segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Luiz Marques: ‘Por uma política do cotidiano’

Circula na mídia corporativa uma agressiva campanha de marketing para descrever as virtudes dos proprietários de picapes, de uma determinada marca. Argumenta que: “Ser picapeiro não é sobre ter; é sobre ser. Somos aventureiros, únicos, família, empreendedores”. Leia-se, a posse da caminhonete não é uma questão de classe social, mas um dom espiritual / racial. “Temos coragem para ir além”. Assim, propagou-se o arianismo na Alemanha ao salientar a distinção dos alemães puros (arianos) em relação às etnias inferiores. Os comuns não compartilham a essência do ser, acomodam-se à pasteurização e ao anonimato da multidão. Não valorizam os laços de sangue e tampouco idolatram a iniciativa privada. O produto-significante transfere o significado heroico para os consumidores.

O convite sub-reptício para transcender reatualiza o discurso expansionista dos nazistas nas práticas neoliberais contra as regulamentações estatais. Se considerarmos que as peças publicitárias visam, em especial, o mercado dos agentes do agronegócio que percorrem grandes distâncias em estradas de chão batido, os quais defendem a “autofiscalização” em suas terras no que concerne ao equilíbrio ecológico; então se esclarece a ênfase para ir além das convenções. Estudos de semiótica de Roland Barthes auxiliam na compreensão dos símbolos linguísticos dos novos rebeldes a favor do sistema.

À propaganda interessa a gramática e o léxico dos grupos socioeconômicos. É no habitus para a construção da economia política que se encontram os traços do capitalismo nas classes sociais. A arrogância colonialista (racista) dos dominantes, o vetor da acumulação (o hiperindividualismo), a lógica do agro no campo (a plantação de soja que ataca os biomas, o desmatamento da Amazônia) e a ação predatória das megaconstrutoras nas cidades (os arranha-céus nas orlas, a financeirização de espaços de sociabilidade) são os signos da destruição que deixa um rastro de ruínas atrás de si.

A cotidianidade é o palco, por excelência, das contradições capitalistas que ameaçam a democracia. Em suma, é no nível da vida cotidiana que podemos julgar realmente uma sociedade. No Brasil, a presentificação dos 350 anos do passado colonial-escravista se observa na maneira como a classe média se dirige às caixas de um supermercado; ou na abordagem de menosprezo a um garçom no restaurante; ou na exigência supremacista de um “quartinho de empregada” nos apartamentos.

•        Coleira no pescoço

Na campanha eleitoral, em curso, a direita chama de “adensamento” a verticalização das urbes em regiões que dispõem de equipamentos (hospitais, escolas); um eufemismo. Estão subentendidos o abandono da periferia ao deus-dará e a aliança da administração do município com a especulação imobiliária com vista ao lucro. Os cuidados só aparecem nas comunidades periféricas, em eleições. Em Porto Alegre, após a tragédia climática, o prefeito bolsonarista Sebastião Melo (MDB) iniciou o asfaltamento de ruas em bairros atingidos pelas enchentes; como o quero-quero, canta sempre longe do ninho. A demagogia oculta a incúria e prejuízos patrimoniais, financeiros, psicológicos, morais.

Em São Paulo, em tom solene, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) declara aceitar o ex-ministro da Economia Paulo Guedes – do desgoverno no quadriênio miliciano – para uma secretaria no segundo mandato; se Jair Bolsonaro lhe pedir. A sabujice com a mediocridade e o negacionismo apenas não é maior do que a irresponsabilidade para com o povo da grande metrópole paulistana. Em um centro de fachada, Melo e Nunes militam com a coleira do status quo, no pescoço. Não buscam eleitores com propostas para, quiçá, cumprir as promessas desde sempre descumpridas; acenam com a velha sinalização para ressuscitar os fantasmas do “anticomunismo” – obrigatório no cardápio do medo.

A estratégia da direita e sua extrema recende os “vendilhões do templo”, de priscas eras. Combina a maquiagem e as fake news sobre a cotidianidade com o aceno à guerra cultural: “um político não se conhece pelo que promete hoje, mas pelo que fez ontem”, sentencia Olavo de Carvalho em seu site, Sapientiam autem non vincit malitia / “Contra a sabedoria o mal não prevalece”, homenagem ao apóstolo Paulo. A lembrança das ocupações do MTST lideradas por Guilherme Boulos (PSOL/SP) e a defesa dos Direitos Humanos, por Maria do Rosário (PT/RS), são ventiladas para a ideologização da procedência de esquerda disseminar o pânico da luta de classes. A saída do astuto labirinto está em evidenciar um projeto generoso que seja – qualitativamente – alternativo para a população.

Ao subtrair sua condição, les enfants terribles reiteram os preconceitos às mudanças. Apresentar mais do mesmo, como se a linha de separação entre a direita e a esquerda dependesse da quantidade de energia para alcançar objetivos idênticos, não funciona. Isso o conservadorismo consegue, sem mudar o que está aí. Potencializar o consumismo e a adaptação passiva à ordem adormece o espírito subversivo. No Sul global, no máximo, forma os românticos sem apreço pela organização política.

•        Faz como a aurora

As críticas moralistas ricocheteiam na armadura do populismo extremista. No redivivo “estado de natureza” hobbesiano o que importa é derrotar o inimigo. As vantagens amealhadas do Erário são troféus conquistados por minar os alicerces de eticidade do Estado de direito democrático, tido um bunker das “elites políticas”. É o que torna a atividade no Executivo e no Legislativo bom negócio para os cafajestes, cuja única vocação é se locupletar com elásticas vantagens nos cargos eletivos.

O Judiciário faz igual, com a caneta Mont Blanc para autorizar o aumento de salários e prebendas indecentes em causa própria. O paradoxo consiste na conversão da esquerda em apologista de um sistema podre, nas esferas de mando da República, em cada unidade federativa. O enaltecimento abstrato das instituições favorece a ideia de acumpliciamento com o establishment oficial. Na conta, entra a precarização do trabalho legalizada na aprovação da Reforma Trabalhista e Previdenciária pelo governo do golpista Michel Temer, e a lei das terceirizações celebrada pelo atual presidente da Suprema Corte Luís Roberto Barroso. O garrote “contra a radicalização” sufoca toda indignação.

O risco é fazer desaparecer a crítica da vida cotidiana para não parecer radical, abdicando de outra possibilidade de existência individual e coletiva para não receber a pecha de utópico. O resultado é o aval silencioso à reprodução das estruturas que acirram o mal-estar da civilização e os sacrifícios hercúleos para colocar a comida na mesa. Ao fazer da cotidianidade um sinônimo da imediatidade neoliberal, a alienação barra a consciência para lutar por uma nova realidade. Em termos marxistas, implica dissociar o indivíduo do “pertencimento à espécie humana”, o que gera a subcidadania.

Retomar a ética na política é propor uma reestruturação plena da vida cotidiana. Esse é o dever de uma nova esquerda, de fato e de direito. Os ideais igualitários não se resumem nas realizações econômicas, antes se exprimem na transformação da diuturnidade das tarefas dos trabalhadores, dos sentimentos e dos desejos. O aumento da representação “identitária” nas instâncias parlamentares é um grito de libertação da cotidianidade em face dos grilhões que prendem pessoas na imediatidade. Combater o sofrimento é interpelar oprimidos e explorados para qualificar a sua / nossa existência.

Conforme sublinha Agnes Heller, em La théorie des besoins chez Marx / A teoria das necessidades em Marx: “O socialismo não é somente a sociedade economicamente mais justa, é a sociedade que permite uma vida diferente”. Exercitar a imaginação com base nas experiências do dia a dia é o caminho para desconstruir o mundo artificial criado pelo marketing neoliberal e conservador, com a ajuda dos cães de guarda da mídia parceira dos poderosos. A história não submerge o cotidiano.

Um programa político e ideológico para mudar a sociedade deve também mudar a vida, e vice-versa. Humanizar uma é humanizar a outra; coisa que o neofascismo não pode e não pretende. Tal é o compromisso da esquerda que ousa dizer seu nome, e avança sem medo de ser feliz. Vem, segue o conselho do poeta, e faz como a aurora quando nasce: “Tira o lenço vermelho e agita-o ao vento”.

 

•        A despolitizacão da justiça é uma pauta histórica da esquerda. Por Jorge Folena

Na primeira década do século XXI, o campo democrático, popular e progressista teve importante predomínio político em governos e parlamentos na América do Sul. Assim foi na Venezuela, no Equador, na Bolívia, na Argentina, no Uruguai e no Brasil.

Nesses países, a classe dominante tinha como força auxiliar, entranhada na estrutura do Estado, o Poder Judiciário, que ao lado da Forças Armadas e da burocracia, é uma instituição historicamente oriunda do antigo regime feudal-absolutista que, mesmo não dispondo de representatividade – pois tem relativa autonomia administrativa e política, adaptou-se (como “o leopardo” de Tomaso di Lampedusa) plenamente às necessidades do Estado liberal, a fim de servir aos controladores do poder político.

Assim, os governos populares e democráticos, ao longo da implementação de suas políticas públicas, sofreram violenta interdição, por meio de decisões judiciais que invadiam a esfera de competência dos Poderes Executivo e Legislativo.

Em 2012, o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, diante de um forte cenário de politização da justiça, assim falou: “o político superou o jurídico. O direito tem de se adaptar à vida e não a vida ao direito.”

Naquela oportunidade, os veículos de comunicação da classe dominante incensavam o Poder Judiciário, por eles considerado indevidamente o “poder do século XXI”, afirmando que “sem um judiciário independente e eficaz não existe adequado controle do poder e, por conseguinte, efetiva garantia de respeito aos direitos humanos”.

Isso também era afirmado por certos setores da esquerda no Brasil, que defendiam que a garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988 somente poderia ser alcançada pela força do Poder Judiciário.

Assim, naquela época, muitos juízes deferiram medidas liminares que atrapalharam governos como o do então prefeito de São Paulo, professor Fernando Hadadd, que chegou a afirmar que a judicialização da política impedia a implementação de políticas públicas na sua cidade.

Entre 2009 e 2011, o STF promoveu o festival de perseguições políticas ao longo do julgamento mediático do “mensalão”, que era transmitido quase que diariamente pelos canais de televisão, controlados pela classe dominante, para criminalizar a política e, particularmente, o partido dos trabalhadores.

Em 2013, a presidenta Cristina Kirchner encaminhou ao congresso argentino projetos de lei para democratizar o Poder Judiciário, tendo afirmado que “a través de presentar medidas cautelares se interrumpe la aplicación de leys”. Cristina Kirchner tomou essa iniciativa porque, após o parlamento argentino aprovar a importante “lei dos meios”, que regulamentava o controle econômico das empresas de comunicação social, uma medida liminar suspendeu a eficácia da lei, aprovada em 2009 após amplo debate político na sociedade.

Naquele mesmo ano, a Suprema Corte argentina julgou inconstitucional a lei 26.855, que ampliava de 13 para 19 o número de membros do Conselho da Magistratura e determinada que 12 deles seriam escolhidos pelo voto direto da população. O argumento de inconstitucionalidade era de que “a proposta feria o princípio da separação de poderes”, que, na verdade, é um instrumento de controle político, empregado pela classe dominante para manter o controle efetivo da estrutura do estado liberal. Importante registrar que o único juiz que votou favorável à constitucionalidade da referida lei foi o jurista Eugenio Raúl Zaffaroni.

Ainda em 2013, houve no Brasil um debate semelhante, com o Partido dos Trabalhadores e suas lideranças questionando o comportamento político do Poder Judiciário. Num embate entre o deputado Marco Maia do PT/RJ e o então presidente da Câmara dos Deputados com Joaquim Barbosa, presidente do STF na época, este último, para reafirmar a autoridade do Tribunal, manifestou que “no Brasil, para qualquer assunto que tenha natureza constitucional, a palavra final é do Supremo Tribunal Federal (...) Não tenho nada mais a dizer.” Em resposta ao presidente do STF, Marcos Maia disse que “o Poder Judiciário tem se arriscado a interpretações circunstanciais da Constituição”, o que exigiria uma postura enérgica do Poder Legislativo.

Dentre deste cenário, em que a politização da justiça impedia as ações políticas do campo popular, democrático e progressista, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou parecer favorável à PEC 33/2011, de autoria do deputado Nazareno Fonteles, do PT/PI, que estabelecia que deveria ser submetida a reexame pelo Congresso Nacional a decisão judicial que declarasse inconstitucional uma emenda à constituição, na medida em que a soberania popular efetiva reside não no poder judiciário, mas no parlamento e, assim, os representantes do povo é que devem efetivamente “dizer o que é a Constituição”.

Curiosamente, no dia 24 de abril de 2013, quando foi aprovado o parecer pela constitucionalidade da PEC 33/2011, pela CCJ da Câmara dos Deputados, o ministro Gilmar Mendes deferiu medida liminar suspendendo o processo de votação do Projeto de Lei 14/2013, da Câmara dos Deputados, que estava em curso no Senado Federal, depois de aprovado pela Câmara, que tratava da transferência de parlamentares para outros partidos na mesma legislatura, de verbas do fundo partidário e da propaganda eleitoral.

É importante lembrar que o mesmo ministro Gilmar Mendes, pressionado pela classe dominante e seus tentáculos inseridos nos meios de comunicação empresarial, em 2016 deferiu medida liminar impedindo a nomeação de Luís Inácio Lula da Silva como ministro da Casa Civil, tentativa da presidenta Dilma Rousseff de frear o “golpe com Supremo e tudo”, que culminou no seu impeachment.

Como se pode verificar, as lutas pela democratização do Poder Judiciário e contra seus eventuais abusos constituem uma antiga bandeira empunhada pelo campo popular e progressista, o que mais sofre as perseguições impostas pela classe dominante.

Ocorre que, em decorrência das medidas de enfrentamento ao fascismo no Brasil e da ameaça representada pelo governo de 2019-2022, que tentou impor uma ditadura no país, a bandeira da despolitização da justiça e da reforma democrática do Poder Judiciário foi deixada de lado pela esquerda.

Ao mesmo tempo, essa pauta foi sequestrada pela extrema-direita, que ataca o sistema de justiça para tentar concretizar seus projetos de poder e ameaça cassar magistrados que simplesmente cumpriram a Constituição e trabalham para promover a responsabilização dos que tentaram dar um golpe de estado em 08 de janeiro de 2023.

Contudo, a esquerda precisa retomar esse processo de luta histórica pela reformulação do Poder Judiciário, nos moldes do que está ocorrendo no México, cujo Parlamento aprovou lei para que os integrantes do poder judiciário sejam eleitos diretamente pela população. Precisamos nos reapropriar dessa pauta, necessária para oxigenar um poder essencialmente burocrático, até aqui empregado para a repressão da classe trabalhadora e a serviço da classe dominante, que joga negros e pobres aos milhares num sistema penitenciário já declarado pelo STF como um “estado inconstitucional de coisa”, que serve não apenas para “limpar” a sociedade, mas também para afastar, sempre que necessário, importantes dirigentes políticos do campo democrático, popular e progressista.

Por tudo isto, entendo que a pauta da revisão do Poder Judiciário não pode ser interditada em decorrência dos posicionamentos apresentados pelos fascistas, devendo ser retomada por uma esquerda aguerrida e sem medo de encaminhar as necessárias discussões com a sociedade e todo o meio político.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Brasil 247

 

Nenhum comentário: