sábado, 12 de outubro de 2024

Bets e futebol: 'combinação explosiva' já traz impactos severos nas famílias, aponta especialista

Enquanto as casas de apostas esportivas engolem bilhões de reais até do Bolsa Família, clubes de futebol populares se aliam cada vez mais ao setor, em uma combinação tida como "explosiva" por especialistas. No início do mês, governo autorizou a operação da FlaBet, ligada ao Flamengo.

"Perdi tudo, até a confiança da minha família; as apostas dominaram a minha vida; destruí meu casamento por causa de jogo." Esse é um dos comentários retirados de uma publicação nas redes sociais sobre a destruição causada pelo vício em apostas esportivas e cassinos on-line.

Dados divulgados pelo Banco Central no último mês escancararam o problema social gerado pela livre atuação das empresas no Brasil, que só agora começam a ganhar uma regulamentação: cerca de 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família já desembolsaram em pagamentos via Pix até agosto R$ 10,5 bilhões do benefício para pagamento de apostas.

Enquanto isso, as bets também têm se apropriado cada vez mais de uma paixão nacional para lucrar: o futebol.

Diversos times contam com patrocínio master de casas de apostas, e outros chegaram a lançar as próprias plataformas em parceria com as empresas. Entre eles está o Flamengo, que criou a FlaBet, autorizada no início do mês a seguir operarando no Brasil na lista divulgada pelo governo.

Para o professor do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais, da Universidade Federal Fluminense (UFF), Marcelo Mello, essa é uma "combinação explosiva".

"Todos nós sabemos que o futebol é um esporte com muita penetração nas camadas especialmente mais populares, é um esporte muito conhecido e uma paixão nacional. As pessoas mais pobres é que estão gastando mais dinheiro da sua renda familiar com apostas. E essas pessoas também […] têm pouca instrução formal, e nenhuma cultura de economia financeira. Então são presas fáceis para esse tipo de estímulo em jogos de apostas", analisa à Sputnik Brasil.

O especialista ainda lembra de uma questão comportamental que intensifica essa combinação perigosa: no Brasil, boa parte da massa de torcedores se sente como "conhecedores profundos do futebol".

"Os apostadores relacionados ao esporte, pelo menos os que entrevistei, se sentiam quase técnicos de futebol. Por isso, não consideram a aposta em casas esportivas um jogo de azar, mas o resultado de um cálculo. E também não acreditam que seja um gasto, porém um investimento. Não é algo de lazer, uma despesa que possa ser dispensada, mas é sobretudo um investimento", explica.

•        O que significa o nome 'bet'?

O nome que se popularizou no Brasil para definir as empresas vem do inglês e significa aposta. Do famoso tigrinho divulgado às casas esportivas que se popularizaram através do futebol, as bets utilizam um meio que facilita ainda mais a sua propagação: o digital, diferentemente de cassinos, jogo do bicho e lotéricas, em que é necessário ir até um local.

"Agora as apostas não precisam de um lugar físico para elas serem realizadas, elas estão ao alcance da mão de qualquer pessoa que tenha celular. Não há mais aquela dificuldade em apostar, aquele deslocamento físico de ir até um bingo ou uma máquina. O processo é feito pelo smartphone, o que também é uma combinação muito perigosa. No Brasil, existem mais celulares que pessoas. Isso, portanto, é mais uma razão para uma regulamentação mais estrita e que leis sejam criadas para proteger a sociedade e a população desse tipo de comércio", enfatiza.

•        Quando entra em vigor a lei das bets?

Também neste mês, o governo federal anunciou novas regras para regulamentar as bets no Brasil. Porém a maioria das portarias, como a que proíbe o uso de cartão de crédito, só entra em vigor em 2025.

Apesar disso, a publicidade segue permitida no país, e a taxação do setor será de cerca de 35% da arrecadação. O professor da UFF considera as medidas "muito frouxas".

"A aprovação da lei de apostas se deu sob forte influência do lobby das casas de apostas. Essas discussões não foram tornadas públicas de uma maneira muito expressiva. Então o lobby atuou muito. Como esse processo foi feito de uma maneira muito rápida e um pouco às escondidas do público, é claro que se aprovou uma legislação com muitos buracos. E a gente está sentindo e vendo esses buracos agora, com esse espraiamento das apostas, especialmente entre as pessoas mais pobres. Por exemplo, não há nenhuma limitação à propaganda, o que é um absurdo. Os jogos de apostas não são uma mercadoria comum, não são uma mercadoria qualquer, mesmo como a bebida, o fumo, o tabaco, que implicam em riscos que serão suportados pela sociedade. Esse tipo de consumo provoca dependência", destacou o especialista.

•        As bets no esporte ferem a ética?

O professor do programa de pós-graduação em sociologia política da Universidade Candido Mendes Theófilo Rodrigues avalia à Sputnik Brasil que as bets ainda ferem os princípios éticos, ao "retirarem recursos econômicos dos trabalhadores mais pobres e os repassarem para os cofres de algumas empresas".

No Rio de Janeiro, por exemplo, o especialista citou a apresentação de um projeto de lei pela deputada estadual Dani Balbi (PCdoB) que proíbe a publicidade das empresas em todo o estado.

"O melhor caminho não seria a criação de uma lista de casas permitidas pelo governo, mas sim sua proibição. E se for considerada radical demais, então o correto seria apenas as Loterias da Caixa terem essa autorização", finaliza.

 

•        Quando os jogos de apostas online se tornam um problema?

As tendências de jogos de azar explodiram periodicamente ao longo da história, mas seu pico mais recente pode ser agora, com o “boom” dos sites de apostas online no mundo inteiro, as chamadas “Bets”. Aparentemente, da noite para o dia, os anúncios de empresas de apostas esportivas tornaram-se inevitáveis.

Os espectadores agora podem esperar vê-los não apenas em transmissões esportivas, mas também em outras programações e em qualquer lugar em que os anúncios sejam encontrados online, especialmente nas redes sociais. Só nos Estados Unidos, em 2022 os norte-americanos haviam apostado mais de 220 bilhões de dólares em esportes, e 2023 foi também o terceiro ano consecutivo em que a receita de apostas comerciais bateu recordes.

Com a explosão das apostas esportivas, casos de irregularidades chegaram às manchetes nos Estados Unidos e em outros lugares do mundo, como no Brasil. Um exemplo notório ocorrido esse ano foi quando a NBA (principal liga de basquete dos Estados Unidos e Canadá e a mais importante do mundo) baniu o jogador do Toronto Raptors, Jontay Porter, da liga por toda a vida depois que uma investigação interna descobriu que ele havia apostado em jogos de basquete.

O radialista norte-americano Craig Carton voltou ao ar depois de ser preso – e iniciou um programa que discute a realidade do problema do jogo. No Brasil, alguns jogadores de futebol, personalidades da música e influenciadores das redes sociais foram investigados (e alguns até presos também) por estarem ligados a crimes relacionados a jogos de apostas online.

Antes considerado um símbolo de imoralidade, o jogo tornou-se significativamente menos estigmatizado nas últimas décadas, comenta Jeff Derevensky, diretor do International Centre for Youth Gambling Problems and High-risk Behaviours da Universidade McGill. “Eles transformaram o jogo viciante em uma forma de entretenimento recreativo socialmente aceitável”, diz ele. “Como resultado dessa aceitação social, você não precisa se esconder.”

O jogo está mais acessível do que nunca. Isso torna mais fácil para as pessoas, inclusive para os jovens que têm dificuldade em estabelecer e manter limites, cair em um vício grave. Desde 2018, tem havido mais relatos de alto nível de adolescentes que se tornaram viciados em jogos de azar, e os especialistas notaram que vários adolescentes migraram para os jogos de azar por meio de videogames, provavelmente porque eles satisfazem necessidades psicológicas semelhantes. 

Entre 2018 e 2021, o risco de problemas com jogos de azar online cresceu 30%, de acordo com o National Council on Problem Gaming, uma organização norte-americana sem fins lucrativos que visa minimizar os custos econômicos e sociais associados ao vício em jogos de azar.

•        Jogos de aposta online em qualquer lugar e a qualquer hora

Os cassinos são há muito tempo a cara do setor de jogos de azar, mas quando se trata de apostas esportivas, os grandes apostadores de hoje em dia não precisam necessariamente se resignar a ter que ir até o centro de jogos mais próximo ou procurar um agente de apostas de confiança para jogar – eles só precisam de um celular e de internet.

“Antigamente, era preciso se deslocar até um local de jogo”, afirma Lia Nower, professora e diretora do Center for Gambling Studies da Rutgers University, nos Estados Unidos. “Agora você tem jogos de azar online 24 horas por dia, 7 dias por semana, no seu celular. Você tem uma casa de apostas esportivas ou um cassino no seu bolso, e pode estar sentado jantando com sua família e jogando fora de casa.”

Serviços simples de apostas esportivas online, como o BetMGM ou o DraftKings, facilitam a inscrição e o início das apostas, chegando ao ponto de oferecer uma série de opções de pagamento por meio de várias plataformas bancárias, como o PayPal ou PIX (no Brasil) para garantir pagamentos fáceis e saques rápidos.

(Conteúdo relacionado: Como o uso das redes sociais pode afetar o cérebro)

Mas aqueles que não estão familiarizados com a configuração do terreno podem acabar perdendo mais dinheiro do que o esperado. Recursos como microbetting, que envolve jogar as probabilidades em aspectos específicos ou menores de um jogo, ou apostas em vários eventos dentro de um único jogo, são incentivos atraentes tanto para os novatos quanto para os apostadores experientes, embora cada um deles seja arriscado em seus próprios aspectos. As apostas no mesmo jogo, por exemplo, tendem a depender muito de seus poderes de previsão e, se uma única etapa da aposta estiver errada, toda a aposta será perdida.

“A maioria das apostas esportivas está sendo feita online”, diz Joe Maloney, vice-presidente sênior da American Gaming Association (AGA), um grupo comercial nacional que representa o setor de cassinos dos EUA. “Obviamente, isso reflete o fato de os operadores do mercado legal e regulamentado atenderem aos consumidores onde eles estão cada vez mais na sociedade atual.”

A onipresença das apostas virtuais não significa que os jogos de azar presenciais tenham desaparecido – na verdade, mais do que nunca, as oportunidades podem ser encontradas em quase todos os lugares onde se passa o tempo livre – incluindo bares, pistas de boliche e instalações esportivas.

•        Quem está jogando e quando isso se torna um problema?

A maioria dos apostadores esportivos tende a ser jovens adultos do sexo masculino, mas, de acordo com a AGA. Em 2023, de acordo com a associação, 6% dos apostadores esportivos tinham entre 21 e 24 anos de idade, enquanto 34% tinham entre 35 e 44 anos, a maioria faz parte da geração conhecida como millennium. Os mesmos dados sugerem que 64% dos apostadores esportivos no mesmo ano eram do sexo masculino.

Há muito tempo, os jogos de azar são considerados um hobby dominado pelos homens e, historicamente, promovem a conexão social. Atualmente, os jogos de azar modernos têm como objetivo o entretenimento e a união das pessoas por meio da competição, explica Timothy Fong, professor clínico de psiquiatria e codiretor do Programa de Estudos sobre Jogos de Azar da Universidade da Califórnia. O aumento das apostas sociais também pode abrir caminho para que os homens tenham maior probabilidade de desenvolver vícios graves em jogos de azar.

“Você não joga só uma vez e se torna viciado ou dependente”, diz Derevensky. “É um distúrbio progressivo. Leva tempo.”

Agora classificado como uma condição de saúde mental crônica no DSM-5, o problema do jogo pode ser difícil de diagnosticar devido à facilidade com que se esconde. Estima-se que afete cerca de 1% dos norte-americanos, mas, assim como qualquer vício, o jogo a longo prazo pode alterar o funcionamento do seu cérebro, e muitos jogadores problemáticos relataram sentir estresse, ansiedade e depressão no auge do problema.

“Muitas vezes, as pessoas não querem admitir que têm um problema com jogos de azar”, afirma Fong.

Muitas vezes, diz ele, os pacientes não fazem ideia de que têm um vício e resumem suas sequências de derrotas à mera má sorte. Mesmo que reconheçam o problema, os jogadores problemáticos geralmente enfrentam a vergonha e evitam pedir ajuda. A falta de financiamento para pesquisas torna os dados sobre o vício em jogos de azar ainda mais nebulosos.

Como o setor de apostas onlie continua a crescer vertiginosamente, os especialistas sugerem que os jogadores sejam responsáveis com suas decisões e, independentemente do resultado, tentem aprender com a experiência.

“Perder faz parte da experiência do jogo, faz parte da vida, e descobrir como você reage às perdas em coisas que são importantes para você é muito, muito importante”, conclui Fong.

 

Fonte: Sputnik Brasil/National Geographic Brasil

 

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