Após a avalanche da direita, qual país
verás?
Que país pode existir
enquanto fronteira e laboratório de práticas financeiras e comerciais
ultraliberais? Um país mistificado, em transe resultante da última e da próxima
guerra santa por inventar. Autorizados pelo espírito de salve-se quem puder e
como puder, entram em cena os falsos vingadores, vangloriando-se de pilhar o
que já foi previamente estigmatizado e vulnerabilizado: os biomas, as
periferias, os povos e seus imaginários entrelaçados.
Em um país convertido
em plataforma de superacumulação de capitais errantes, o esvaziamento último é
o de sentido e o de destino. A orfandade multitudinária resultante encontra
alívio nos braços de pastores, mitos, capitães e delegados, terceirizando sua
autoimagem para aqueles que os retêm, seletivamente, em meio à dissipação. É
por isso que os candidatos a próceres da extrema direita se apresentam como
exterminadores de alteridades, de gênero, raça e comportamento, dos bandidos,
imigrantes, comunistas e demais rótulos demonizáveis.
De um lado, hordas de
mercenários armados, material e digitalmente, à disposição para manter a
exceção permanente, ou seja, o poder de fato. De outro, uma legião de
parlamentares e gestores sempre a postos para privatizar bens públicos e para
tornar a legislação cúmplice ou leniente com o crime financeiro-empresarial
organizado. Por sobre este bloco, como abóboda, se espraiam religiões
verticalistas e salvacionistas, em consonância com think thanks neoconservadores
e neonazistas, oferecendo paraísos de segurança e de consumo para os
“escolhidos”.
Em tempos de guerra
social total e assimétrica, ficam suspensos os limites protetivos do mundo do
trabalho, dos territórios e do imaginário social. A liberdade de acelerar e
atropelar o que estiver na frente do caminho é o âmago programático deste bloco
representado por títeres como Trump, Marianne Le Pan, Netanyahu, Milei, entre
outros na esfera internacional. No Brasil, Bolsonaro, Tarcísio de Freitas,
Marçal e congêneres repetem o mesmo lema como num jogral. Não casualmente, o
crescimento de lideranças políticas com esse perfil é acompanhado pelo
crescimento das bolsas e movimentos especulativos determinados: quanto maior o
solavanco na contratualidade anterior, maiores são lucros extraordinários
realizados em detrimento do futuro de coletividades e de patrimônios comuns.
Investidores
especializados na incorporação de ativos estatais exigem padrão SABESP de
privatização, sem freios nem contrapartidas. Os superávits primários dilatados
que a dupla Palloci e Meireles ofereciam entre 2003 e 2015, como prova de
fidelidade aos mercados, depois de Temer e Bolsonaro foram automatizados como
piso regulamentar. No novíssimo velho Comitê de Política Monetária do Banco
Central, a definição dos juros passa a ser feita de forma assumida para manter
e ampliar as margens de ganhos financeiros com serviços e títulos da dívida
pública. É o fim da política monetária como instrumento anticíclico, que
forneça a liquidez necessária para garantir soberania econômica em tempos de
crise. A política de juros no Brasil é movida pelo medo de contrariar
interesses particularistas: quanto mais emprego e renda gerados, mais
restritiva deve ser a política monetária para neutralizar eventuais dinamismos
que escapem à lógica do rentismo. Cara e coroa da mesma moeda: juros
preventivos e guerras preventivas contra as retomadas de território e de
crescimento autossustentado.
Austericídio é pouco
para caracterizar este descomunal butim de recursos públicos repartidos entre
conglomerados financeiros por meio da multiplicação de mecanismos artificiais
de endividamento do Estado e da sociedade. Enquanto se refestelam com os despojos
dos fundos públicos e dos bens ambientais da nação, os grandes conglomerados
financeiros e seus corvos midiáticos arrotam denúncias de gastança, corrupção e
má gestão do Estado. Subsídio é o que se condena nos setores ainda não
financeirizados completamente. Para bancos e fundos de investimento, há sempre
almoço (banquete) grátis sem que haja contrapartidas em termos de emprego,
inovação e qualificação. Não há sistema financeiro no mundo mais subsidiado e
protegido que aquele que opera no Brasil. Um grande paraíso financeiro como
este requer um Banco Central que seja olhos e ouvidos dos reis-investidores. É
o que se quer manter com sua autonomia plena, iniciada com Guedes e Campos
Neto, e mantida, com reverência servil, por Haddad e Galípolo.
Conglomerados de
commodities agrícolas e minerais desfrutam a mesma condição paradisíaca,
blindados e protegidos de todos os lados. O território nacional adquire a forma
de uma gigantesca incubadora de novas plantations e províncias
minerárias. Estes empreendimentos estão autorizados a promover desastres em
série, devidamente precificados, para que prossigam expandindo seu raio de
atuação. Os setores exportadores, valendo-se do barateamento de trabalhadores,
comunidades e biomas, se tornam os “setores-líderes” do país.
O crime, em larga
escala, contra povos, a natureza e a economia popular, compensa. E continuará a
compensar, a depender das vozes tonitruantes que fazem calar sistemas de
justiça, órgãos de fiscalização e controle. Despachantes parlamentares se
apressam em aprovar legislações antiambientais e antissociais que criminalizam
sujeitos coletivos que se coloquem na contramão desta corrida desenfreada.
Passada a boiada, fecha-se a porteira e nela se enfileiram os fuzis. Nem Deus,
nem pátria: “segurança jurídica” da propriedade acima de tudo.
Sem margem ou
horizonte para firmar ou revisar acordos interclassistas, pactos sociais ad
hoc que sejam, resta o estouro do alarme e o comportamento de manada.
A pauta particular dos grandes proprietários – a segurança do patrimônio – vira
pauta de todos que aspiram à única condição considerada digna. Melhoria e
direitos não “engajam” mais, privilégio é o que se almeja, ou se é VIP ou não
se é nada. Modalidades de serviços e de tratamento (pretensamente VIP) são
oferecidas aos sedentos por reconhecimento e por olhares de inveja prometidos
nas telinhas. Por isso a extrema direita é pop.
O culto ao Todo
Poderoso se desdobra no culto à concentração infinita. Fechados os caminhos
para um padrão universal de tratamento ao longo dos anos 90, apesar das
melhores intenções e cartas de direitos, legadas de décadas e séculos
anteriores, adeuses são dados sem que se perceba. É “Adeus Rosseau” e não
apenas “Adeus Lênin”. Não é só o socialismo que fica para trás, mas também
todas as promessas da modernidade e de democracia liberal. Os ricos e pobres
não se encontrarão nem se aproximarão, ninguém mais ousa vislumbrar o cenário
de uma grande classe média em expansão a partir da “equalização das
oportunidades”. Morte ao meio, ao meio real e almejável por todos.
Qualquer política
social ou instrumento de regulação pública para fazer prevalecer interesses
difusos e intergeracionais é pichada imediatamente como “socialista”. No
capitalismo financeirizado não cabem mais dádivas aos debaixo. A disfunção, a
fraqueza ou pobreza torna-se instantaneamente sinal de “não merecimento”.
Meritocracia dos vencedores, eugenia econômica, aporofobia, supremacismo,
nenhuma classificação consegue captar a sordidez da fórmula.
As políticas
ultraliberais e as culturas narcísicas em circulação implodiram as pontes de
ligação e os canais de interação social. Se é livre a defesa e ostentação da
fortuna, é porque a igualdade perdeu importância como princípio legitimatório.
Do alto descem os sinais de asco e repugnância contra os descartáveis, aqueles
que não deveriam existir. Pragmaticamente, os que podem se salvar mandam para o
inferno os que não podem.
No imaginário
generalizado, fabricado com terror, sequestro e bombas, o inimigo é aquele que
interrompe ou ameaça interromper sua ascensão. São taxados de corruptos,
ditadores e bandidos todos que pleiteiem ou justifiquem a adoção de mecanismos
redistributivos da renda. As bandeiras de Israel nas manifestações
bolsonaristas são didáticas, expondo os cruzamentos de estratégias
fundamentalistas. Inimigo no vórtex, todas as armas e métodos são abençoados.
Grande Israel, senha da grandeza de todas as ordens, para os “escolhidos”. Todo
poder e toda a glória para os “filhos diletos”.
No caso brasileiro, o
que une todas as direitas é a demonização das práticas políticas dedicadas a
desconcentrar saber, poder e renda. O PT, a esquerda e a bandeira vermelha, são
alvos mais manejáveis, mas é a luta social e o conjunto de memórias de resistência
da classe trabalhadora e das comunidades o que se quer erradicar.
No andar de cima, no
campo da regulação das finanças, do agronegócio e da indústria extrativa, há
cada vez mais autorregulação inter-monopolística. E o que sobra no andar de
baixo? Ficamos com a disputa pela intermediação do que sobra da dívida, do que
sobra de poder regulatório? A disputa possível não estaria em espaços de poder
oclusos e paralelos, construídos por décadas de mobilização social?
Enfrentamos nas
últimas décadas uma sequência de contrarreformas que tratou de restaurar e
depois exponenciar graus e ritmos de acumulação de capital. Seu itinerário é a
destruição dos referenciais coletivos de organização e das garantias objetivas
e subjetivas dos direitos sociais e políticos da classe trabalhadora. Cortes
profundos na carne com a imposição de bloqueios políticos e institucionais de
tudo o que possa ser democratizado e socializado no país.
Nesse cenário, é
indispensável resgatar a memória das lutas, memória do processo, não apenas do
resultado. Não cabe qualquer saudosismo acerca das chances e espaços
anteriormente alcançados. A visão estática e legalista dos direitos, típica da
filosofia política liberal, se podia fazer algum sentido em períodos de
relativa estabilidade econômico-política, não tem mais lugar no bojo das
convulsões estruturais do capitalismo e de avanço subsequente de formas
políticas autoritárias e neofascistas.
O lamento da perda
deve ser passagem para a evocação. Para encontrar atalhos e saídas, será
preciso criar as condições objetivas e subjetivas para que os dominantes temam
novamente os dominados e admitam a definição de limites e freios à sua sanha
expansionista. É preciso dimensionar o tamanho dos estragos e a profundidade
das ofensivas promovidas nestes anos. Ao mesmo tempo, é preciso medir o poder
social que ainda detemos e resguardamos e a partir daí conjecturar como
viabilizar as contraofensivas necessárias.
• Como a Frente Progressista perdeu
terreno: o pragmatismo cego que empurra a política para a direita. Por Requião
Filho
Se pensarmos bem, ano
após ano, a frente progressista vem cedendo espaço para pautas absurdas e
conservadoras. Com isso, a régua política vai se deslocando cada vez mais para
a direita, em direção ao extremo conservadorismo. E o que isso impacta a política?
Antes, a discussão que inflamava os discursos era reforma trabalhista e perda
de alguns direitos. Agora, é privatização desenfreada e defesa da família de
maneira totalmente distorcida.
Eu afirmo com
segurança: isso tem dedo do PT e do PDT. Esses dois partidos são responsáveis
por alianças com o campo conservador em nome de um “pragmatismo eleitoral”. Um
pragmatismo que não traz benefícios, cedendo ainda mais espaço para a direita
crescer.
As eleições de
primeiro turno em Curitiba exemplificam bem esse contexto, já que a Frente da
Esperança não tinha nenhum representante genuíno defendendo o que ela acredita.
Isso fez com que Eduardo Pimentel não enfrentasse uma oposição clara no campo
progressista.
O problema disso é que
a oposição que se formou contra Pimentel veio ainda mais à direita. A régua
política foi deslocada mais uma vez, criando um cenário no qual a atual gestão
não teve adversários da esquerda. No fim das contas, os candidatos eram todos
de perfil semelhante ao dele. Ou piores.
E nós fomos afastados
do jogo eleitoral sem o devido tempo de TV e fundo eleitoral, que exclui
qualquer chance de candidaturas que não tenham apoio orgânico de WhatsApp e
redes como o conservadorismo conhecidamente possui.
Esse cenário se
fortalece com a desigualdade agravada com os apoios vindos dos Palácios em
Brasília e em Curitiba. A soma destes contribui diretamente para o eleitor
receber informações de maneira profundamente desigual.
Ou seja, a diferença
dos apertos de mão nos vídeos e recursos fez com que o eleitor não tivesse o
acesso ideal ao debate amplo, como exige a democracia.
Em Curitiba, o que
cresce não é a disputa de ideias. É o apelo para normalizar o processo de
aceitação de uma direita menos conservadora do que a outra. A democracia que
pregam é a democracia do medo, em que “o outro lado é sempre pior”, menos
democrático.
Enquanto a discussão
acontece, a realidade nos coloca diante de uma extrema direita que avança. E
cresce muito.
Fonte: Por Luís
Fernando Novoa Garzón, em Outras Palavras/Brasil 247
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