Uruguai — virada à esquerda
No último dia 13,
enquanto caminhava pela Avenida 18 de Julio em Montevidéu, rumo à feira de
Tristán Narvaja — a maior e mais tradicional do país, que acontece todos os
domingos —, uma cena emblemática capturou minha atenção. Nas proximidades da
Faculdade de Direito da Universidad de la República, as barracas
dos principais partidos políticos estavam lado a lado, distribuindo panfletos e
debatendo propostas com os transeuntes. O clima era de polarização, mas,
curiosamente, marcado por uma tranquilidade incomum para períodos eleitorais
tão acirrados.
Estamos às vésperas
das eleições presidenciais e legislativas de 27 de outubro de 2024. E, embora a
disputa à presidência entre os candidatos Álvaro Delgado, do Partido Nacional (Blanco),
Yamandú Orsi, da Frente Ampla, e Andrés Ojeda, do Partido Colorado, esteja
aquecida, o processo eleitoral segue pacífico. Essa atmosfera de respeito
contrasta fortemente com as tensões que permeiam as eleições municipais no
Brasil, especialmente em São Paulo, onde os embates entre candidatos e
militantes têm gerado episódios de violência e polarização agressiva.
Esse respeito mútuo
nas eleições uruguaias reflete a maturidade de uma democracia que, nas últimas
duas décadas, foi profundamente transformada. O marco dessa virada progressista
foi a ascensão da Frente Ampla ao poder em 2005, rompendo com a longa alternância
entre o Partido Nacional e o Partido Colorado, que dominaram a política do país
por mais de um século.
A chegada da Frente
Ampla ao governo não representou apenas uma troca de siglas no poder, mas o
início de um novo ciclo político, em que as políticas sociais, os direitos
civis e a inclusão passaram a ocupar o centro da agenda. Entre essas
transformações, destacam-se a legalização do aborto, a regulação da cannabis e
o casamento igualitário, além de uma forte política de redistribuição de renda,
que ajudou a diminuir a pobreza e a desigualdade no país.
No entanto, essa
guinada não foi imediata nem sem desafios. A coalizão da Frente Ampla, que
reúne diferentes correntes de esquerda, precisou lidar com tensões internas e
com a oposição dos partidos tradicionais. A gestão de Tabaré Vázquez
(2005-2010), que inaugurou essa era, foi seguida pela presidência de Pepe
Mujica (2010-2015), cuja liderança carismática e foco em temas sociais e
ambientais internacionalizou a imagem do Uruguai como uma nação progressista.
Pepe Mujica, um ex-guerrilheiro tupamaro, promoveu uma política de diálogo e
inclusão, que se consolidou com as reformas em direitos civis, ganhando
reconhecimento global por sua postura humilde e suas políticas voltadas para o
bem-estar social.
A transição de Pepe
Mujica para o segundo mandato de Vázquez e, depois, para a presidência de Luis
Lacalle Pou, do Partido Nacional, em 2019, sinalizou uma nova fase de
alternância no poder. Lacalle Pou, representando a Coalizão Republicana,
formada por Partido Nacional, Partido Colorado, Cabildo Abierto e outros
partidos menores, trouxe um governo de centro-direita, cuja plataforma focava
em reformas econômicas, segurança pública e um distanciamento das políticas
sociais mais expansivas da FA.
Contudo, a eleição de
2024 mostra que o ciclo de políticas progressistas pode estar longe de
terminar. De acordo com a última Pesquisa Nacional FACTUM,
realizada entre 28 de setembro e 6 de outubro, a Frente Ampla mantém uma
liderança sólida, com 44% da intenção de voto, enquanto o Partido Nacional caiu
para 24%, seu ponto mais baixo desde as internas, e o Partido Colorado registra
um leve crescimento, com 17%. Esses números refletem um cenário de
reconfiguração do poder, onde a Frente Ampla não apenas recuperou terreno, mas
ampliou seu apoio, indicando que o eleitorado uruguaio ainda está inclinado a
apostar no modelo de Estado forte e inclusivo proposto pela coalizão de
esquerda.
A estabilidade da
Frente Ampla nas pesquisas, somada à fragmentação da coalizão de direita,
sugere que as reformas progressistas continuam a encontrar ressonância entre os
eleitores, especialmente nas questões de direitos civis, distribuição de renda
e proteção social. O crescimento da Frente Ampla em comparação com o ciclo
eleitoral de 2019, quando obteve 39% dos votos, também reflete um movimento de
crítica à gestão do Partido Nacional, sobretudo no manejo da pandemia e da
segurança pública, dois temas que dominaram o mandato de Lacalle Pou.
Além disso, a FACTUM aponta uma queda na intenção de voto
do Partido Cabildo Abierto, que diminuiu de 11% em 2019 para 4% em 2024,
revelando a insatisfação de parte do eleitorado com a coalizão de direita. A
fragmentação da base conservadora, aliada ao crescimento de partidos emergentes
como Identidad Soberana, indica que o cenário de 2024 será marcado por uma
intensa competição no segundo turno, caso a Frente Ampla não consiga vencer já
na primeira rodada.
Por outro lado, é
importante destacar que, apesar dessa polarização crescente, o Uruguai continua
a se destacar pela natureza pacífica de seu processo eleitoral. Diferentemente
de muitos de seus vizinhos na América Latina, o país mantém uma cultura política
de respeito e diálogo, onde as divergências são expressas nas urnas e não nas
ruas. A pacificação eleitoral, um traço marcante da democracia uruguaia,
garante que, independentemente do resultado, o processo será conduzido com
tranquilidade e confiança nas instituições.
A estabilidade
democrática e a alta competitividade política do Uruguai são, em grande medida,
fruto de uma sociedade civil ativa e de uma longa tradição de participação
política. Ao caminhar pela Avenida 18 de Julio, a impressão que fica é de que,
apesar das mudanças e das crises, o país soube construir uma cultura política
que valoriza o debate e a inclusão, elementos que foram centrais para o sucesso
da virada progressista e continuam a moldar o futuro do Uruguai.
Dessa forma, a eleição
de 2024 será mais um capítulo nessa trajetória. Se o Frente Ampla vencer, como
indicam as pesquisas atuais, o desafio será manter a unidade dentro de sua
coalizão e responder às demandas de um eleitorado cada vez mais diversificado.
Se a direita conseguir reverter a tendência e retomar o poder, o Uruguai
enfrentará um novo ciclo de ajustes, possivelmente mais alinhado com as
políticas liberais promovidas por Lacalle Pou e seus aliados. De qualquer
forma, o país segue firme em sua jornada democrática, oferecendo ao mundo um
exemplo de como a alternância de poder pode coexistir com a estabilidade e o
progresso social.
·
O contexto histórico e
a crise dos partidos tradicionais
Para entendermos a
ascensão da Frente Ampla, é fundamental contextualizar o cenário político uruguaio nas décadas
anteriores. Desde o início do século XX, o país foi
dominado pelos dois partidos tradicionais: o Partido Nacional (1836), também
conhecido como “Blanco”, e o Partido Colorado (1836), que se alternavam
no poder. Essas forças políticas representavam facções historicamente ligadas à
elite rural e urbana do país, mas com o tempo, suas bases de apoio se
fragmentaram, especialmente à medida que novas demandas sociais surgiam e o
modelo econômico liberal enfrentava suas limitações.
A crise econômica de
2002, um dos momentos mais críticos da história recente do Uruguai, foi o
catalisador para uma reavaliação do papel dos partidos tradicionais. O colapso
do sistema financeiro levou o país à beira do caos econômico, e a resposta
governamental foi amplamente percebida como inadequada. Os setores médios e
populares, que sofreram os maiores impactos, começaram a buscar alternativas
políticas fora do eixo conservador. Foi nesse contexto que a Frente Ampla, uma
coalizão de esquerda fundada em 1971, antes da ditadura civil-militar
(1973-1985), mas marginalizada durante grande parte da sua existência, começou
a ganhar força.
A vitória da Frente
Ampla nas eleições presidenciais de 2004, com Tabaré Vázquez, foi o marco
inaugural da virada progressista no Uruguai. A Frente Ampla representava uma
coalizão diversificada, composta por socialistas, comunistas, democratas
cristãos, setores do sindicalismo e novos movimentos sociais, formando uma base
política distinta dos tradicionais partidos Nacional e Colorado. Essa ascensão,
no entanto, não foi uma ruptura abrupta com o passado, mas o resultado de uma
lenta e contínua reorganização do cenário político uruguaio, refletindo
demandas populares por reformas sociais e econômicas.
·
A Era Frente Ampla:
conquistas e limitações
Durante o período de
governos da Frente Ampla (2005-2020), o Uruguai implantou uma série de reformas
que o destacaram como um exemplo de progresso na América Latina. Sob a
liderança de Tabaré Vázquez e, posteriormente, Pepe Mujica, a coalizão
governista promoveu políticas inovadoras em áreas como educação, saúde, e
direitos civis, além de modernizar a economia, expandir a rede de proteção
social e consolidar a democracia participativa.
Uma das reformas mais
notáveis foi a legalização do aborto em 2012, uma das primeiras da América
Latina, que colocou o Uruguai na vanguarda dos direitos reprodutivos. Além
disso, a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a
descriminalização da maconha solidificaram o país como um bastião dos direitos
civis e das liberdades individuais na região. Essas políticas progressistas
foram amplamente apoiadas por uma população que historicamente prezava pela
igualdade e liberdade individual, mas também enfrentaram resistência de setores
mais conservadores da sociedade, incluindo membros dos partidos tradicionais e
da Igreja Católica.
Do ponto de vista
econômico, o governo da Frente Ampla se destacou pela redução da pobreza e da
desigualdade, com a criação de programas sociais como o Plan de Equidad e
a ampliação das políticas de transferência de renda. Além disso, o governo
conseguiu manter a estabilidade macroeconômica, mesmo diante das flutuações
regionais, e buscou diversificar a economia, apostando em novas áreas como a
tecnologia e a inovação.
No entanto, o
crescimento econômico desacelerou nos últimos anos do governo de Tabaré
Vázquez, o que gerou descontentamento em algumas áreas, principalmente entre os
jovens e os setores populares que se sentiram marginalizados pela crise.
·
O fim da hegemonia?
Em 2019, após 15 anos
de hegemonia da Frente Ampla, o Partido Nacional, com o candidato Luis Lacalle
Pou, conquistou a presidência, marcando o retorno da direita ao poder. O
triunfo de Lacalle Pou representou uma mudança no humor político do país,
impulsionada por uma combinação de fatores, incluindo o cansaço do eleitorado
com a longa permanência da Frente Ampla no governo, a desaceleração econômica e
as crescentes preocupações com a segurança pública.
O governo de Lacalle
Pou traz uma agenda liberal que contrasta com o modelo estatizante da Frente
Ampla, implantando reformas que buscam reduzir o papel do Estado na economia,
promover a flexibilização trabalhista e atrair investimentos estrangeiros. Essas
mudanças são vistas como necessárias por muitos setores empresariais, mas
também despertam resistência, especialmente entre os sindicatos e os movimentos
sociais, que enxergam nelas uma ameaça aos direitos conquistados durante os
governos progressistas.
·
O futuro da virada
progressista
A virada progressista
no Uruguai não é apenas uma fase transitória; é um movimento que redefine as
possibilidades de um futuro mais inclusivo e justo. À medida que o país avança,
as sementes plantadas nas últimas décadas começam a germinar em formas inovadoras
de governança e participação cidadã. O legado da Frente Ampla, com suas
políticas sociais arrojadas, é um testemunho de que um novo paradigma é
possível, desafiando narrativas de apatia e estagnação que muitas vezes
permeiam o discurso político.
À medida que o Uruguai
se aproxima das eleições, o futuro da virada progressista é uma promessa
enraizada na continuidade das conquistas e na coragem de enfrentar os novos
desafios. O embate eleitoral não é apenas uma luta por cadeiras no Parlamento
e/ou na Presidência, mas um reflexo das aspirações de uma sociedade que anseia
por um futuro que respeite as diversidades, valorize os direitos humanos e
promova a sustentabilidade. A polarização, embora evidente, traz consigo a
vitalidade de um debate democrático, onde as vozes da juventude, dos movimentos
sociais e das comunidades marginalizadas emergem com força renovada.
Os candidatos que se
apresentam no pleito não apenas representam seus partidos; eles são símbolos
das esperanças e das incertezas de uma nação que já trilhou caminhos tortuosos.
Álvaro Delgado, Yamandú Orsi e Andrés Ojeda, cada um à sua maneira, devem confrontar
não apenas o passado, mas também as expectativas de um futuro que não pode se
conformar com as velhas práticas de exclusão e desigualdade. A continuidade das
políticas progressistas deve ser acompanhada por um olhar atento para a
inovação, abraçando a tecnologia e as novas formas de organização social que
estão moldando o mundo.
O futuro da virada
progressista reside na capacidade de articular uma visão coletiva, onde a
política não é uma arena de competição, mas um espaço de construção conjunta. A
era das soluções únicas e das respostas simplistas deve ceder lugar a um
diálogo plural, capaz de incorporar as múltiplas vozes que compõem o rico
complexo social uruguaio.
Nesse contexto, o
Uruguai se torna um laboratório de experimentação social, um modelo para a
América Latina. O que se vislumbra é um Uruguai em constante evolução, que
aprende com o passado, mas não se apega a ele. A virada progressista, portanto,
é um convite a todos — governantes, cidadãos, jovens e velhos — a sonhar juntos
e a agir de forma coesa. O futuro, iluminado por essas aspirações, é um chamado
à ação, à esperança e à transformação. O que está em jogo não é apenas o
destino de um país, mas a afirmação de que um mundo melhor é, sim, possível.
¨ Exército Brasileiro coordena o maior exercício cibernético do
Hemisfério Sul
Considerado um marco
na defesa de infraestruturas críticas do Brasil, o Exercício Guardião
Cibernético 6.0 (EGC 6.0) — maior exercício de seu tipo do Hemisfério Sul —
reúne representantes de setores prioritários em um esforço coordenado para
enfrentar ameaças cibernéticas crescentes.
Sob coordenação do
Comando de Defesa Cibernética (ComDCiber), o exercício ocorrerá simultaneamente
na Escola Superior de Defesa, em Brasília (DF), e no Comando da 2ª Divisão de
Exército (2ª DE), em São Paulo, promovendo simulações construtivas e virtuais
que vão permitir aos participantes trabalharem em conjunto para desenvolver
soluções estratégicas de defesa.
Previsto no Plano
Nacional de Segurança de Infraestruturas Críticas, o EGC 6.0 objetiva ampliar a
capacidade operacional das Forças Armadas, promovendo a colaboração entre a
administração pública federal, o setor privado, a academia e a sociedade civil.
Contando com a
presença de 140 organizações e de representantes de mais de 30 países no
exercício simulado, o Exército Brasileiro tem a oportunidade de demonstrar seu
estado de prontidão ao promover ações relevantes de preparo e emprego da Força
na segurança nacional e na proteção das infraestruturas críticas.
Em sua primeira edição
em 2018, o Exercício Guardião Cibernético focava em setores como o financeiro e
nuclear, até expandir sua área de abrangência para incluir mais instituições e
complexidade. A edição de 2023, por exemplo, contou com mais de 700 participantes
e 100 organizações.
O Exercício Guardião
Cibernético 6.0 (EGC 6.0) ocorre entre 14 e 18 de outubro de 2024 com foco em
infraestruturas críticas, como água, energia e comunicações, expandindo a
colaboração interagências e integrando novas tecnologias ao Exército
Brasileiro.
Fonte: Por Bruno
Fabricio Alcebino da Silva, em A Terra é Redonda/Sputnik Brasi
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