Exposição à guerra pode causar ansiedade e
depressão nas crianças
"Muhanad por que
você não vai para o jardim de infância?", pergunta a mãe para o filho. E,
ele responde: "Por causa da guerra". O garoto deixou de frequentar a
escola aos 4 anos, quando os ataques em Gaza se intensificaram. Agora, aos 5,
faz algumas atividades educativas sentado sobre o que restou de sua casa
bombardeada, na cidade de Deir Al-Balah, onde vive com a família - a mãe e os
dois irmãos mais velhos. Estudos sobre conflitos armados anteriores confirmam
que os efeitos da guerra na saúde mental das crianças são a longo prazo, com
danos permanentes, caso não recebam intervenções precoces. Sem contar que menos de 1% delas recebeu
alimentação adequada e há impactos sobre o desenvolvimento cognitivo global.
Considerando que os confrontos na região completaram um ano, sem sinais de
cessar-fogo, é necessário observar atentamente essas consequências.
Publicado na revista
Neuropsychopharmacology, do grupo Nature, um artigo da Universidade de
Washington, nos Estados Unidos, detectou alterações cerebrais visíveis por
exames de imagem feitos em meninos e meninas de 6 a 14 anos expostos a
situações traumáticas. Os circuitos neurais associados ao medo mostraram
alterações, comparado ao de crianças não expostas à violência. No teste, os
pesquisadores mostravam aos 94 participantes situações de perigo e segurança.
Os cérebros dos pequenos, porém, não conseguiam fazer distinção.
"Perturbações na identificação do medo podem contribuir para
psicopatologias associadas ao trauma", advertiram os autores. As crianças
cujos cérebros apresentaram mudanças — inclusive, no volume de algumas regiões
— também tinham os níveis mais elevados de ansiedade e depressão.
A mãe de Muhanad, Hiba
Alassar, uma palestina-brasileira de 34 anos, que tem mais dois filhos, Abdel,
12 anos, e Ahmed, de 10, relatou ao Correio como tem sido difícil manter o
mínimo para as crianças. "Tento fazer atividades com eles para diminuir o
medo e deixá-los um pouquinho melhor", contou. Ela aguarda o governo
brasileiro para tirá-los da Faixa de Gaza. "Preciso que a voz se espalhe,
sobretudo por causa das crianças, tenho que sair daqui com eles. Eles já estão
numa situação muito ruim", reagiu. Segundo ela, as crianças sofrem porque
sentem muito medo, e ela, por sua vez, tenta distraí-los.
• Situação crítica
Uma nova publicação,
nomeada Educação Palestina sob Ataque em Gaza: Restauração, Recuperação,
Direitos e Responsabilidades pela Educação, alerta que a situação, que se
arrasta há mais de 12 meses, pode atrasar o ensino de crianças e jovens em até
cinco anos, criando uma geração perdida de palestinos permanentemente
traumatizados na saúde e na educação.
O relatório
desenvolvido por acadêmicos em colaboração com a Agência da ONU para Refugiados
Palestinos (UNRWA) é o primeiro a quantificar o impacto da guerra no
aprendizado desde o início do conflito, em outubro de 2023.
A pesquisa revela que,
desde 2019, as crianças de Gaza já perderam 14 meses de educação devido a
crises, incluindo a pandemia de covid-19 e operações militares anteriores. No
otimista cenário de um cessar-fogo imediato, os alunos perderiam dois anos de aprendizado.
Se as hostilidades se prolongarem até 2026, esse número sobe para cinco.
Recentemente, com a
pandemia de covid, pesquisas demonstram os impactos dos anos de estudo perdido
para o desenvolvimento mental das crianças e adolescentes. Uma revisão de 50
pesquisas sobre o tema publicada no Journal of Pediatric Neuropsychology cita os
efeitos adversos encontrados por pesquisadores, como ansiedade, distúrbios do
sono, depressão e transtorno pós-traumático.
O relatório do UNRWA
destaca o impacto devastador da guerra sobre a saúde mental e o bem-estar das
crianças e dos educadores. Segundo o Escritório da ONU para Coordenação de
Assuntos Humanitários, até agosto de 2024, mais de 10.600 crianças e 400
professores foram mortos, e muitos outros foram feridos ou deslocados.
"Costumávamos ir
para a escola e brincar com os amigos. Íamos ao estádio jogar futebol e ao
clube praticar karatê. No final de semana, íamos ao parque de diversões e
ficávamos felizes com nossos pais. Por causa da guerra, tudo isso
desapareceu", contou Abdel, filho mais velho de Hiba.
• Destruição no mapa
Além disso, uma
análise de imagens de satélite mostrou que mais de 90% das escolas em Gaza
foram danificadas. Desde agosto, a UNRWA tem fornecido educação em abrigos,
atendendo cerca de oito mil crianças, mas os pesquisadores defendem ser
necessário mais apoio para mitigar as perdas que já se tornaram grandes.
O relatório aponta que
a "pobreza de aprendizagem" — a incapacidade de ler um texto básico
aos 10 anos — aumentou em pelo menos 20%. Os efeitos psicológicos da guerra
também são alarmantes, com relatos de crianças questionando valores fundamentais,
como igualdade e direitos humanos, em um contexto de trauma constante.
A professora Pauline
Rose, da Universidade de Cambridge, destacou a urgência de apoio educacional
imediato, afirmando, em comunicado, que "a educação é um direito de todos
os jovens" e que existe uma responsabilidade coletiva de protegê-la. Os
pesquisadores enfatizam que, sem um suporte internacional robusto para a
educação, a confiança das crianças em seu futuro pode ser severamente
prejudicada.
Conforme Mara Duarte,
neuropedagoga e gestora da Rhema Neuroeducação, recuperar a educação é um
processo muito complexo e longo. "O trauma de uma guerra, ou qualquer
outro significativo que a criança passa, não desaparece rapidamente. Será
necessário reestruturar as escolas, os currículos, e os professores precisam
ser capacitados, o que leva anos. Essas crianças terão dificuldades para
acompanhar o currículo normal, então será necessário reforço escolar e suporte
psicossocial para acelerar esse processo."
O relatório conclama
ainda a comunidade internacional a priorizar a educação na ajuda humanitária,
que atualmente tem recebido apenas 3,5% dos recursos destinados a Gaza.
Philippe Lazzarini, Comissário Geral da UNRWA, adverte que a educação é o único
bem que os palestinos não perderam e que a recuperação da aprendizagem deve ser
uma prioridade coletiva, sob pena de criar um ciclo contínuo de extremismo e
violência. Os autores frisaram ainda que um cessar-fogo é essencial para
qualquer esforço de reconstrução educacional.
• Da infância à morte, trauma
Traumas acumulados ao
longo da vida, como abuso parental, repetição de ano escolar e violência,
impactam significativamente a dor, a depressão e a solidão no fim da vida. Uma
pesquisa, publicada no Journal of the American Geriatrics Society e liderada pelas
universidades da Califórnia e de Michigan, nos Estados Unidos, acompanhou de
6.500 pessoas com mais de 50 anos e descobriu que 80% dos participantes
vivenciaram pelo menos um trauma, e aqueles que enfrentaram cinco ou mais
eventos traumáticos tinham chances 60% maiores de sentir dor severa e
possibilidades, risco elevado em 22% de solidão e 40% mais probabilidade de
desenvolver depressão.
<><> Duas
perguntas para: Ricardo Pires, gerente de comunicação e porta-voz global do
Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)
• Quais são os principais problemas de
saúde das crianças em Gaza?
O risco de fome e
diversas doenças continuam ameaçando milhares. Os dados mais recentes revelam
que 96% da população, mais de dois milhões de pessoas, enfrentam insegurança
alimentar aguda. Apenas 1% das crianças no norte de Gaza e 6% no sul recebeu a
diversidade alimentar recomendada nos últimos meses. As hostilidades também
estão prejudicando a capacidade dos serviços de saúde. Estima-se que 82% de
todas as instalações de saúde foram danificadas ou destruídas. O deslocamento
em larga escala para áreas que carecem de necessidades básicas aumenta ainda
mais o risco de surto de doenças transmissíveis, além de desnutrição. Casos de
sarna, erupções cutâneas, piolhos, catapora e pneumonia parecem aumentar entre
as crianças.
• Como o conflito afetou o acesso à
educação?
O impacto tem sido
catastrófico. Quarenta e cinco mil crianças do primeiro ano foram privadas de
iniciar as aulas este mês, juntando-se a 625 mil outras que já foram impedidas
de viver um ano letivo completo e, com o conflito ainda em andamento, tem um alto
risco de passar um segundo ano sem educação. Entre os alunos que não puderam
participar das aulas nos últimos meses, estão 39 mil estudantes que não fizeram
seus exames de Tawjihi (um teste de educação secundária). É a primeira vez em
décadas que uma turma de formandos passa por isso. Para os mais velhos, a
interrupção gerou incerteza e ansiedade. Sem escola, eles estão em maior risco
de exploração, trabalho infantil, casamento precoce e outras formas de abuso, e
podem abandonar os estudos permanentemente. Para os mais novos, a situação
ameaça o desenvolvimento cognitivo, social e emocional. Pais relatam impactos
na saúde mental e psicossocial. Além da destruição física, a falta de materiais
pedagógicos impede a eficiência de soluções temporárias. Ademais, muitos
professores foram mortos ou deslocados.
Fonte: Correio
Braziliense
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