Brasil: Assim os jornalões incensam o
genocídio
No dia 27 de setembro
deste ano, Lourival Sant’Anna publicou no Estadão um artigo intitulado “Boicote
do Brasil ao discurso de Netanyahu é amostra dos ressentimentos antiocidentais
de Lula”. O jornalista, que, para além do mencionado veículo, também faz análises
para a CNN Brasil, apresenta-se como um grande campeão na luta pela democracia
e liberdade. Trata-se, com efeito, de um grande defensor dos nobres valores
ocidentais. As reflexões do colunista foram publicadas três dias após o
discurso do presidente da República na abertura do debate dos chefes de Estado
e de governo da 79ª edição da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), que
ocorreu em Nova York. Na ocasião, o chefe do Executivo brasileiro dirigiu-se
“em particular à delegação palestina, que integra pela primeira vez essa sessão
de abertura, mesmo que ainda na condição de membro observador” (Agência Gov, 24
set. 2024). Além disso, no dia seguinte, Lula da Silva denunciou, com
veemência, o massacre em curso em Gaza: “acho que os países que dão sustentação
ao discurso do primeiro-ministro Netanyahu precisam começar a fazer um esforço
maior para que esse genocídio pare” (CNN Brasil, 25 set. 2024).
Para Sant’Anna, o
posicionamento do Brasil, que se juntou a outras nações, como Chile, Colômbia,
Irã, Guiné-Bissau e Turquia, e se recusou a ouvir o discurso hitlerista do
líder israelense na ONU, não é apenas um sinal de fracasso diplomático, mas
também uma grande afronta ao Ocidente. De acordo com o equilibrado democrata,
esses países revelam grande hipocrisia, já que não saíram durante o discurso de
Vasily Nebenzya, embaixador da Rússia, de Vladimir Putin. Um verdadeiro
absurdo, porquanto Netanyahu estaria num patamar cívico, moral e humano
superior a Putin: “diferentemente de Putin, Netanyahu defende seu país da
ameaça real, não imaginária, de inimigos a seu redor” (Estadão, 27 set. 2024).
Ora! Aquele que
critica a hipocrisia e a seletividade no momento de uma condenação é o mesmo
que apresenta as ações de Israel, que deixam milhares de civis mortos,
mutilados e desabrigados, como um ato de defesa! Não apenas isso: procuramos,
sempre sem sucesso, em outras análises do jornalista uma denúncia aos crimes de
Israel. Encontramos somente louvor e glorificação às ações de inteligência e
estratégia das tropas e agências israelenses – as quais resultam em grande
aniquilação e morticínio de civis.
Contudo, Sant’Anna não
está solitário em suas críticas ao posicionamento de Lula na ONU. Também no
Estadão, podemos ler na coluna de Andrés Oppenheimer: “Os patéticos discursos
de Lula e Gustavo Petro na Assembleia-Geral da ONU”. Na verdade, as opiniões institucionais
do mencionado veículo demonstram grande preocupação com o posicionamento do
presidente da República em Nova York: em “O umbigo de Lula”, lemos: “o Brasil
poderia erguer pontes entre o Ocidente e o Oriente, entre ricos e pobres. Mas
essas possibilidades foram pulverizadas pelo narcisismo, o cinismo e o
sectarismo de Lula” (Estadão, 27 set. 2024). As chamadas são bastante curiosas,
como estamos vendo. Dois dias antes de se falar do “umbigo”, já se dizia que o
representante brasileiro seria “Um santo do pau oco na ONU”. Para o jornal, “o
Brasil poderia ter legitimidade para influenciar rumos da ordem internacional.
Mas sem coerência não há credibilidade. Lula passa lição de moral na ONU sem
fazer a lição de casa no Brasil” (Estadão, 25 set. 2024).
Não paramos por aqui.
Uma semana após o discurso de Lula nas Nações Unidas, o mencionado órgão da
imprensa continua: “Papelão do Brasil na ONU”: “arrastado pelos ressentimentos
antiocidentais de seu presidente, o Brasil abandona sua independência diplomática
e seus valores democráticos para se alinhar ao eixo liderado por China, Rússia
e Irã” (Estadão, 1 out. 20224). Os editoriais do jornal paulistano nos fazem
perceber a sintonia existente com os colunistas independentes. A opinião
oficial, publicada em primeiro de outubro, nos leva de volta ao argumento de
Lourival Sant’Anna: o presidente da República não estaria sendo imparcial no
xadrez geopolítico – pior ainda: estaria tomando posicionamento que agridem
valores democráticos e liberais; segue na contramão dos valores ocidentais.
Vejamos mais:
Sob o governo Lula, o
Brasil abandonou quaisquer vestígios de independência na polarização
geopolítica entre o eixo autocrático sino-russo-iraniano e as democracias
ocidentais. A Assembleia Geral da ONU explicitou esse alinhamento. Sua imagem
mais reveladora foi o boicote da delegação brasileira ao discurso do premiê
israelense, Benjamin Netanyahu.
Estamos na presença de
uma construção de um mundo bipolarizado: Ocidente X Oriente. Bem versus mal. As
guerras só ocorrem devido à inclinação ao terrorismo existente no Oriente Médio
e no “Mundo Árabe”. Não há complexidades, não há interesses econômicos,
políticos e geoestratégicos por parte do Ocidente – Estados Unidos e Otan nada
têm a ver com essa história. As coisas funcionam de modo bem simples: Rússia,
China e Irã liderariam o bloco da perversidade, do caos e do terrorismo,
enquanto o Ocidente combate esse mal em nome da democracia, da liberdade e da
segurança da humanidade. No Oriente, teríamos um grande e poderoso aliado –
Israel –, o qual, embora cometa alguns erros, os faz em nome de sua segurança e
soberania. Não apenas isso: Israel teria, nesse sentido, um papel de guardião,
em primeira mão, da própria Europa: se não fosse esse Estado, o que o Irã,
Síria e os seus grupos terroristas não estariam fazendo? Demos mais uma vez a
palavra ao grande jornal:
No discurso que a
comitiva brasileira não ouviu, Netanyahu pode ser criticado por mais uma vez se
esquivar de uma estratégia política para o futuro das relações entre Israel e
Palestina. Dito isso, Israel vem sendo reprovado por “escalar” os conflitos no
Oriente Médio, mas a escalada começou há um ano, com o ataque do Hamas a
Israel. Ato contínuo, outros grupos patrocinados pelo Irã iniciaram agressões,
listadas por Netanyahu: mais de 8 mil foguetes lançados pelo Hezbollah,
centenas de ataques com drones dos houthis do Iêmen, dezenas de ataques das
milícias xiitas da Síria e Iraque, além das centenas de drones e mísseis
lançados pelo próprio Irã. Ainda há mais de 100 reféns israelenses cativos do
Hamas e mais de 60 mil israelenses evacuados em razão das agressões do
Hezbollah (Estadão, 1 out. 2024).
Estamos na presença de
um duplo – para utilizar um termo caro a Edward P. Thompson – reducionismo
crasso. Para não falarmos em impudência e desfaçatez! Ora! De um lado,
denuncia-se que com a volta de Lula à Presidência, o Brasil teria perdido a sua
independência e imparcialidade – como se esta última pudesse existir diante de
morticínio de civis. Além disso, ignora-se, no mínimo, o alinhamento político
internacional do último governo, só para ficar no passado recente. Na outra
ponta, é apagado, deliberadamente, da análise do jornal um ano de aniquilamento
israelense em Gaza. Não há – nunca houve! – milhares de crianças e mulheres
palestinas mortas. Escolas, casas, ambulâncias, infraestruturas e hospitais não
foram sistematicamente bombardeados pelo Estado de Israel desde a “escalada”,
da qual fala o editorial. Nesse sentido, é preciso redirecionar as observações
de Jamil Chade encaminhadas aos Estados Unidos para o grande veículo liberal:
o governo americano há
muitos meses [diz]: “olha, não queremos uma escalada. Estamos alertando as
partes para que não haja uma escalada”. O que os árabes me contam…. o que os
diplomatas me contam, até com uma certa ironia, mas com muita irritação, é que essa
mensagem só serve para os árabes, porque para Israel essa contenção… essa
moderação, aparentemente, não serve. Porque, claro, o governo israelense não
faz uma operação, como a que fez esta noite no Líbano, não faz um ataque à
periferia de Beirute e mata o líder do Hezbollah, sem pelo menos avisar ao seu
grande aliado americano (Canal UOL, 1 out. 2024).
Não apenas o Estadão
tem romantizado ou ignorado o terrorismo israelense. Quando Israel criou
“homens bombas” involuntários no Líbano, ao inserir explosivos em equipamentos
de comunicação e explodi-los indiscriminadamente, lia-se na imprensa:
“Impressionante operação”, “Sucesso” e “triunfo tático” – todos esses termos
utilizados para se referir a uma ação terrorista que deixou milhares de feridos
(muitos perderam a visão ou tiveram membros amputados) e dezenas de mortos –
inclusive crianças. Além desse ar de louvor, o acontecimento foi tratado com um
toque de curiosidade: “o que são pagers?”; “Como foi a explosão dos pagers?”;
“como Israel teria criado empresa de fachada para colocar explosivos nos pagers
do Hezbollah?” – não somente militantes desse partido foram mortos e feridos de
maneira indiscriminada. As chamadas comportam-se, ainda, como se as explosões
fossem meros incidentes: “após pagers, ‘walkie-talkies’ do Hezbollah explodem
em Beirute e no sul do Líbano; 20 morrem”. (Ver: BBC NEWS Brasil, 18 set. 2024;
O Globo, 18 e 19 set. 2024; G1, 17 set. 2024).
Nesse sentido, é o
experiente e eloquente jornalista Kennedy Alencar quem demonstra evidente
indignação com a cobertura do conflito no Oriente Médio feita pela grande
imprensa brasileira:
o que está acontecendo
ali é terror de Estado. Terrorismo de Estado eu reputo como mais grave que o
terrorismo puro e simples, porque é um Estado agindo como terroristas agem. É
isso que está acontecendo… é isso que a gente viu em Gaza (…). Temos um governo
agindo com método terrorista, e isso a gente tem que condenar. Não dá para
falar “o grupo extremista Hezbollah” e assim: “as Forças de Segurança de
Israel”, “os ataques” – “os ataques” de quem? Do governo extremista de Israel,
não é? Está muito claro. “Ah! A explosão dos pagers no Líbano”. Não foi uma
explosão espontânea”. Aquilo foi um ataque. É importante deixarmos isso claro
(Canal UOL, 1 out. 2024).
Observamos, dessa
forma, que jornalistas de longa data e que tiveram passagens em diversos
veículos da grande imprensa têm demonstrado insatisfação com a tentativa de
demonizar as vítimas e romantizar e maquiar o sangue derramado no mundo árabe
por parte de Israel. The Intercept Brasil denunciou: “a mídia transforma a
população do Líbano em terrorista para justificar Israel”. Mais ainda:
“imprensa chama bairros de Beirute de ‘redutos do Hezbollah’ enquanto a guerra
expansionista de Israel massacra civis” (The Intercept Brasil, 20 set. 2024). A
ação Israelense foi, no limite, apresentada como um ataque. As ações do
Instituto de Inteligência e Operações Especiais, o Mossad, e de outras divisões
são retratadas como aventuras hollywoodianas. Buscamos, sempre em vão, nesses
textos e mesmos nas reflexões de colunistas e comentaristas – muitos dos quais
se apresentam como campeões da luta pela democracia e contra o terrorismo – uma
denúncia ou reprimenda contra tal ato de terrorismo. O termo inexiste na
linguagem da grande imprensa brasileira quando se trata de caracterizar as
ações de Israel, dos EUA e seus aliados. Na verdade, foi o grupo alvo do ataque
o representado como extremista.
Perante milhares de
indivíduos mutilados, crianças e mulheres perdendo mãos, braços e mesmo a
visão, ambulâncias em alta velocidade, cenas de funerais, pânico social, mortes
e ferimentos, jornalistas estão preocupados em falar sobre o uso e
funcionamento de pagers e walk talks há algumas décadas. Para que houvesse uma
condenação ao terrorismo na imprensa brasileira só se o ataque fosse desferido
por algum grupo armado do “Mundo Árabe” e se tivesse como alvos Israel, EUA ou
a Europa. Só haveria perplexidade e alarde se o presidente da República se
posicionasse, como o fez em fevereiro deste ano, quando comparou, de maneira
acertada, as ações de Israel em Gaza à atuação do Terceiro Reich. Lembremos
que, já naquela altura, a mídia apresentava o massacre em curso contra o povo
palestino como “resposta de Israel” – “Lula compara resposta de Israel em Gaza
à ação de Hitler contra judeus” (G1, 18 fev. 2024). Perto de completar um ano
de terror em Gaza, as denúncias de Lula permanecem sendo apresentadas com toma de
crítica ou reprimenda: “Lula volta a dizer que Israel comete genocídio e
critica Netanyahu” (CNN Brasil, 25 set. 2024).
Um dos grandes
argumentos de jornalistas e convidados pelos mais diversos jornais – do Jornal
da Cultura a Globonews – é que “a única democracia na região é Israel, o resto
é ditadura”. São nesses termos que se pronuncia Marco Antonio Villa na bancada
do Jornal da Cultura (JC, 18 out. 2023). O historiador enfatiza que essa é uma
informação importante e que deve ser lembrada. Uma série de analistas segue tal
narrativa. Um país, cujo regime é uma democracia liberal, estaria num patamar
moral e civilizacional superior a outros, sobretudo aqueles cujo governo é
“teocrático” e “monárquico”. Ao evocar que “Israel é a única democracia do
Oriente Médio”, os comentaristas apontam para uma legitimidade e razão prévia
deste país em relação a outros na região. Imediatamente, aqueles países não
“democráticos” são postos sob suspeição – são autoritários, com uma inclinação
política à guerra e mesmo ao terrorismo.
Há raízes mais
profundas. “No centro da ideologia hoje dominante há um mito, chamado a
glorificar o Ocidente e, em particular, seu país-guia [os EUA]” – escreve
Domenico Losurdo, em Democracia ou Bonapartismo –, “é o mito segundo o qual o
liberalismo teria gradualmente se transformado, por um impulso puramente
interno, em democracia, e numa democracia cada vez mais ampla e mais rica”
(LOSURDO, 2004, p. 9). Com efeito, ao se alvoroçar em “lembrar” que Israel é
uma democracia, os analistas movimentam-se no sentido de reforçar o seu vínculo
com o Ocidente, com o liberalismo e com a “superioridade civilizacional”.
Continuemos com
Losurdo. Este filósofo italiano, em Contra-História do Liberalismo, nos mostra
como os maiores defensores da liberdade eram os que mais lucravam com a
escravidão; os que lutavam por políticas para privar negros e pobres do acesso
pleno à cidadania. Não apenas os sujeitos. A Holanda, “país onde ocorre prólogo
das sucessivas revoluções liberais”, no século XVIII, “é sinônimo de escravidão
particularmente cruel”. O primeiro país a entrar no caminho do liberalismo é o
país que revela um apego particularmente ferrenho ao instituto da escravidão.
Junto com a Holanda constituem o mundo liberal-escravagista a Grã-Bretanha e
outras nações europeias: “o que contribui de forma decisiva para o crescimento
da escravidão, sinônimo de poder absoluto do homem sobre o homem, é o mundo
liberal”. Mais ainda: “a escravidão na sua forma mais radical triunfa no século
de ouro do liberalismo e no coração do mundo liberal” (LOSURDO, pp. 31-39).
As nações democráticas
e liberais, as quais são postas num patamar civilizacional e moral superior aos
demais pela grande imprensa brasileira, são as mesmas que se apresentam como
campeãs na luta contra o terrorismo. Não apenas isso: a linguagem do império
buscou apresentar todos os seus inimigos – os quais deveriam ser fisicamente
aniquilados – como terroristas. Fala-se em terrorismo “apenas se o ataque for
organizado a partir de baixo, apenas se seus perpetradores não tiverem poder”
(LOSURDO, 2007, p. 25). É desse modo que procura argumentar a linguagem
dominante. Essa linguagem, acentua Losurdo, constituiu-se ao longo do tempo não
apenas a partir dos discursos políticos e da abordagem da grande imprensa
comercial, mas até por historiadores e outros estudiosos que apresentaram de
forma romântica e cheia de omissões as ações dos EUA e dos seus aliados no
Ásia, África e América Latina.
Ao longo do século XX
as tentativas da CIA de eliminar os rivais dos Estados Unidos, como Stalin,
Lumumba, Sukarno e, repetidas vezes, Fidel Castro, nunca foram denunciadas como
ações terroristas, mesmo quando se entendia “terrorismo individual” como o ataque
a determinada autoridade política. Do mesmo modo, ao falar-se em “terrorismo de
massa” só entra em cena o morticínio de 11 de setembro. Ignora-se a história.
Mesmo compreendendo “terrorismo de massa” pelo desencadeamento da violência
contra a população civil para atingir determinados objetivos políticos e
militares, a aniquilação nuclear de Hiroshima e Nagasaki não é apresentada como
tal.
Portanto, o que temos
assistido na grande imprensa comercial brasileira é um forte posicionamento no
sentido de legitimar o poder e as ações dos EUA, Israel e os seus aliados –
sempre demonizando os povos e países árabes, quando não romantizando ou ignorando
as suas dores. Nesse sentido, o presidente do Brasil, que busca, por meio de
sua projeção, criticar os massacres e genocídios cometidos por essas nações
democráticas e liberais, é o alvo central das opiniões, análises e editoriais
dos grandes jornais.
É verdade que esses
veículos não são homogêneos. Encontramos, com efeito, vozes dissonantes,
análises críticas e plurais, nas quais buscam fugir de uma perspectiva
maniqueísta e simplória. No entanto, a linguagem dominante parece buscar
atender os interesses das grandes potências democráticas.
Fonte: Por Osnan Silva
de Souza, em Outras Palavras
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