quarta-feira, 16 de outubro de 2024

“Sem a intervenção do Estado, o capitalismo já teria morrido há muito tempo”, diz filósofo

A guerra sintetiza todas as contradições do capitalismo. O filósofo Maurizio Lazzarato lê cada disputa bélica atual para encontrar a linguagem das novas formas de acumulação, as estratégias que sustentam o valor econômico de uma moeda como o dólar que, segundo o autor italiano radicado na França, não está ligada à produtividade dos Estados Unidos, mas à sua força militar.

No entanto, seu livro Hacia una nueva guerra civil mundial?, publicado por Tinta Limón, não se ocupa apenas dos problemas superestruturais. Seu objetivo é recuperar a capacidade ofensiva dos setores populares, os recursos que permitam capitalizar uma força para intervir e modificar a arquitetura social.

O filósofo e sociólogo italiano recorre a uma confrontação binária e, desse modo, parece querer inserir a estrutura teórica de um marxismo clássico em um contexto no qual os conflitos costumam se desenvolver no interior do corpo social e nem sempre os sujeitos identificam na representação institucional a causa de seus pesares econômicos.

Lazzarato conversou por e-mail, de Paris, e em suas palavras a luta de classes é um conceito vigente para delimitar o drama político de nossos dias. Começa analisando o papel do presidente argentino:

“Milei volta a propor a teoria do Estado fraco justamente quando o mercado, com a guerra, não decide praticamente nada: o que produzir, onde produzir, com quem comercializar o quê e para onde exportar e importar é, no Ocidente, uma decisão que o Estado estadunidense impõe a todos os seus aliados.

A relação entre o Estado e o capital é necessária e indissolúvel. Juntos, constituem uma única máquina econômico-política. O Estado é territorial, o capital não pode globalizar a sua economia sem o Estado, porque no mercado mundial se depara não só com outros capitalistas, mas também com os Estados, seus interesses e seus exércitos. O Estado, por sua vez, precisa de capital para prosperar tanto dentro de suas fronteiras quanto na globalização.

Sem capital, a sua soberania fica vazia, sem salários e ingressos, sem trabalho e bem-estar, a sua legitimidade é frágil, a sua força interna e externa depende da produção capitalista. A propriedade privada, objetivo da produção, não é uma categoria econômica, mas jurídica, instituída e garantida pelo Estado. Sem a intervenção do Estado, o capitalismo já teria morrido há muito tempo”.

<><> Eis a entrevista.

•        Você estabelece uma relação entre a guerra e as novas formas de acumulação. O dólar marca as características desta forma de imperialismo?

A estratégia do dólar não é apenas econômica. É o resultado da ação convergente de uma série de atores: o governo estadunidense, Wall Street, as grandes empresas financeiras, o Federal Reserve e o Pentágono. É uma ilusão pensar que tudo flui através dos computadores. As mercadorias não só precisam ser produzidas, como também transportadas, e isso exige uma enorme logística que deve ser garantida e protegida pelas forças armadas estadunidenses.

Hoje, questiona-se o funcionamento do dólar como moeda nacional e internacional, que confere aos Estados Unidos uma enorme vantagem econômica porque lhe permite se endividar de forma praticamente ilimitada. O dólar está no centro do novo “Nomos da Terra”. Os Estados Unidos mobilizam a OTAN para criar uma frente de guerra que vai da Ucrânia a Taiwan, passando pelo Oriente Médio, para impedir que o mundo não-ocidental rejeite a sua moeda.

A relação entre o dólar e o Pentágono é estreita e direta, porque a moeda, antes de ser uma instituição econômica, é uma criação do Estado. A moeda parece poder agir sem limites, mas quando a crise bloqueia a sua circulação, só o Estado consegue tirá-la do beco sem saída em que a sua expansão infinita a colocou.

•        O único poder político que um povo pode encontrar é o de classe? Pergunto isto porque você aponta que a fragilidade de movimentos como o feminista está em sua incapacidade de pensar em termos de classe. Não poderíamos pensar, ao contrário, que estes movimentos tentam politizar espaços que antes não eram considerados políticos?

O feminismo, o pensamento descolonizador e o ambientalista não produzem nenhuma teoria da “revolução política”, preferindo em seu lugar a revolução “social”, simbólica e “cultural”. As autoridades podem tolerá-los, sem se preocuparem com o seu radicalismo. A recusa em manter a revolução política e a social unidas e inseparáveis expressa a grande impotência política da época.

O feminismo, o pensamento descolonizador e o ambientalista são “teorias revolucionárias” no sentido em que descrevem a sociedade em termos da sua possível transformação, revelando novas relações de dominação e exploração, mas sem elaborar uma “teoria da revolução”, ou seja, sem desenvolver uma estratégia para neutralizar e derrotar o inimigo, impor relações de força, construir uma organização, acumular forças capazes de abrir espaços políticos favoráveis à conquista de direitos econômicos e políticos para todos.

A força do marxismo residia em sua capacidade de manter uma teoria revolucionária (a crítica da economia política) e uma teoria da revolução (a luta de classes) unidas. Hoje, estes dois momentos da ação política estão separados. Caso não se unam nas condições do capitalismo contemporâneo, seguiremos submetidos à iniciativa do capital.

•        Você aponta que o consumo é um meio de individuação que coloca os sujeitos em uma posição totalmente desprovida de mediação frente ao Estado e o capital. É esta a razão pela qual muitas pessoas se comportam como se não pertencessem à sociedade, como se não soubessem em absoluto como ela funciona?

O lema de Margaret Thatcher, “a sociedade não existe, apenas os indivíduos”, concretizou-se graças ao consumismo, que estabelece uma relação direta entre o indivíduo e o capitalismo. A destruição dos laços sociais é, sem dúvida, provocada por esta individualização consumista. No entanto, o capitalismo não é apenas consumo individual. As lutas e as revoluções também impuseram um “consumo social” constituído por uma série de “serviços” sociais (saúde, educação, moradia, aposentadoria).

A revolução soviética e as revoluções do século XX infundiram um grande medo nos capitalistas e nos Estados, forçando-os a conceder o Estado de Bem-Estar Social. Este consumo não é individual, já que é o resultado de uma ação coletiva e é gerido, não por capitalistas privados, mas pelo Estado e abre as portas aos direitos coletivos. Por isso, o primeiro ponto do programa contrarrevolucionário dos últimos cinquenta anos foi a destruição do Estado de Bem-Estar Social, a demolição de todos os direitos sociais.

Milei é mais uma etapa neste processo de destruição do Estado de Bem-Estar Social. Tudo vai ser privatizado: a saúde, a educação e as aposentadorias. Cada um, individualmente, tem que enfrentar os riscos da vida, a partir dos ingressos que possui. No entanto, não se trata de fazer o Estado desaparecer (sem ele, o capitalismo cairia amanhã de manhã), mas de colocar todos os seus poderes ao serviço exclusivo dos capitalistas, dos financistas, dos ricos. Sem mediação, abre-se outra fase política: a guerra e a guerra civil, mais ou menos aberta.

 

Fonte: Entrevista com Maurizio Lazzarato, em IHU

 

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