“Sem a intervenção do Estado, o capitalismo
já teria morrido há muito tempo”, diz filósofo
A guerra sintetiza
todas as contradições do capitalismo. O filósofo Maurizio Lazzarato lê cada
disputa bélica atual para encontrar a linguagem das novas formas de acumulação,
as estratégias que sustentam o valor econômico de uma moeda como o dólar que, segundo
o autor italiano radicado na França, não está ligada à produtividade dos
Estados Unidos, mas à sua força militar.
No entanto, seu livro
Hacia una nueva guerra civil mundial?, publicado por Tinta Limón, não se ocupa
apenas dos problemas superestruturais. Seu objetivo é recuperar a capacidade
ofensiva dos setores populares, os recursos que permitam capitalizar uma força
para intervir e modificar a arquitetura social.
O filósofo e sociólogo
italiano recorre a uma confrontação binária e, desse modo, parece querer
inserir a estrutura teórica de um marxismo clássico em um contexto no qual os
conflitos costumam se desenvolver no interior do corpo social e nem sempre os
sujeitos identificam na representação institucional a causa de seus pesares
econômicos.
Lazzarato conversou
por e-mail, de Paris, e em suas palavras a luta de classes é um conceito
vigente para delimitar o drama político de nossos dias. Começa analisando o
papel do presidente argentino:
“Milei volta a propor
a teoria do Estado fraco justamente quando o mercado, com a guerra, não decide
praticamente nada: o que produzir, onde produzir, com quem comercializar o quê
e para onde exportar e importar é, no Ocidente, uma decisão que o Estado estadunidense
impõe a todos os seus aliados.
A relação entre o
Estado e o capital é necessária e indissolúvel. Juntos, constituem uma única
máquina econômico-política. O Estado é territorial, o capital não pode
globalizar a sua economia sem o Estado, porque no mercado mundial se depara não
só com outros capitalistas, mas também com os Estados, seus interesses e seus
exércitos. O Estado, por sua vez, precisa de capital para prosperar tanto
dentro de suas fronteiras quanto na globalização.
Sem capital, a sua
soberania fica vazia, sem salários e ingressos, sem trabalho e bem-estar, a sua
legitimidade é frágil, a sua força interna e externa depende da produção
capitalista. A propriedade privada, objetivo da produção, não é uma categoria
econômica, mas jurídica, instituída e garantida pelo Estado. Sem a intervenção
do Estado, o capitalismo já teria morrido há muito tempo”.
<><> Eis a
entrevista.
• Você estabelece uma relação entre a
guerra e as novas formas de acumulação. O dólar marca as características desta
forma de imperialismo?
A estratégia do dólar
não é apenas econômica. É o resultado da ação convergente de uma série de
atores: o governo estadunidense, Wall Street, as grandes empresas financeiras,
o Federal Reserve e o Pentágono. É uma ilusão pensar que tudo flui através dos computadores.
As mercadorias não só precisam ser produzidas, como também transportadas, e
isso exige uma enorme logística que deve ser garantida e protegida pelas forças
armadas estadunidenses.
Hoje, questiona-se o
funcionamento do dólar como moeda nacional e internacional, que confere aos
Estados Unidos uma enorme vantagem econômica porque lhe permite se endividar de
forma praticamente ilimitada. O dólar está no centro do novo “Nomos da Terra”.
Os Estados Unidos mobilizam a OTAN para criar uma frente de guerra que vai da
Ucrânia a Taiwan, passando pelo Oriente Médio, para impedir que o mundo
não-ocidental rejeite a sua moeda.
A relação entre o
dólar e o Pentágono é estreita e direta, porque a moeda, antes de ser uma
instituição econômica, é uma criação do Estado. A moeda parece poder agir sem
limites, mas quando a crise bloqueia a sua circulação, só o Estado consegue
tirá-la do beco sem saída em que a sua expansão infinita a colocou.
• O único poder político que um povo pode
encontrar é o de classe? Pergunto isto porque você aponta que a fragilidade de
movimentos como o feminista está em sua incapacidade de pensar em termos de
classe. Não poderíamos pensar, ao contrário, que estes movimentos tentam
politizar espaços que antes não eram considerados políticos?
O feminismo, o
pensamento descolonizador e o ambientalista não produzem nenhuma teoria da
“revolução política”, preferindo em seu lugar a revolução “social”, simbólica e
“cultural”. As autoridades podem tolerá-los, sem se preocuparem com o seu
radicalismo. A recusa em manter a revolução política e a social unidas e
inseparáveis expressa a grande impotência política da época.
O feminismo, o
pensamento descolonizador e o ambientalista são “teorias revolucionárias” no
sentido em que descrevem a sociedade em termos da sua possível transformação,
revelando novas relações de dominação e exploração, mas sem elaborar uma
“teoria da revolução”, ou seja, sem desenvolver uma estratégia para neutralizar
e derrotar o inimigo, impor relações de força, construir uma organização,
acumular forças capazes de abrir espaços políticos favoráveis à conquista de
direitos econômicos e políticos para todos.
A força do marxismo
residia em sua capacidade de manter uma teoria revolucionária (a crítica da
economia política) e uma teoria da revolução (a luta de classes) unidas. Hoje,
estes dois momentos da ação política estão separados. Caso não se unam nas condições
do capitalismo contemporâneo, seguiremos submetidos à iniciativa do capital.
• Você aponta que o consumo é um meio de
individuação que coloca os sujeitos em uma posição totalmente desprovida de
mediação frente ao Estado e o capital. É esta a razão pela qual muitas pessoas
se comportam como se não pertencessem à sociedade, como se não soubessem em
absoluto como ela funciona?
O lema de Margaret
Thatcher, “a sociedade não existe, apenas os indivíduos”, concretizou-se graças
ao consumismo, que estabelece uma relação direta entre o indivíduo e o
capitalismo. A destruição dos laços sociais é, sem dúvida, provocada por esta
individualização consumista. No entanto, o capitalismo não é apenas consumo
individual. As lutas e as revoluções também impuseram um “consumo social”
constituído por uma série de “serviços” sociais (saúde, educação, moradia,
aposentadoria).
A revolução soviética
e as revoluções do século XX infundiram um grande medo nos capitalistas e nos
Estados, forçando-os a conceder o Estado de Bem-Estar Social. Este consumo não
é individual, já que é o resultado de uma ação coletiva e é gerido, não por
capitalistas privados, mas pelo Estado e abre as portas aos direitos coletivos.
Por isso, o primeiro ponto do programa contrarrevolucionário dos últimos
cinquenta anos foi a destruição do Estado de Bem-Estar Social, a demolição de
todos os direitos sociais.
Milei é mais uma etapa
neste processo de destruição do Estado de Bem-Estar Social. Tudo vai ser
privatizado: a saúde, a educação e as aposentadorias. Cada um, individualmente,
tem que enfrentar os riscos da vida, a partir dos ingressos que possui. No entanto,
não se trata de fazer o Estado desaparecer (sem ele, o capitalismo cairia
amanhã de manhã), mas de colocar todos os seus poderes ao serviço exclusivo dos
capitalistas, dos financistas, dos ricos. Sem mediação, abre-se outra fase
política: a guerra e a guerra civil, mais ou menos aberta.
Fonte: Entrevista com
Maurizio Lazzarato, em IHU
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