, com expressão muito grande de terror. A boca estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão que ela foi morta e ficou algum tempo deitada e a trouxeram, e o sangue quando coagulou ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. E o feto estava lá nos pés dela, não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror’”. 

 

¨      Ernesto Geisel — o controle da oposição democrática. Por João Quartim de Moraes

Entender o presente como história significa entendê-lo como prolongamento do passado. Na sequência de artigos que estamos iniciando, desenvolveremos a análise concreta dos principais episódios que marcaram o rumo da impropriamente chamada “transição democrática”, isto é, o processo que levou da ditadura militar à atual hegemonia do pensamento liberal na política e na cultura.

A despeito das lutas persistentes, muitas delas grandiosas, algumas heroicas, travadas pela resistência popular ao regime ditatorial implantado pelo golpe reacionário de 1964, foram as ideias e, sobretudo, os interesses da direita liberal que prevaleceram na reformulação das instituições políticas brasileiras anunciada pelo general Ernesto Geisel ao assumir em 15 de março de 1974 o mandato de presidente da ditadura militar.

Todo plano estratégico se caracteriza por seus objetivos e pelos meios a serem empregados para atingi-los. Elaborado por Ernesto Geisel e por seu conselheiro político, o general Golbery do Couto e Silva, o projeto de “normalização” institucional pretendia promover a reconversão liberal do regime através de uma “distensão” política “gradual e controlada”. Tratava-se, pois de uma política de abertura, não de uma abertura política, a qual só se delinearia, aos trancos e barrancos, na década seguinte.

Naquele momento quase nada se sabia da vasta operação militar que o Exército, com apoio da Aeronáutica, desfechara em 1972 para aniquilar o movimento guerrilheiro do Partido Comunista do Brasil na região do Araguaia, a mais consistente contestação revolucionária que a ditadura militar tinha enfrentado. Rígida censura aos meios de comunicação isolou do resto do país a região dos combates. Esmagadora superioridade numérica e de material bélico, bombardeios com napalm, tortura e execução sumária dos prisioneiros, asseguraram o êxito das operações de cerco e aniquilamento desfechadas pelo Exército, que se prolongaram até 1974.

A credibilidade da abertura anunciada por Ernesto Geisel ao tomar posse exigia manter completamente fechadas as informações sobre o que estava ocorrendo na região conflagrada. A mordaça funcionou, mas a distensão anunciada pela retórica oficial não durou muito. As eleições legislativas marcadas para 15 de novembro de 1974 anunciavam-se difíceis para o regime. O MDB, partido da oposição tolerada, tinha adquirido certa credibilidade como veículo de expressão das aspirações de liberdade difundidas amplamente através do país, mas o sucesso que ele obteve ultrapassou suas expectativas mais otimistas.

No Senado, onde o voto pode assumir caráter mais plebiscitário, ele elegeu seu candidato em 16 Estados, em um total de 22. Na Câmara Federal ele passou de 87 a 160 deputados, em um total de 364. Nos Estados mais urbanizados, a vitória da oposição foi particularmente expressiva pelo contraste com os resultados de 1970. No Estado de São Paulo, notadamente, o MDB passou de 902 713 votos em 1970 a 3 413 478 em 1974, ao passo que a ARENA recuou de 2 627 422 a 2 028 581.

Ao frisar que o ritmo da “distensão” política deveria ser “gradual e controlado”, Ernesto Geisel estava pensando no controle da oposição democrática. Mesmo fragorosamente derrotado nas urnas, ele não perdeu o rumo. Não lhe escapava que a despeito do custo político, a derrota eleitoral trazia um efeito de legitimação para o regime, por ter garantido à oposição um mínimo de liberdade de reunião e de expressão.

Ele sabia, porém que seu projeto estava longe de ser aceito por todos os oficiais das forças armadas. O avanço eleitoral do MDB em novembro de 1974 assustou muitos deles e exacerbou os maus instintos dos esbirros e beleguins que faziam parte daquilo que o jornalismo bajulador chamava “comunidade de segurança”.

Não era segredo que havia militantes e simpatizantes do PCB atuando no MDB. Tendo condenado como “equivocadas” as ações armadas da resistência clandestina, eles se atinham estritamente aos métodos não violentos de luta política. Nem por isso se livraram da sanha dos torturadores. Aniquilados, uns depois dos outros, os movimentos de luta armada, os farejadores dos serviços de repressão política concentraram-se no rastreamento dos comunistas “infiltrados” no MDB.

Logo após a posse de Ernesto Geisel, bem antes, portanto, das eleições legislativas, desencadeou-se uma ofensiva policial-militar visando a prender, torturar e assassinar os dirigentes mais conhecidos do PCB, um partido, vale insistir, que se abstivera de recorrer à luta armada contra o regime ditatorial. Muitos desses crimes hediondos foram cometidos antes da derrota sofrida pela ditadura em novembro de 1974, o que comprovaria, se preciso fosse, que a nova operação de extermínio havia sido ativada independentemente de considerações eleitorais.

Quatro generais da cúpula do Exército se destacaram na promoção dessa nova escalada do terrorismo de Estado: os comandantes do II (SP) e do III Exército (RGS), respectivamente Ednardo D’Avila Melo e Oscar Luiz da Silva; o chefe do Estado-Maior do Exército, Fritz Manso e o ministro do Exército, Silvio Frota. Os assassinatos seletivos promovidos por esse quarteto sanguinário prosseguiam. O Brasil já era conhecido, pelo menos desde o início da década, como um país onde os presos políticos eram sistematicamente torturados. Mas à sombra do Ato Institucional nº5, de 13 de dezembro de 1968, a censura bloqueava toda e qualquer referência às atrocidades nos porões do DOI-CODI e de outras “casas da morte”.

Até que, em 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura, convocado pelo DOI-CODI de São Paulo para explicar suas possíveis ligações com o PCB, foi submetido a um “interrogatório” com porretadas de madeira espessa e descargas elétricas que só terminou com sua morte. Mas desta vez o assassinato não ficou circunscrito à cena do crime. A convocação de Vladimir Herzog pelos militares, bem como a de seus colegas de trabalho, era pública e notória. Não era possível fazê-lo “desaparecer”, como era costume dos torturadores e assassinos do aparelho de repressão montado pela ditadura.

No dia 31 de outubro de 1975, um silencioso “ato ecumênico” convocado pelo cardeal Paulo Evaristo Arns na Catedral da Sé, ao qual se associaram chefes religiosos protestantes e judeus, reuniu cerca de 8.000 participantes, que não se deixaram intimidar pela presença ostensiva de tropas do Exército ocupando as principais rotas de acesso ao centro e por centenas de policiais postados na praça da Sé. O impacto moral e político dessa manifestação ecumênica foi profundo e durável.

Porta-vozes do regime emitiram, no mesmo dia, um comunicado sobre o “lamentável episódio”, avisando que não permitiriam que ele fosse usado para perturbar a ordem, conclamando a “desarmar os espíritos” e prometendo “impedir que ocorram novos incidentes dessa natureza”. Essa fraseologia juntava hipócritas condolências, ameaças explícitas e um recado ao quarteto sanguinário cuja interpretação mais plausível era evitar torturas e assassinatos suscetíveis de provocar escândalos públicos.

O que importava — antes de mais nada — para Ernesto Geisel era a preservação de sua autoridade no comando supremo das Forças Armadas e do poder político e no controle dos “serviços especiais” do terrorismo de Estado, ao longo das turbulências e contradições da “normalização”.

 

Fonte: Brasil 247/A Terra é Redonda

 

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