sábado, 12 de outubro de 2024

'União islâmica': quais os principais desafios à proposta do Irã de criar bloco nos moldes da UE?

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, analistas apontam que a criação de uma unidade islâmica visa conferir estabilidade ao Oriente Médio, mas é problemática porque cada país da região segue uma vertente do islã e por conta da disputa pela influência regional.

O governo do Irã estuda a criação de uma união comum entre países islâmicos nos moldes da União Europeia (UE). O tema foi tratado em uma reunião do presidente iraniano, Masoud Pezeshkian, com seu homólogo iraquiano, Abdul Latif Rashid.

No encontro, Pezeshkian propôs ainda criar comissões especializadas entre Teerã e Bagdá para desenvolver laços políticos, econômicos, culturais e sociais entre os dois países, que já estiveram no front de batalha em lados opostos.

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas avaliam os impactos que a criação de uma união comum teria sobre o Oriente Médio, a probabilidade de a proposta ser acatada por países islâmicos da região e como ela seria recebida pelo Ocidente.

João Gabriel Fischer Morais Rego, doutorando em ciências militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), pesquisador do Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC) e membro do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (Nerint), explica que a proposta seria boa para países islâmicos, pois conferiria a eles uma interconexão para a solução de seus problemas regionais, sejam guerras ou rivalidades, sem depender de potências externas da região.

"Isso seria um benefício do lado da segurança e economicamente também seria algo interessante para os países, essa escolha de tentar formar uma união dos países islâmicos, principalmente ter uma força unida contra qualquer problema adversário", afirma.

Rego avalia que a estabilidade regional seria a principal agenda dessa aliança, porque é a questão que mais tem afetado os países do Oriente Médio, apesar de suas diferenças políticas e econômicas. Ele acrescenta que outro fator importante será a forma como esses países vão lidar com grupos armados, que têm suas próprias agendas, como as milícias houthis, no Iêmen, "que no passado realizaram operações contra a Arábia Saudita".

Ademais, Rego aponta que o projeto será um desafio em especial para Pezeshkian, que é um governo recente, sobretudo na negociação com a Arábia Saudita, que disputa com o Irã o posto de potência mais influente do Oriente Médio. Segundo ele, uma união de países islâmicos necessita da Arábia Saudita, "que é uma grande força na península Arábica".

·        Quais são os principais problemas enfrentados pela comunidade islâmica?

Rego afirma que um dos principais problemas em torno da criação de uma união islâmica é como ela seria vista externamente do Oriente Médio.

"Como os países vão lidar com este aumento de capacidade de poder dos países islâmicos? […] Como eles vão negociar, como eles vão interpretar ou como eles vão observar essa ação dos países islâmicos se ocorresse uma organização parecida com a União Europeia?", questiona.

Ele afirma que um dos pontos que ajudam a unir os países islâmicos é ter um inimigo em comum, no caso Israel, que não veria com bons olhos a união islâmica, assim como os EUA, que nesse caso apoiariam a iniciativa a depender de quem seria o líder do bloco.

"Se você botar ali uma aliança com a Arábia Saudita [como líder], seria interessante para os EUA. Mas se uma liderança dessa futura possível organização for um país rival dos EUA, não é interessante [para Washington]."

·        Qual será a diferença entre a união islâmica e a UE?

Ao propor a criação de uma união islâmica, o presidente iraniano, Masoud Pezeshkian, retomou o princípio do islã chamado "Ummah", termo árabe que significa "nação" e que no islã se refere à união de todos os muçulmanos no mundo.

É o que afirma Muna Omran, doutora em teoria e história literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora convidada de geopolítica da Ásia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Ela ressalta que a proposta de bloco do Irã é diferente da UE.

"Tanto na estrutura jurídica e institucional, o mundo islâmico precisa de uma organização supranacional que possa servir como base para uma integração política ou até mesmo econômica, desde que elas sejam significativas", explica.

Ela afirma que já existe a Organização para a Cooperação Islâmica (OCI), mas que esse é um ente com objetivos mais diplomáticos e limitados, sem "um poder executivo ou legislativo para poder unificar esses países islâmicos em termos de políticas comuns".

Ela frisa, no entanto, que embora a ideia de Pezeshkian seja boa, ela é utópica e problemática, por conta da pluralidade do islã.

"Quando a gente fala em islã, as pessoas tendem a pensar em uma coisa única, em um monobloco. E o islã, ele não é um monobloco, ele é plural, cada país vai ter uma interpretação diferente dos ditos do profeta, do Alcorão, […] algumas mais flexíveis, outras mais místicas, outras mais literalistas. E poderia […] dificultar essa unidade. Porque o islã do Irã difere do islã da Síria, do islã da Arábia Saudita. Com isso você já vê uma certa dificuldade de atitudes. Por exemplo, na Síria as mulheres muçulmanas não são obrigadas a usar o hijab, o véu. Muita gente usa, outras não usam; não é lei, não é obrigatório. No Irã, na Arábia Saudita, é."

Ela acrescenta que um dos objetivos do Irã ao propor a união islâmica é contornar os problemas econômicos causados ao país por conta das sanções ocidentais.

"O Irã sofre um embargo, então, tendo essa união islâmica, pegando a ideia da União Europeia, ele não teria problemas nas questões comerciais. Por exemplo, a própria Arábia Saudita, que é um inimigo histórico do Irã, poderia negociar com eles, vender qualquer coisa que eles estejam precisando, menos o petróleo, porque também são produtores de petróleo. Então o presidente do Irã vê nessa possibilidade não só uma unidade ideológica, mas também que se resolva um problema do Irã que ele vive hoje, que são as consequências do embargo."

 

¨      José Luiz Fiori: A União Europeia, a OTAN e os cavaleiros templários

O projeto de integração europeia foi concebido, depois da Segunda Guerra Mundial, como parte de um sistema supranacional liderado e tutelado pelos Estados Unidos, que visava pacificar um continente que viveu em estado de guerra quase permanente nos últimos 800 anos. O projeto inicial foi lançado em 1951 com a assinatura, em Paris, do tratado que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Eram apenas seis países – Bélgica, França, Alemanha, Itália, Luxemburgo e Países Baixos – mas depois a comunidade inicial se expandiu e se transformou na atual União Europeia, com o Tratado de Maastricht, assinado em 1992, e chegou a ter 28 países-membros, até a saída da Grã-Bretanha, em janeiro de 2020.

O projeto inicial da Comunidade Europeia propunha a desmilitarização parcial dos Estados europeus, que deveriam transferir sua soberania militar para uma organização supranacional de defesa – a OTAN, que já havia sido criada em 1949 – que garantiria “ajuda mútua” em caso de ataque externo a algum dos países-membros da comunidade. Apesar disso, o Tratado de Maastricht, assinado logo depois da unificação da Alemanha, estabeleceu como objetivo o desenvolvimento de uma política de segurança coletiva própria da União Europeia, mas até hoje nunca havia logrado equacionar o problema do relacionamento desta política de defesa regional com a política de segurança coletiva da OTAN, tutelada pelos Estados Unidos.

A formação e a expansão inicial da Comunidade Europeia avançaram sob a liderança conjunta da França e da Alemanha Ocidental, até a queda do Muro de Berlim. Entretanto, depois da reunificação da Alemanha e da incorporação dos antigos países comunistas da Europa do Leste, a União Europeia caiu prisioneira de uma armadilha circular, da qual nunca conseguiu se desvencilhar.

Ela precisava centralizar seu poder político e militar para poder formular uma estratégia internacional, mas essa centralização foi sistematicamente boicotada por seus principais sócios, a França, a Alemanha Ocidental e a Inglaterra, que nunca admitiram abrir mão de suas soberanias nacionais. Um impasse que ficou ainda mais agudo depois da reunificação da Alemanha, que se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente e passou a ter uma política externa cada vez mais assertiva e independente.

O comportamento alemão reacendeu as antigas fraturas e competições do Velho Continente, acentuando o declínio da França e favorecendo a decisão britânica de se retirar do projeto comum. Mesmo assim, a União Europeia seguiu sem resolver sua “falha genética” fundamental, ou seja, a falta de poder central unificado capaz de impor objetivos comuns a todos os seus Estados-membros, e continuou dependendo dos Estados Unidos para sua defesa comum.

Essa situação começou a se modificar com a Guerra na Ucrânia, a partir de 2022, que reacendeu o medo comum e a paranoia da União Europeia com relação à Rússia, facilitando o processo de transformação da OTAN no verdadeiro governo militar da União Europeia, responsável direto pelo planejamento, financiamento e municiamento das tropas ucranianas.

A verdade é que, desde o momento de sua criação, em 1949, o objetivo da OTAN foi “manter os russos fora”, segundo as palavras do Lord Ismay, seu primeiro secretário-geral. Esse objetivo foi cumprido plenamente ao longo de toda a Guerra Fria. Mas depois da dissolução da União Soviética, em 1991, a OTAN passou por uma espécie de “crise de identidade” e de redefinição do seu papel dentro da Europa e no sistema internacional.

Num primeiro momento, a organização militar se voltou para o Leste e para a ocupação/incorporação dos países da Europa do Leste que haviam pertencido ao Pacto de Varsóvia – expansão que está na origem última da crise e da guerra na Ucrânia. Além disso, participou diretamente, pela primeira vez na sua história, das guerras da Iugoslávia e do Kosovo, em 1999. E antes disso, em 1994, lançou um projeto de intercâmbio militar e segurança com os países árabes do norte da África, o chamado “Diálogo Mediterrâneo”.

E dez anos depois, na sua reunião em Istambul, de 2004, decidiu expandir seu objetivo inicial, criando a “Iniciativa de Cooperação de Istambul” (ICI), voltada para os países do Oriente Médio. No mesmo período, a OTAN se colocou ao lado das tropas anglo-americanas, nas guerras do Iraque e do Afeganistão, e depois também no norte da África. E agora, mais recentemente, vem se propondo a expandir sua presença na Ásia, participando do cerco militar da China que vem sendo implantado pelos Estados Unidos.

A Guerra na Ucrânia, entretanto, e a opção dos principais governos europeus de envolver-se diretamente no conflito, acabaram envolvendo a OTAN na primeira grande guerra europeia desde a Segunda Guerra Mundial. E tudo indica neste momento que os principais países europeus, junto com a nova chefia da Comissão Europeia e da OTAN, seja prolongar o conflito da Ucrânia, de forma a facilitar a criação de uma “economia de guerra” no território europeu.

Uma economia de guerra que seria liderada pela Alemanha, que já renunciou a sua indústria manufatureira tradicional para transformar-se na cabeça de um “complexo militar” envolvendo os demais países europeus. Esse novo projeto para a OTAN e a União Europeia conta com o apoio do atual governo norte-americano, e deverá se manter e aprofundar no caso de vitória dos democratas na próxima eleição presidencial.

Pelo menos foi isto que ficou sacramentado ao final da 75ª Reunião Anual de Cúpula da OTAN, realizada na cidade de Washington, em julho de 2024, que confirmou a decisão de prosseguir e aprofundar o envolvimento da Organização na sua guerra Rússia, incluindo agora também a China na condição de adversária da OTAN. Neste sentido, ao comemorar seus setenta e cinco anos, se pode dizer que a OTAN decidiu se transformar definitivamente no “governo militar” da União Europeia, e ao mesmo tempo na última fortaleza da “civilização ocidental” contra os “ortodoxos russos”, os “povos islâmicos” e a “civilização chinesa”. Uma espécie de Cavaleiros Templários do século XXI, responsáveis pela defesa do “Norte Global”.

 

¨      Lavrov sobre 'OTAN asiática': ideia de criação de blocos militares traz consigo riscos de confronto

Quaisquer ideias sobre a criação de blocos militares geram riscos de confronto, disse o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, ao comentar a iniciativa do Japão de criar um análogo asiático da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

O novo primeiro-ministro do Japão, Shigeru Ishiba, defendeu durante a campanha eleitoral o fortalecimento das capacidades de defesa do Japão, a criação de uma "OTAN asiática" e um sistema de segurança coletiva na região.

De acordo com Lavrov, Moscou está preocupada com os planos de "remilitarização" do governo japonês, que segue uma política para aumentar os gastos com a Defesa e inclui conceitos de ataques preventivos em sua doutrina militar.

"Qualquer militarização, quaisquer ideias sobre a criação de blocos militares sempre trazem riscos de confronto, que podem passar para uma fase quente", disse ele durante uma coletiva de imprensa na sexta-feira (11) na 19ª Cúpula do Leste Asiático.

Ele indicou que o Japão está cada vez mais envolvido em atividades militares com os Estados Unidos e seus parceiros na região da Ásia-Pacífico, cuja política está direcionada contra a Rússia e a China.

Portanto, a declaração final da cúpula não pôde ser adotada devido às tentativas dos EUA e de vários países de politizá-la.

A Cúpula do Leste Asiático é um fórum para o diálogo entre os líderes da região da Ásia-Pacífico sobre uma ampla gama de questões estratégicas, políticas e econômicas.

As reuniões nesse formato são realizadas anualmente em conjunto com eventos de alto nível da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN, na sigla em inglês).

Desde 2011, os líderes da Rússia e dos Estados Unidos também são convidados para o fórum.

Durante a coletiva de imprensa, Lavrov informou que vários países da ASEAN aceitaram o convite para participar da cúpula do BRICS em Kazan (Rússia), de 22 a 24 de outubro.

"A associação [BRICS] atua hoje como um dos pilares de sustentação da ordem mundial multipolar e a próxima cúpula do BRICS em Kazan certamente será um evento internacional de importância global", enfatizou.

 

Fonte: Sputnik Brasil/A Terra é Redonda

 

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