quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Estudos indicam contaminação generalizada por microplástico no litoral brasileiro

Longe de ser apenas uma força de expressão, a presença dos microplásticos dispersos nos oceanos é tratada como inequívoca por especialistas no assunto.

Celebrado pela indústria por sua maleabilidade, durabilidade e os baixos custos de produção, o plástico, no entanto, vê suas virtudes esfaceladas na mesma proporção em que uma garrafa de 500 ml se transforma em milhões de fragmentos no ambiente marinho.

No mar, à deriva e sob a ação dos ventos, raios ultravioleta e correntes marítimas, a garrafinha jogada na praia se deteriorará ao longo dos anos em partículas menores do que 5 milímetros, capazes de entrar na cadeia alimentar, contaminando algas, crustáceos, peixes e, por extensão, seres humanos.

Mas os estudos sobre as consequências para o meio ambiente, a fauna aquática e a saúde humana, assim como a extensão da poluição, ainda são escassos.

No Brasil, o quarto maior produtor de plásticos do mundo, com quase 12 milhões de toneladas por ano, dois importantes estudos estão em fase de análises laboratoriais para mapear regiões, calcular a carga poluente, tipificar as características do plástico, e, por fim, conhecer o caminho do lixo até o Oceano Atlântico.

O projeto MICROMar, que tem a coordenação do professor Guilherme Malafaia, do Instituto Federal Goiano, e conta com pesquisadores de diversas universidades estaduais e federais, percorreu 7.500 km de orla em um ano e meio de viagens, colhendo amostras de areia e água do mar em 1.212 praias de 211 municípios.

Com 10 mil amostragens em análise, o MICROMar apresentará o maior diagnóstico sobre poluição plástica já feito no país.

O objetivo é identificar e quantificar os resíduos com base na diversidade do litoral, levando em conta a ocupação, o turismo e características climáticas como precipitação e direção dos ventos — considerados, junto com a desembocadura dos grandes rios, importantes carreadores de poluentes até o oceano.

“A grande contribuição do projeto é criar um raio-x com a produção de mapas, revelando áreas mais críticas. Todos sabemos que os microplásticos são onipresentes, estão em todos os lugares. E, com os mapas, nós vamos poder visualizar a distribuição da poluição, facilitando a compreensão da extensão e a gravidade da contaminação ao longo do litoral”, diz Malafaia.

Conforme relata o biólogo, observações preliminares indicam que a poluição por microplásticos é uma realidade em praticamente todas as praias investigadas, desde a Praia do Goiabal em Calçoene, Amapá, até a Barra do Chuí, no Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai. Até os Lençóis Maranhenses, recentemente reconhecidos como Patrimônio Natural da Humanidade, apresentaram uma presença significativa de microplásticos em suas lagoas.

“As praias mais poluídas foram as das regiões Sul e Sudeste. Mas, no geral, diversas praias, incluindo famosas orlas do Nordeste como Jericoacoara, no Ceará, e Praia de Boa Viagem, no Recife, também apresentaram altos níveis de poluição, indicando a contaminação tanto em regiões turísticas quanto em áreas menos visitadas”, diz Malafaia.

•        Segurança alimentar

O projeto Voz dos Oceanos, por sua vez, tem como foco a segurança alimentar e finalizou em julho uma expedição terrestre de 70 dias que avaliou mercados e feiras no litoral brasileiro para diagnosticar microplásticos em organismos marinhos consumidos pela população.

Fruto de uma parceria da Família Schurmann (primeira família brasileira a dar a volta ao mundo a bordo de um veleiro) e a Universidade de São Paulo (USP), com apoio do Programa da ONU para o Meio Ambiente (Pnuma), o trabalho colheu amostras de sete espécies de moluscos como ostras e mexilhões em 17 cidades de 15 estados — de Itajaí, em Santa Catarina, até Belém, no Pará.

Chamados de bivalves (formados por uma concha de duas partes, as valvas), esses moluscos são considerados excelentes bioindicadores do status de poluição ambiental marinha por serem organismos filtradores, usando suas brânquias para retirar matéria orgânica da água.

Além de filtrarem microplástico de forma involuntária no ato da alimentação, os bivalves se destacam como biomarcadores de poluição na cadeia alimentar, uma vez que os plânctons, na base da cadeia, fazem parte de sua dieta. E, também, por serem presa para animais associados tanto ao fundo do mar quanto à coluna de água (o espaço entre o fundo e a superfície).

“No laboratório, iremos medir o tamanho e densidade de cada partícula e entender a composição delas — se é polietileno, PVC, polipropileno —, e com isso categorizar o perfil de microplásticos que estes animais estão ingerindo”, afirma a bióloga marinha Marília Nagata, líder da expedição Voz dos Oceanos.

Utilizado em embalagens de alimentos de uso único, o polietileno, feito de petróleo e gás, é o tipo de plástico mais fabricado no mundo, com 103,9 milhões de toneladas métricas por ano.

A montagem do laboratório de tipificação e quantificação de microplásticos, que contará com um equipamento de alta tecnologia capaz de identificar partículas menores do que uma célula, é aguardada com grande expectativa pela equipe do Instituto Oceanográfico da USP.

O estudo, liderado pelo professor Alexandre Turra, é financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e tem o apoio da Shimadzu, empresa que cedeu o importante instrumento, o primeiro dedicado a este tipo de estudo no Brasil.

“Meu grande objetivo com a montagem do laboratório é que a gente consiga capacitar as pessoas no país e criar oportunidades para expandir essas infraestruturas de análises para todos os estados costeiros”, diz Turra, que também é coordenador da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano.

•        Ostras contaminadas

Turra também participou como orientador de um estudo feito com organismos bivalves no Complexo Estuarino de Paranaguá, região costeira do Paraná, onde fica o maior porto graneleiro da América Latina.

Publicado recentemente por Suzane de Oliveira, sua aluna de doutorado, a pesquisa analisou ostras no ambiente natural de toda a região, incluindo o Parque Nacional do Superagui, importante unidade de conservação no litoral norte do estado.

Os resultados mostraram mais de 90% das ostras coletadas contaminadas por alguma quantidade de microplástico. Em alguns pontos próximos ao porto, centros urbanos e desembocaduras de rios, a totalidade de ostras, ou seja, 100% de indivíduos analisados, tinham contaminantes presentes em seu corpo.

A composição dos microplásticos encontrados no trato digestivo dos organismos apresentou grande quantidade de fibras, provavelmente derivadas de lavagem de roupas sintéticas; náilon, presente em redes de pesca; e resíduos de borracha decorrentes de degradação de pneus dos caminhões que circulam na Estrada da Graciosa em direção ao porto.

“Foi uma surpresa a quantidade de partículas encontradas no Parque Nacional do Superagui, que fica mais distante do porto e é uma área de preservação ambiental. E isso ilustra como temos muito a compreender sobre os processos que geram os microplásticos, e que vão remeter à sua origem”, destaca Turra, acrescentando como o grave problema dos fiapos plásticos que se soltam das roupas sintéticas pode ser mitigado com a adoção da pré-lavagem do tecido ainda na fábrica, antes de ser vendido para a confecção.

A ação, diz ele, pode reduzir em até 70% as fibras que se desprendem e são perdidas após dez lavagens feitas em máquinas comuns nos domicílios brasileiros.

•        3,4 milhões de toneladas de plástico nos oceanos

Outro importante trabalho de identificação dos principais focos de vazamento de plástico para o oceano ao longo da costa brasileira faz parte do Programa Blue Keepers, um projeto conjunto entre a Cátedra Unesco e o Pacto Global da ONU, em parceria com o Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo.

De acordo com dois estudos já finalizados pelo projeto, o Brasil descarrega no oceano 3,44 milhões de toneladas de plástico todos os anos, sendo que um terço do plástico produzido no país pode atingir o litoral. A estimativa é de que entre 86 milhões e 150 milhões de toneladas de resíduos plásticos estejam acumulados no mar.

A pesquisa revelou também que o Brasil tem 600 grandes pontos de descarga para a poluição plástica no Oceano Atlântico. As principais portas de entrada identificadas são as bacias hidrográficas dos rios Amazonas (cerca de 160 mil toneladas/ano), São Francisco (230 mil toneladas/ano), Baía de Guanabara (216 mil toneladas/ano) e a do Rio da Prata, com mais de 1 milhão de toneladas por ano. Somados, estes pontos são responsáveis por 67% do plástico que vai para o mar.

As zonas costeiras, porém, não são as que apresentam a maior quantidade de partículas microplásticas. Uma pesquisa conjunta da agência científica nacional da Austrália e da Universidade de Toronto no Canadá revelou que a poluição plástica no fundo do oceano pode ser até cem vezes maior do que a quantidade de plástico flutuando na superfície.

No Brasil, o primeiro registro científico de lixo em mar profundo foi publicado recentemente no Marine Pollution Bulletin por pesquisadores do Instituto Oceanográfico da USP.

Inicialmente, o estudo focava na biodiversidade e buscava a identificação de  peixes de mar profundo durante as expedições do projeto Deep-Ocean, financiado pela Fapesp. Mas a rede usada na coleta, para surpresa dos cientistas, trazia junto com os animais embalagens de alimentos, sacolas plásticas, garrafas, latas e utensílios de pesca. O plástico representou mais da metade da quantidade desses itens e esteve presente em todos os locais pesquisados. O lixo foi retirado entre 200 e 1.500 metros de profundidade, a cerca de 200 km de distância da costa nos estados de São Paulo e Santa Catarina

Com 430 milhões de toneladas produzidas no mundo em 2023, dos quais 40% são usados uma única vez e descartados em seguida, apenas 9% do plástico é reciclado no planeta.

No Brasil, onde a reciclagem não chega a 2%, é aguardada desde 2022 a aprovação do projeto de lei nº 2524/2022, em tramitação no Congresso Nacional, que busca reduzir a geração de resíduos de plástico descartável e promover a economia circular do plástico.

•        Proposta de tratado global

Distribuído pelos quatro cantos do mundo pelas correntes marítimas, a dispersão do microplástico pelos oceanos não tem fronteiras.

A esperança está no Tratado Global do Plástico, que vem sendo negociado por 175 países membros da ONU e terá o último encontro para redigir o texto final em novembro de 2024, na Coréia do Sul.

O objetivo é reduzir significativamente a poluição causada pelo plástico descartável de uso único, através de um acordo juridicamente vinculante (com força de lei).

O principal entrave é chegar a um consenso sobre restrições à produção de novos plásticos. A medida, vista como primordial pelos ambientalistas, encontra forte resistência de países ligados a grandes produtores de petróleo e gás.

No recente encontro realizado no Canadá, Peru e Ruanda apresentaram uma proposta para a redução de 40% na produção entre 2025 e 2040 e tiveram o apoio de quase 30 países, como França, Noruega, Chile e Senegal. O Brasil, assim como os Estados Unidos, não  apoiaram a proposta.

Segundo Larissa Godoy, coordenadora nacional do Projeto TerraMar e coordenadora-geral substituta de Gerenciamento Costeiro do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente, o Brasil

tem defendido que o Acordo Global seja vinculante, conforme a proposta do Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), e que haja uma transição justa para a economia circular do plástico, com a inclusão dos elos mais frágeis da cadeia, como os catadores, mas também dos trabalhadores da indústria do plástico, que precisam ter sua saúde e integridade protegidas.

Larissa diz que “sem um verdadeiro incentivo à economia circular, à reciclagem e à demanda por matéria-prima virgem, a redução da produção de plástico não ocorrerá”.

 

Fonte: Mongabay

 

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