‘A educação, historicamente, sempre foi
pautada pela luta’, diz pesquisador
Nesta entrevista, o
pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Política
Educacional e Trabalho Docente Alexandre Duarte discute os retrocessos nos
indicadores de valorização do trabalho docente no país nos últimos anos, fala
dos efeitos da pandemia que ainda perduram sobre o trabalho dos professores da
educação básica e responde se há algo a se comemorar nesse Dia do Professor, no
dia 15 de outubro.
Confira a entrevista a
seguir:
• O ano de 2024 marca uma década desde a
entrada em vigor do Plano Nacional de Educação (PNE), que foi prorrogado até
2025. O documento é emblemático da dificuldade em avançar em indicadores de
qualidade e acesso na educação pública no período, com a grande maioria de suas
metas não cumpridas ao final de sua vigência, entre elas as metas que dizem
respeito à valorização do trabalho docente. Segundo balanço desse ano da
Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o contingente de docentes ocupantes
de cargos de provimento efetivo encolheu 11,5% desde 2014; já entre 2018 e 2021
houve uma queda no percentual de estados e municípios que cumpriam a lei do
piso salarial do magistério (de 70,4% para 59,3% entre os estados e de 74,2%
para 60,1% entre municípios). Na prática isso significa que os professores
brasileiros, em média, passaram a ganhar menos e ter vínculos mais precários.
Quais os principais fatores que explicam a dificuldade em avançar na
valorização docente no período?
Temos que ter em mente
que a profissão docente na educação básica se realiza sobretudo no setor
público: cerca de 80% da matrícula na educação básica está alocada nas escolas
públicas. E dado isso, temos que pensar que valorizar uma profissão que está majoritariamente
alocada no setor público se dá basicamente por meio de política pública. Quais
fatores que podem explicar essa dificuldade de avançar, sobretudo nesses
últimos anos de realização do último PNE? Podemos de imediato afirmar que houve
uma ruptura mesmo com o ciclo de compromissos com as políticas de valorização
que os professores estavam construindo até cerca de 2015, 2016. Então, a gente
tem, por exemplo, a lei do piso em 2008, a construção do PNE, que se arrastou
entre 2010 e 2014 justamente por ter uma ampla participação de atores da
sociedade civil, de instituições representativas do professorado, onde se
destaca a CNTE, a Confederação Nacional dos Trabalhadores de Educação, e a
própria academia, por meio das suas associações, como a Anped [Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação], a Anfope [Associação
Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação]. A gente observa que os
governos que ascenderam a partir de 2016, após o impeachment da presidente
Dilma [Rousseff], buscaram minar pouco a pouco esses espaços de participação da
sociedade civil e sobretudo das instituições representativas do professorado
nesses processos de tomada de decisão, que a duras penas estavam sendo
conquistados. Como exemplo temos entre 2017 e 2018 a reconfiguração do Fórum
Nacional de Educação, no governo [Michel] Temer, que muda sua composição,
diminuindo os espaços de participação da sociedade civil e das instituições
representativas do professorado. Essa manobra é muito sintomática disso que eu
estou falando, porque o FNE foi criado em 2010 com o propósito, sobretudo, de
acompanhar e avaliar o PNE. É muito sintomático a gente observar que o PNE não
alcança essas metas de valorização, bem como as outras metas que também que não
foram alcançadas. E de 2018 para cá a gente tem esse avanço de governos mais
alinhados à extrema-direita, com esse alargamento do quadro de redução desses
espaços de debate qualificado. Nesse período o Ministério da Educação vai
fomentar um discurso de muito ataque à educação, aos professores, ao currículo.
Então, a gente vai ter essa ascensão mesmo das pautas conservadoras, que além
de limitar esse espaço de participação, vão também descredenciar um pensamento
crítico, que é um motor de transformações sociais; vão descredenciar o próprio
trabalho do professor.
• E qual o cenário hoje quanto à
reconstrução desses espaços de diálogo?
Na educação a gente
tem o Ministério da Educação e todas as instituições nessa instância que
coordenam uma legislação a nível nacional, mas também há os níveis subnacionais
que são autônomos para definir as suas políticas e que vão estar aí à mercê dos
governos que ascendem localmente. Pensando no nível federal, a gente observa
que há um movimento de retomada desse ciclo que eu falei que foi rompido. O
governo atual revogou as portarias que reconfiguravam o FNE e voltou aquilo que
era anteriormente, retomando os espaços ampliados para essa discussão. A gente
vê um olhar mais atento a algumas políticas sociais, que não estão descoladas
da educação. A gente pode dizer que existe um movimento que favorece a retomada
desse ciclo que foi rompido. Não dá para falar que está sendo concreto, porque
a gente tem muita coisa ainda a ser feita para retomar aquilo que se estagnou,
mas de fato existe uma abertura maior. Contudo, esse movimento de avanço, de
governos alocados no espectro mais à direita, extrema direita, se realiza
também nos níveis subnacionais, e independente desse movimento no nível macro,
os níveis subnacionais são altamente influenciados pelos seus governos locais.
Então o que eu poderia te afirmar é que a gente tem toda sorte de cenários
derivados desse tipo de organização da educação brasileira, que vai desde
modelos mais progressistas, que abrem espaços locais para discussão mais
ampliada de políticas que favoreçam a valorização profissional docente a outros
que já vão na direção contrária. A gente fala de Minas Gerais, um estado em que
a gente tem algo muito próximo ao que a Campanha observa a nível nacional. Um
modelo que de fato abre pouco espaço para a discussão pública acerca desse
fenômeno. Se você fecha o espaço de discussão para os próprios professores, que
são objeto da política, a chance disso [dos indicadores de valorização] avançar
se reduz muito.
• Segundo o mesmo balanço do PNE 2024, o
período de pandemia da covid-19 foi responsável por uma agudização do
retrocesso identificado no período em relação ao trabalho docente. Em que
medida a pandemia foi uma mudança de chave no sentido de uma precarização das
condições de trabalho dos professores no país? De que maneira seus efeitos
ainda podem ser sentidos hoje?
A pandemia de fato é
um marco não só na docência. Em toda estrutura social a gente vê que os efeitos
socioeconômicos da pandemia ainda perduram. Na profissão docente isso não foge
à regra, sobretudo pelo fato de que, se a gente observa o impacto dessa retração
econômica, sobretudo na sociedade, a gente vê que o impacto sobre a população
feminina foi maior. Isso eu falo com base mesmo na PNAD [Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios, do IBGE]. A docência não fica longe disso, sobretudo
pelo fato de que cerca de 80% dos professores hoje da educação básica são do
sexo feminino. Então, o efeito estrutural recai sobre a profissão também de
sobremodo, sobretudo por essa sobrerrepresentação feminina do corpo docente.
Mas com relação à profissão em si, para além desse efeito estrutural, que está
associado também às metas de valorização do PNE, a gente vai observar um
alargamento daquilo que hoje chamamos de ‘plataformização’ do ensino. Tivemos
um aceleramento desse processo. A gente pode até ter um entendimento dos ganhos
do uso das tecnologias de informação e comunicação digitais no ensino. Mas os
seus prejuízos são justamente a diminuição, na falta de uma palavra melhor, da
autonomia desse professor dentro do seu processo de trabalho. Quero dizer que a
‘plataformização’, o uso que vem se alargando dessas plataformas, sobretudo com
um igual alargamento de atores privados dentro da educação básica, vem, de
certa forma, aumentando aquilo que alguns teóricos chamavam de performatividade
do professor. A substituição desse profissional em si por currículos
extremamente enrijecidos. Então, o professor passa a ser mais um tutor do que
propriamente um professor. Se valoriza a transmissão de conteúdos curriculares,
em detrimento de uma formação emancipatória do indivíduo, de uma formação
cidadã, de uma preparação desse indivíduo para viver em sociedade. Essas
plataformas de certa forma vão minando essa autonomia do professor. E isso vai
refletir na questão da valorização. De certa forma, esse modelo é um pouco o de
substituir esse professor por essas plataformas. Substituir entre aspas,
obviamente, porque o trabalho docente tem suas peculiaridades. Pode não
substituir, mas vai deslocando o espaço de atuação desse professor. De um
professor para um tutor, que vai mais orientar do que propriamente ensinar. Um
legado da pandemia é justamente esse.
• Uma marca do debate educacional no país
nos últimos anos tem sido a questão das investidas conservadoras associadas a
pautas como a chamada ‘ideologia de gênero’ e grupos como o Escola sem Partido.
Também vemos, nas esferas municipal e estadual, o avanço da militarização de
escolas como resposta aos problemas estruturais da escola pública. Como essas questões vêm afetando o trabalho
docente, na sua visão, e como avalia o cenário atual com relação a essas
investidas mais conservadoras sobre a educação na correlação de forças
pós-eleições?
A gente tende a
observar mais o cenário federal, pelo fato de que 2022 foi uma ruptura tão
grande que tivemos os acontecimentos do dia 8 de janeiro. Mas no nível
subnacional a gente vê que não está tão arrefecido assim. A gente ainda observa
governos bem alinhado com a proposta do Escolas em Partido, por exemplo, cuja
pauta ainda está presente. No nível federal, podemos observar um arrefecimento
da pauta [conservadora], sim, mas ela ainda está presente. Você pega até ali
nas comissões parlamentares, na Comissão de Educação da Câmara, a gente ainda
tem essas discussões. Elas não se apresentam com a tônica que elas apresentavam
no governo anterior, mas estão presentes. Nos níveis subnacionais também
continuam atuando. E isso sobre o trabalho docente vai se alinhar muito com
aquilo que eu falei anteriormente, que é justamente esse descredenciamento
desses professores, desse conhecimento, desse currículo que foi construído
historicamente. Que tem também suas falhas, mas que é atravessado por uma pauta
progressista. A gente tem, por exemplo, a obrigatoriedade do ensino da cultura
africana, da cultura indígena, que foram estabelecidos nos anos 2000, e que,
vez ou outra, a gente vê alguns ataques contra essas questões. Então, essa
pauta conservadora para o trabalho docente visa, de fato, subjugar, minar um
tipo de conhecimento construído historicamente, socialmente. Descredenciar uma
profissão que de igual modo é construída historicamente dentro de uma
perspectiva crítica. Então, de fato, esses ataques vêm na contramão da própria
natureza da educação e da profissão docente. O impacto disso é muito grande
sobre a valorização, sobre o status socioprofissional da profissão. Um modelo
de educação que não atende esses propósitos do Escola sem Partido, de outras
pautas conservadoras, ele é questionado, colocado em xeque. E o professor é
quem está ali na linha de frente.
• E quanto à militarização das escolas?
Ela permanece em voga em vários estados, como São Paulo, por exemplo, onde a
proposta do governo de Tarcísio de Freitas para a militarização de escolas
estaduais e municipais é hoje objeto de uma disputa judicial envolvendo o
Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo. A militarização veio para
ficar? O que isso significa para os professores?
A gente tem no nosso
grupo de pesquisa outras pessoas até mais atentas à militarização, não está
tanto no meu raio de estudo, mas eu acho que eu posso falar aqui de maneira
mais ampliada e conversando muito mesmo com essa pauta conservadora. Quando se
vê a opção por esse modelo, a gente observa que por trás dele está um
pensamento, uma perspectiva de educação pouco emancipadora, pouco crítica, para
formar indivíduos para uma reprodução do status quo da sociedade. Essa ideia
bem arcaica de manutenção de estruturas pouco democráticas e que pouco permitem
a ascensão desses indivíduos, que associam muito a mobilidade social desses
indivíduos à meritocracia, sem considerar as variáveis sociais que estão por
trás: classe social, raça e etnia, gênero. Então é um modelo que se presta a
reproduzir um cenário de privilégios e de desigualdade. E não tem como se falar
de uma escola que não se paute por valores democráticos, republicanos, tendo em
vista essa perspectiva de educação enquanto elemento próprio de manutenção da
sociedade, do corpo social. Um espaço cuja essência é democrática sendo guiado
por processos pouco democráticos, com pouco espaço de participação dos
indivíduos que estão ali e que fazem a tarefa educativa. E aqui eu não digo só
o professor, eu falo da gestão escolar, do corpo de funcionários, dos próprios
alunos, das famílias, da comunidade escolar como um todo. Esse modelo de
militarização se presta a minar esses espaços de decisão democrática, de
realização de uma tarefa educativa que, em sua essência, é democrática, em prol
da manutenção de uma estrutura de privilégios, de desigualdades. E que vai
conversar com aquilo que eu comecei falando, de como a profissão docente vem
sendo subjugada, com esses espaços de atuação do professor sendo minados.
• No dia 15 de outubro se celebra o Dia do
Professor. Há o que comemorar no cenário atual? O que esperar do próximo ciclo
de disputas em torno das políticas públicas pós-eleições?
A gente tem uma
sensação de que a educação básica pública enfrenta muitos desafios, tem muitos
problemas. Mas que a gente não pode ‘jogar a água da banheira com a criança
fora’. Não é só isso que é educação. Temos que nos apegar muito em
experiências, sobretudo locais, para poder ter essa perspectiva de melhoria. A
gente tem redes de ensino onde, de fato, existem experiências positivas. Eu
cito aqui Contagem, que é um município aqui ao lado, que a gente tem muito
contato com os professores da educação básica. A gente vê que na verdade tem
muita experiência inovadora que de fato tem um impacto muito grande sobre as
crianças, sobre os jovens. Para citar um exemplo dessas experiências,
recentemente nosso grupo de pesquisa, o Gestrado, Grupo de Estudos sobre Políticas
Educacionais e Trabalho Docente, conduziu uma pesquisa junto com a
Internacional da Educação e a CNTE, com professores da educação básica,
fomentando as práticas de avaliação formativa, que é um tipo de avaliação que
não é aquela avaliação que pune, entre aspas, o estudante, mas que se presta a
construir o conhecimento dele, a ajudar esse estudante a aprender. E as
experiências que a gente teve foram muito boas, inclusive refletindo nos
índices de avaliação no IDEB, nas avaliações de alfabetização. Então a gente
tem muitas experiências nos níveis locais que dão essa esperança. A gente tende
a focar muito nos problemas, mas há muitas experiências positivas também. A
própria Rede Federal de ensino. Ela é pública. Muitas vezes a gente esquece
disso. Os IFs, os CEFETs, no caso de BH, do Rio de Janeiro, a Universidade
Tecnológica do Paraná, os Colégios de Aplicação dentro das universidades. A
Rede Federal é um exemplo de que a educação pública pode dar muito, muito
certo. A gente tem que focar nesses pontos para poder direcionar o nosso olhar
e a nossa luta. E a perspectiva que fica para agora é, de fato, a de ter
conseguido romper de alguma forma com esse com esses governos que ascenderam de
2017 para cá, sobretudo em 2018. No nível federal conseguimos visualizar um
maior espaço de participação. A Conae [Conferência Nacional de Educação] desse
ano é um exemplo disso, ela retomou aquele espaço de discussão que a gente teve
em 2010. A gente tem isso agora para poder construir o novo PNE. Temos a
recomposição do Fórum Nacional de Educação, em moldes mais democráticos, com
maior espaço de participação das entidades representativas do professorado, da
academia e da sociedade civil de forma mais ampliada. Eu acho que a gente tem
uma perspectiva de muita luta, obviamente. A educação, historicamente, sempre
foi pautada pela luta. A gente tem que
trabalhar um pouco na base também para poder manter isso. A educação ainda é
muito guiada por políticas de governo e não como política de Estado como se
defende. Estamos passando por uma onda que permite visualizar um futuro de
maior participação, de ganhos. Mas ganhos que não estão descolados de uma luta
que é necessária.
Fonte: Entrevista com
Alexandre Duarte, para André Antunes – EPSJV/Fiocruz
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