Estudos indicam contaminação generalizada
por microplástico no litoral brasileiro
Longe de ser apenas
uma força de expressão, a presença dos microplásticos dispersos nos oceanos é
tratada como inequívoca por especialistas no assunto.
Celebrado pela
indústria por sua maleabilidade, durabilidade e os baixos custos de produção, o
plástico, no entanto, vê suas virtudes esfaceladas na mesma proporção em que
uma garrafa de 500 ml se transforma em milhões de fragmentos no ambiente
marinho.
No mar, à deriva e sob
a ação dos ventos, raios ultravioleta e correntes marítimas, a garrafinha
jogada na praia se deteriorará ao longo dos anos em partículas menores do que 5
milímetros, capazes de entrar na cadeia alimentar, contaminando algas, crustáceos,
peixes e, por extensão, seres humanos.
Mas os estudos sobre
as consequências para o meio ambiente, a fauna aquática e a saúde humana, assim
como a extensão da poluição, ainda são escassos.
No Brasil, o quarto
maior produtor de plásticos do mundo, com quase 12 milhões de toneladas por
ano, dois importantes estudos estão em fase de análises laboratoriais para
mapear regiões, calcular a carga poluente, tipificar as características do
plástico, e, por fim, conhecer o caminho do lixo até o Oceano Atlântico.
O projeto MICROMar,
que tem a coordenação do professor Guilherme Malafaia, do Instituto Federal
Goiano, e conta com pesquisadores de diversas universidades estaduais e
federais, percorreu 7.500 km de orla em um ano e meio de viagens, colhendo
amostras de areia e água do mar em 1.212 praias de 211 municípios.
Com 10 mil amostragens
em análise, o MICROMar apresentará o maior diagnóstico sobre poluição plástica
já feito no país.
O objetivo é
identificar e quantificar os resíduos com base na diversidade do litoral,
levando em conta a ocupação, o turismo e características climáticas como
precipitação e direção dos ventos — considerados, junto com a desembocadura dos
grandes rios, importantes carreadores de poluentes até o oceano.
“A grande contribuição
do projeto é criar um raio-x com a produção de mapas, revelando áreas mais
críticas. Todos sabemos que os microplásticos são onipresentes, estão em todos
os lugares. E, com os mapas, nós vamos poder visualizar a distribuição da poluição,
facilitando a compreensão da extensão e a gravidade da contaminação ao longo do
litoral”, diz Malafaia.
Conforme relata o
biólogo, observações preliminares indicam que a poluição por microplásticos é
uma realidade em praticamente todas as praias investigadas, desde a Praia do
Goiabal em Calçoene, Amapá, até a Barra do Chuí, no Rio Grande do Sul, na
fronteira com o Uruguai. Até os Lençóis Maranhenses, recentemente reconhecidos
como Patrimônio Natural da Humanidade, apresentaram uma presença significativa
de microplásticos em suas lagoas.
“As praias mais
poluídas foram as das regiões Sul e Sudeste. Mas, no geral, diversas praias,
incluindo famosas orlas do Nordeste como Jericoacoara, no Ceará, e Praia de Boa
Viagem, no Recife, também apresentaram altos níveis de poluição, indicando a
contaminação tanto em regiões turísticas quanto em áreas menos visitadas”, diz
Malafaia.
• Segurança alimentar
O projeto Voz dos
Oceanos, por sua vez, tem como foco a segurança alimentar e finalizou em julho
uma expedição terrestre de 70 dias que avaliou mercados e feiras no litoral
brasileiro para diagnosticar microplásticos em organismos marinhos consumidos
pela população.
Fruto de uma parceria
da Família Schurmann (primeira família brasileira a dar a volta ao mundo a
bordo de um veleiro) e a Universidade de São Paulo (USP), com apoio do Programa
da ONU para o Meio Ambiente (Pnuma), o trabalho colheu amostras de sete espécies
de moluscos como ostras e mexilhões em 17 cidades de 15 estados — de Itajaí, em
Santa Catarina, até Belém, no Pará.
Chamados de bivalves
(formados por uma concha de duas partes, as valvas), esses moluscos são
considerados excelentes bioindicadores do status de poluição ambiental marinha
por serem organismos filtradores, usando suas brânquias para retirar matéria
orgânica da água.
Além de filtrarem
microplástico de forma involuntária no ato da alimentação, os bivalves se
destacam como biomarcadores de poluição na cadeia alimentar, uma vez que os
plânctons, na base da cadeia, fazem parte de sua dieta. E, também, por serem
presa para animais associados tanto ao fundo do mar quanto à coluna de água (o
espaço entre o fundo e a superfície).
“No laboratório,
iremos medir o tamanho e densidade de cada partícula e entender a composição
delas — se é polietileno, PVC, polipropileno —, e com isso categorizar o perfil
de microplásticos que estes animais estão ingerindo”, afirma a bióloga marinha
Marília Nagata, líder da expedição Voz dos Oceanos.
Utilizado em
embalagens de alimentos de uso único, o polietileno, feito de petróleo e gás, é
o tipo de plástico mais fabricado no mundo, com 103,9 milhões de toneladas
métricas por ano.
A montagem do
laboratório de tipificação e quantificação de microplásticos, que contará com
um equipamento de alta tecnologia capaz de identificar partículas menores do
que uma célula, é aguardada com grande expectativa pela equipe do Instituto
Oceanográfico da USP.
O estudo, liderado
pelo professor Alexandre Turra, é financiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e tem o apoio da Shimadzu,
empresa que cedeu o importante instrumento, o primeiro dedicado a este tipo de
estudo no Brasil.
“Meu grande objetivo
com a montagem do laboratório é que a gente consiga capacitar as pessoas no
país e criar oportunidades para expandir essas infraestruturas de análises para
todos os estados costeiros”, diz Turra, que também é coordenador da Cátedra Unesco
para Sustentabilidade do Oceano.
• Ostras contaminadas
Turra também
participou como orientador de um estudo feito com organismos bivalves no
Complexo Estuarino de Paranaguá, região costeira do Paraná, onde fica o maior
porto graneleiro da América Latina.
Publicado recentemente
por Suzane de Oliveira, sua aluna de doutorado, a pesquisa analisou ostras no
ambiente natural de toda a região, incluindo o Parque Nacional do Superagui,
importante unidade de conservação no litoral norte do estado.
Os resultados
mostraram mais de 90% das ostras coletadas contaminadas por alguma quantidade
de microplástico. Em alguns pontos próximos ao porto, centros urbanos e
desembocaduras de rios, a totalidade de ostras, ou seja, 100% de indivíduos
analisados, tinham contaminantes presentes em seu corpo.
A composição dos
microplásticos encontrados no trato digestivo dos organismos apresentou grande
quantidade de fibras, provavelmente derivadas de lavagem de roupas sintéticas;
náilon, presente em redes de pesca; e resíduos de borracha decorrentes de degradação
de pneus dos caminhões que circulam na Estrada da Graciosa em direção ao porto.
“Foi uma surpresa a
quantidade de partículas encontradas no Parque Nacional do Superagui, que fica
mais distante do porto e é uma área de preservação ambiental. E isso ilustra
como temos muito a compreender sobre os processos que geram os microplásticos,
e que vão remeter à sua origem”, destaca Turra, acrescentando como o grave
problema dos fiapos plásticos que se soltam das roupas sintéticas pode ser
mitigado com a adoção da pré-lavagem do tecido ainda na fábrica, antes de ser
vendido para a confecção.
A ação, diz ele, pode
reduzir em até 70% as fibras que se desprendem e são perdidas após dez lavagens
feitas em máquinas comuns nos domicílios brasileiros.
• 3,4 milhões de toneladas de plástico nos
oceanos
Outro importante
trabalho de identificação dos principais focos de vazamento de plástico para o
oceano ao longo da costa brasileira faz parte do Programa Blue Keepers, um
projeto conjunto entre a Cátedra Unesco e o Pacto Global da ONU, em parceria
com o Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo.
De acordo com dois
estudos já finalizados pelo projeto, o Brasil descarrega no oceano 3,44 milhões
de toneladas de plástico todos os anos, sendo que um terço do plástico
produzido no país pode atingir o litoral. A estimativa é de que entre 86
milhões e 150 milhões de toneladas de resíduos plásticos estejam acumulados no
mar.
A pesquisa revelou
também que o Brasil tem 600 grandes pontos de descarga para a poluição plástica
no Oceano Atlântico. As principais portas de entrada identificadas são as
bacias hidrográficas dos rios Amazonas (cerca de 160 mil toneladas/ano), São
Francisco (230 mil toneladas/ano), Baía de Guanabara (216 mil toneladas/ano) e
a do Rio da Prata, com mais de 1 milhão de toneladas por ano. Somados, estes
pontos são responsáveis por 67% do plástico que vai para o mar.
As zonas costeiras,
porém, não são as que apresentam a maior quantidade de partículas
microplásticas. Uma pesquisa conjunta da agência científica nacional da
Austrália e da Universidade de Toronto no Canadá revelou que a poluição
plástica no fundo do oceano pode ser até cem vezes maior do que a quantidade de
plástico flutuando na superfície.
No Brasil, o primeiro
registro científico de lixo em mar profundo foi publicado recentemente no
Marine Pollution Bulletin por pesquisadores do Instituto Oceanográfico da USP.
Inicialmente, o estudo
focava na biodiversidade e buscava a identificação de peixes de mar profundo durante as expedições
do projeto Deep-Ocean, financiado pela Fapesp. Mas a rede usada na coleta, para
surpresa dos cientistas, trazia junto com os animais embalagens de alimentos,
sacolas plásticas, garrafas, latas e utensílios de pesca. O plástico
representou mais da metade da quantidade desses itens e esteve presente em
todos os locais pesquisados. O lixo foi retirado entre 200 e 1.500 metros de
profundidade, a cerca de 200 km de distância da costa nos estados de São Paulo
e Santa Catarina
Com 430 milhões de
toneladas produzidas no mundo em 2023, dos quais 40% são usados uma única vez e
descartados em seguida, apenas 9% do plástico é reciclado no planeta.
No Brasil, onde a
reciclagem não chega a 2%, é aguardada desde 2022 a aprovação do projeto de lei
nº 2524/2022, em tramitação no Congresso Nacional, que busca reduzir a geração
de resíduos de plástico descartável e promover a economia circular do plástico.
• Proposta de tratado global
Distribuído pelos
quatro cantos do mundo pelas correntes marítimas, a dispersão do microplástico
pelos oceanos não tem fronteiras.
A esperança está no
Tratado Global do Plástico, que vem sendo negociado por 175 países membros da
ONU e terá o último encontro para redigir o texto final em novembro de 2024, na
Coréia do Sul.
O objetivo é reduzir
significativamente a poluição causada pelo plástico descartável de uso único,
através de um acordo juridicamente vinculante (com força de lei).
O principal entrave é
chegar a um consenso sobre restrições à produção de novos plásticos. A medida,
vista como primordial pelos ambientalistas, encontra forte resistência de
países ligados a grandes produtores de petróleo e gás.
No recente encontro
realizado no Canadá, Peru e Ruanda apresentaram uma proposta para a redução de
40% na produção entre 2025 e 2040 e tiveram o apoio de quase 30 países, como
França, Noruega, Chile e Senegal. O Brasil, assim como os Estados Unidos, não apoiaram a proposta.
Segundo Larissa Godoy,
coordenadora nacional do Projeto TerraMar e coordenadora-geral substituta de
Gerenciamento Costeiro do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do
Ministério do Meio Ambiente, o Brasil
tem defendido que o
Acordo Global seja vinculante, conforme a proposta do Pnuma (Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente), e que haja uma transição justa para a
economia circular do plástico, com a inclusão dos elos mais frágeis da cadeia,
como os catadores, mas também dos trabalhadores da indústria do plástico, que
precisam ter sua saúde e integridade protegidas.
Larissa diz que “sem
um verdadeiro incentivo à economia circular, à reciclagem e à demanda por
matéria-prima virgem, a redução da produção de plástico não ocorrerá”.
Fonte: Mongabay
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