Quem são os baianos acusados de escravizar mulheres
desde a infância
Aos 53 anos, uma
mulher teve que aprender a viver a própria vida. Às vésperas da terceira idade,
ela não sabia nem ler — o que, diante de tudo o que ainda precisava aprender,
até poderia ser visto como o menor dos seus problemas. Abandonada pela família
na infância, e alojada por um casal do bairro da Federação, em Salvador, ela
desconhecia tudo que não fosse a rotina dos Jaqueira Cruz.
A família foi
incluída, na última semana, na lista suja do trabalho escravo elaborada pelo
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para expor quem são os empregadores
acusados de submeter trabalhadores a condições análogas à escravidão. Junto aos
Jaqueira Cruz, estão os Spagnuolo e os Peluso Loureiro.
O MTE atualiza duas
vezes ao ano o cadastro e, agora, a Bahia responde por 69 dos 727 empregadores
brasileiros (entre eles famosos, como o cantor Leonardo) acusados de escravizar
pessoas - 35% são empregadores domésticos.
A pena para quem
submete trabalhadores à situação análoga à escravidão é de 2 a 8 anos de
reclusão. Mas, hoje, não há ninguém preso em regime fechado, na Bahia, pela
razão de negar salário, férias e descanso a alguém - alguns dos elementos que
configuram trabalho análogo à escravidão.
Desde 2020, as
denúncias relacionadas ao tema só crescem no Brasil: a quantidade de queixas
enviadas ao Disque 100, do Ministério de Direitos Humanos, cresceu 64% (3.430)
em 2023, quando 35 pessoas foram resgatadas na Bahia.
"Aos poucos vem
ocorrendo um processo de desnaturalização, pela sociedade brasileira, da super
exploração da trabalhadora doméstica; que as pessoas estão tomando consciência
da ilegalidade dessas condutas e da importância de denunciar", avalia a
auditora-fiscal do trabalho Liane Durão.
Nos casos de resgate
de trabalhadores domésticos, no entanto, nota-se como as vítimas “ficam mais
tempo em condição de exploração, comparados aos trabalhadores resgatados em
outras atividades”, completa ela.
“Esse tempo extenso de
exploração, inclusive, afasta uma conclusão que poderia ser tirada de forma
desavisada, de que esses casos de superexploração do trabalho doméstico são
recentes. Com certeza não, essas explorações não estão sendo iniciadas agora”, avalia
Durão.
As famílias flagradas
por fiscalizações de auditores fiscais do trabalho e do Ministério Público do
Trabalho (MPT) apresentaram uma justificativa em comum: a empregada, na versão
delas, era "da família" e por isso não recebia salário. O pretexto
afetivo que surge nas inspeções em residências, no entanto, não pode ser usado
para explorar e negar direitos.
“A fiscalização de
trabalho sempre apura essa mistura retórica da natureza das relações: as
pessoas estão trabalhando e sendo pesadamente exploradas, com uso desse
subterfúgio cruel que apela para o fato de que a pessoa, de fato, sente algum
afeto pelo explorado, mas ela é quem está se dando muito mal, sem acesso a
outras formas de socialização”, explica o professor de Economia da Universidade
Federal da Bahia Vitor Filgueiras, que pesquisa o tema e coordena o projeto
Vida Pós-resgate, uma parceria com o MPT voltada para vítimas de trabalho
análogo à escravidão.
<><> As
famílias que estão na 'lista suja':
• Família Spagnuolo: a exploração de uma
nativa da Ilha de Itaparica
A família Spagnuolo
gostava de veranear e celebrar datas comemorativas na casa da Ilha de
Itaparica. No aniversário de 74 anos de Giovani, o dono da casa com a esposa,
Noemia Correia, os dois precisaram de ajuda para organizar a festa. Depois de
pedir referências, o casal conheceu Jéssica* (nome fictício), uma nativa de 32
anos.
Os patrões disseram
gostar tanto dos serviços de Jéssica naquele dia que dispensaram o antigo
caseiro para encarregá-la, a partir dali, também de limpar a piscina e aparar a
grama. A nativa passou, então, a trabalhar diariamente em casa. Recebia R$ 20
por dia.
Em 2017, Jéssica
recebeu a proposta de dividir o mês entre a Ilha e o bairro de Vila Laura, em
Salvador. Noemia, servidora pública aposentada, estava com câncer e demandava
atenção extra. Conforme o estado de saúde da patroa piorava, mais tempo Jéssica
passava longe de casa.
A jornada de trabalho
começava às 6h e só terminava por volta das 20h30. Era a hora em que Giovani,
engenheiro civil de um órgão municipal, estava de volta do serviço.
O filho de italianos,
que ainda é dono de dois prédios na Federação, e a esposa nunca pagaram salário
para Jéssica. Os R$ 150 mensais prometidos foram depositados só nos primeiros
meses. Folga também não existia.
Jéssica só tinha
descanso quando os patrões saíam, raridades em que ela aproveitava para voltar
para casa. Em Salvador, ela não tinha amigos, nem familiares. Os patrões diziam
que ocupavam esses papéis - e que por isso não pagavam salário. Eram "família".
Durante a pandemia, um
vizinho desconfiou da situação de Jéssica. O homem estranhava ver aquela
mulher, na época grávida, fora de casa, responsável pelas compras.
“Foi aí que ela foi
contando a história dela, e ele entrou em contato comigo”, conta a advogada
Caroline Pinho. “Mas demorou um ano para que ela reconhecesse a gravidade.”
Um dia, Jéssica
arrumou a mochila, pegou a filha (que estava com 2 anos) e voltou para ilha. O
pretexto da viagem era a suposta celebração do aniversário da menina. A
advogada de Jéssica, então, iniciou o processo judicial contra a família e
acionou o MPT e o MTE. Durante a fiscalização, os órgãos identificaram trabalho
análogo à escravidão.
Em agosto deste ano, o
juiz do trabalho acatou a denúncia do MPT e condenou os Spagnuolo ao pagamento
de R$ 100 mil de indenização por dano moral. O valor é destinado a ações de
combate ao trabalho escravo organizadas pela instituição. O processo trabalhista
movido por Jéssica ainda está em curso.
Noemia faleceu em maio
deste ano, e a ação será respondida pelos três herdeiros dela e Giovanni.
Hoje, Jéssica vive do
Bolsa Família (R$ 600) e não pensa em retornar ao trabalho doméstico. No verão,
ela quer aproveitar o fluxo na ilha para vender comida na praia.
• Família Loureiro: condenada por
escravizar mulher por 44 anos
Os "Peluso
Loureiro" são um sobrenome conhecido no sul da Bahia, principalmente entre
Canavieiras, Itabuna e Porto Seguro. Os precursores dessa família são italianos
e portugueses que chegaram ao Brasil no fim do século 19 e deixaram herdeiros em
posições políticas e econômicas importantes, como fazendeiros.
Heny Peluso Loureiro,
falecida no ano passado, era uma delas. Possuía uma fazenda e morava em Porto
Seguro, próxima de dois filhos. Eles não eram, no entanto, seus únicos
companheiros. Ao lado dessa senhora, estava, quase sempre, uma mulher com quem
não tinha parentesco.
No ano passado,
auditores-fiscais do trabalho descobriram o que estava por trás dessa presença
tão constante de Maria (nome fictício) na vida daquela família. Uma denúncia
enviada ao MTE apontou que a mulher trabalhava em condições análogas à
escravidão.
Segundo a fiscalização
realizada na casa e os relatos colhidos, os auditores-fiscais do trabalho
constataram a existência da situação: Maria trabalhava ininterruptamente desde
a infância na casa, sem direito a folga, férias, salário, ou qualquer reconhecimento
de vínculo trabalhista.
Maria morou dos 7 aos
53 anos na casa de Heny. Há a suspeita de que ela não seja brasileira e tenha
sido deixada pelo pai, ainda pequena, em um abrigo em Canavieiras.
Foi lá que Heny
conheceu a garota e a levou para casa, de acordo com familiares dos patrões de
Maria.
Aquela senhora, no
entanto, não registrou a garota, nem iniciou os trâmites da adoção: emitiu uma
certidão de nascimento com nomes falsos de mãe e pai.
Maria cresceu junto
aos filhos de Heny. Mas as diferenças estavam postas. Eles, por exemplo,
estudaram. Ela não. Em quatro décadas, ainda de acordo com o MPT, os patrões
cometeram diferentes infrações, como induzir Maria a se submeter a uma cirurgia
de retirada do útero, após o diagnóstico de um mioma.
Na avaliação da
advogada da vítima, Marta Barros, Maria não compreendeu qual era seu problema
de saúde e o motivo de precisar retirar o órgão.
Os patrões, ainda
conforme o MPT, chegarem a solicitar benefícios sociais em nome de Maria - o
que levantou a suspeita da Prefeitura de Porto Seguro, depois de um cruzamento
de dados, e provocou uma reviravolta na história.
No fim do mês passado,
o MPT e os representantes do espólio da patroa e os dois filhos de Heny
firmaram um acordo. No documento, homologado pela Justiça do Trabalho, os
empregadores não reconhecem culpa.
Na versão deles, a
vítima era da família e, por isso, não precisaria ser paga. Os patrões terão
que pagar R$ 500 mil de indenização.
Maria está trabalhando
como empregada doméstica e iniciou os estudos. Os herdeiros não quiseram falar
a respeito.
• Família Cruz: acusada de explorar mulher
desde a infância
Nos anos 80, uma
professora recepcionou uma criança de 7 anos, em Salvador. A família da garota,
de Sergipe, não podia arcar com a criação dela, que foi abandonada na casa de
Edneia Cruz - no futuro, ela usaria essa história como pretexto para justificar
o trabalho doméstico realizado por quase cinco décadas, gratuitamente, pela
sergipana.
Desde criança, Lúcia
(nome fictício) foi responsabilizada pelo asseio da casa e qualquer demanda que
aparecesse, segundo o MPT. Enquanto crescia, a menina ganhava novas
responsabilidades, como cuidar dos filhos da patroa na casa onde todos viviam,
no bairro da Federação.
As outras crianças
estudaram, mas ela não. A patroa, que ensinava em uma escola privada de Ondina,
justificou o analfabetismo de Lúcia como "falta de vontade" dela.
Isso aconteceu em abril de 2022, quando a exploração contra e empregada foi denunciada.
Ela tinha 53 anos.
Os auditores-fiscais
de trabalho perguntaram a Lúcia sobre o que tinha acontecido nos 46 anos antes
daquela fiscalização.
Em uma das questões,
os servidores perguntaram: existe a possibilidade de um dia você acordar e não
querer realizar as tarefas domésticas? "Não", ela respondeu,
chorando.
Na vida em que passou
dentro da casa dos patrões, não sobrou espaço para Lúcia ter atividades e
relacionamentos externos. Ela não tinha amigos, nem nunca namorou.
A casa da família Cruz
é de dois pavimentos e tinha espaço para todos da família, mas Lúcia não tinha
um cômodo só para ela. Dividia o quarto com patrões - os últimos foram a neta
de Edineia e o namorado dela.
A mulher denunciada e
seu marido, Francisco, ofereceram outra versão. A relação com Lúcia, segundo
ambos, era filial. "Sempre viveu de modo igualitário com os demais
filhos", afirmou para os auditores e, depois, no decurso do processo
judicial movido contra ela.
Em abril de 2024, um
juiz penal condenou os dois acusados a três anos de reclusão, mas em regime
aberto. Agora, Lúcia descobre a liberdade. Está noiva e trabalhando com
carteira assinada.
Fonte: Correio
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