Dançando diante da dor dos outros
É uma imagem
inesquecível: em Naypyitaw, capital de Mianmar, a professora de ginástica Khing
Hnin Wai dança para um lado e para outro, agitando os braços e levantando os
joelhos, ao som frenético da música Ampum bang jago.
Enquanto isso, vemos
ao fundo uma coluna de veículos blindados passando pela rotatória Royal Lotus,
caminho do parlamento nacional. Um golpe militar começava ali, e a Nobel da Paz
Aung San Suu Kyi, líder democraticamente eleita, seria presa. Outros integrantes
do seu governo também foram detidos, todos acusados de fraude eleitoral.
Era 2021, e a
professora foi duramente criticada, acusada de apoiar um golpe violento que já
matou milhares de pessoas – mais de 5 mil até agora, segundo a ONU. Seu
exercício matinal foi lido como insensível ao banho de sangue que já começava
ali. Khing Hnin Wai, no entanto, afirmou que treinava há tempos no local e não
estava “zombando, ridicularizando ou fazendo palhaçada”. Diversos vídeos
comprovam que ela falava a verdade.
Dois mil e vinte e
quatro, 21 de setembro. A repórter Isabela Campos, ao vivo, cobria o acidente
de ônibus que transportava o time Coritiba Crocodiles. O veículo tombou
enquanto descia a Serra das Araras, no RJ. Três pessoas morreram. Enquanto a
jornalista falava sobre o atendimento aos feridos, alguns em estado grave, o
funkeiro MC Livinho apareceu no vídeo e começou a dançar.
Ao contrário da
professora de ginástica, ele entrou em cena justamente para fazer graça, ou
melhor, palhaçada: deu tchau, fez caretas, passou a mão no pênis. Criticado nas
redes sociais, ele postou um vídeo dizendo que – a despeito de todo o contexto
caótico – não sabia sobre o acidente.
“Meus pêsames para a perda que teve aí”, poetizou.
Dois mil e vinte e
quatro, 29 de setembro. Uma semana antes das eleições para prefeitos/as e
vereadores/as. É domingo à noite no povoado de Algodão do Manso, em Frei
Miguelinho, agreste de Pernambuco. Uma ambulância do Samu tenta chegar ao local
de um acidente grave, mas é impedida por dezenas de pessoas que participavam de
uma carreata em apoio à Luiza de Lula,
do Podemos.
Vestidas de azul e
empunhando bandeiras, muitas delas dançam em frente ao carro com as sirenes
ligadas. Sem poder seguir, a ambulância dá ré e tenta outro caminho. É
novamente impedida. Mastros das bandeiras são usados para atacar o veículo,
cujo motorista, Marcílio, 31 anos, há dois servindo ao Samu, gravou um vídeo
relatando a barbárie.
Gilvanete Maria de
Arruda, 80 anos, estava na calçada em frente à casa da família. Ela e as filhas
observavam a movimentação causada pela disputa política local: a cidade se
dividia entre a chamada “nação azul” e a “nação verde” – apoiadora de
Lindonaldo da Farinha, do PSB, que venceu a eleição com 50,3% dos votos
válidos. Gilvanete e a família faziam parte dos verdes, como mostra esse vídeo
divulgado pelo então candidato.
Um sobrinho de
Gilvanete, este membro da “nação azul”, realizava manobras com um carro em uma
rua repleta de pedestres. Foi advertido pelos próprios parentes sobre o perigo
e não gostou. O clima de animosidade entre as nações azul e verde cresceu: o
rapaz acelerou o automóvel em direção à calçada na qual a família estava
reunida. Atropelou a idosa e ainda sua
filha, Iolanda, de 54 anos.
Gilvanete teve as duas
pernas destruídas. Em choque, morreu no local. Iolanda foi ferida gravemente e
ficou na rua até a chegada da
ambulância, que demorou cerca de 40 minutos a mais por conta do bloqueio
imposto pela “onda azul”. O caso está sendo investigado pela polícia: o
agressor se apresentou na delegacia três dias após o trágico evento.
(…)
Se em 2021 os
exercícios físicos ambientados por um golpe militar em Mianmar pareciam uma
obra surrealista, as performances de MC Livinho e dos apoiadores da candidata à
prefeitura de Frei Miguelinho surgem como expressões de puro horror.
Nelas, reside o
desapreço pelo humano, que é solapado pela mais absoluta desconexão com o
Outro, este dizimado pela emergência do Eu. A ânsia em ser “resenha”, como
disse o MC em suas desconexas desculpas, o impediu de, em algum mínimo segundo,
levar em consideração que um grande engarrafamento em uma estrada poderia se
tratar de um acidente.
Em Pernambuco, os
tantos corações azuis postados nas redes sociais dos apoiadores da candidata do
Podemos foram traduzidos em sentido inverso no momento da carreata: uma pessoa
dançando em frente a uma ambulância que tenta prestar socorro não significa nada
além de ódio, obtusidade e canalhice.
Não, não são
“animais”, nem “selvagens”, como li em alguns comentários. São pessoas que
fizeram escolhas. Os animais tendem a ser mais civilizados do que nós.
O socorrista Marcílio,
após postar sua experiência em vídeo, passou a ser atacado. “Por que você
escolheu o caminho da carreata?”, questionou uma pessoa. Conseguem ver o
alçapão no fundo do poço? Chegamos ao ponto no qual abrir passagem para uma
equipe de socorro é um incômodo a ser normalizado. Pior: chegou a circular um
post com uma nota de repúdio ao socorrista, o chamando de irresponsável, pois
sabia que “as vias centrais estavam obstruídas”.
O artigo 29 do Código
de Trânsito estabelece que os veículos de emergência, entre eles ambulâncias,
têm prioridade de trânsito. Além disso, o artigo 189 trata o impedimento da
passagem de ambulâncias e veículos de socorro como infração gravíssima, passível
de multa para os condutores.
Conversei rapidamente
com Marcílio, que estava evitando se expor após o episódio justamente por conta
do clima de violência instaurado. “Meu sentimento é de tristeza ao ver como o
ser humano não se importa com a vida do próximo.”
Terezinha, 62 anos,
filha de Gilvanete, estava presente no momento do atropelamento. Conta que o
sobrinho, um homem de 49 anos, jogou o carro para cima da calçada após um tio,
este partidário do PSB, reclamar sobre o perigo das manobras (segundo Terezinha,
ele fazia “cavalos de pau”).
“Depois de atropelar
minha mãe e minha irmã, ele deu ré e veio de novo para cima. Então fugiu”,
contou. Ela chora muito e pede pela volta da mãe, com quem morava ao lado do
pai, de 87 anos. Adoentado, o idoso ainda estava sem entender bem o que
aconteceu dois dias após o sepultamento:
Nas redes, a então
candidata do Podemos prestou condolências à família, mas tratou o episódio como
uma contenda familiar, e não política. Não fez nenhuma menção ao bloqueio da
ambulância por parte de sua militância, apesar dos vídeos.
O silêncio e a falta
de nomear as coisas pelo o que elas são segue o jogo de naturalização da nova
barbárie mundial. Nela, os personagens que sorriem e juntam as mãos em forma de
coração nas redes sociais engatam a ré e jogam automóveis sobre mulheres. Atropelam
e arrastam aqueles escolhidos como seus mais eloquentes inimigos.
Importa somente o que
está nas redes e o caráter, ainda que virtual, que sugerimos ter.
Fonte: Por Fabiana
Moraes, em The Intercept
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