Mudanças climáticas e a relação entre
eleições municipais e o Congresso Nacional
Em 2024, o Brasil
enfrentou sua maior tragédia climática nas enchentes devastadoras do Rio Grande
do Sul, enquanto o Norte do país vive o extremo oposto. A maior bacia
hidrográfica do mundo, a Amazônia, ainda atravessa a pior seca de sua história.
O Pantanal, maior planície alagada do planeta, foi consumido por incêndios, e
nuvens de fumaça tornaram o ar irrespirável em todo o país. 624 cidades
brasileiras declararam situação de emergência em razão da estiagem, e tudo isso
em apenas seis meses, de março a setembro deste ano.
Como afirmou a
ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, as mudanças climáticas não estão mais
batendo à porta, elas entraram na casa dos brasileiros e estão sentadas na sala
de estar. É nesse cenário que se desenrolam as eleições municipais deste ano.
As cidades brasileiras
são o palco onde as políticas públicas se materializam; são os municípios que
têm a responsabilidade de planejar o uso do solo, conceder licenciamentos
ambientais e promover as adaptações urgentes às mudanças climáticas. Por isso, duas
coisas são fundamentais: 1) analisar o perfil dos candidatos às prefeituras e
entender como as questões climáticas serão tratadas no cotidiano da população,
e 2) entender como essa eleição se relaciona com outro polo importantíssimo de
avanços e retrocessos ambientais na política, o Congresso Nacional.
<><> O
Congresso Nacional e as eleições municipais
Viver a crise
climática no dia a dia e não reconhecê-la é uma dissociação da realidade
difícil de explicar. Combater a agenda ambiental por simplificá-la apenas
enquanto uma pauta do campo adversário é um comportamento que remete ao
pensamento mágico infantil, embora o termo possa parecer injusto, haja vista as
crianças e jovens demonstrarem mais maturidade que muitos adultos para lidar
com esse tema que afetará decisivamente suas vidas. Parlamentares e políticos
que aprofundam conscientemente essa crise, testando os limites de algo que
podemos não conseguir reverter, agem com inconsequência vergonhosa e
inaceitável para quem deveria honrar o poder conferido pelo voto.
Grande parte dos
brasileiros tem agido como um paciente que recebeu um diagnóstico de saúde
grave e encontra-se entre as fases da negação e da raiva, com dificuldades de
reconhecer a seriedade da situação. Metade do Brasil segue agindo
irracionalmente, revoltada e desconectada da realidade climática que nos assola
coletivamente. Não há mais nenhum político biônico desde a redemocratização,
todos foram eleitos e, portanto, essa é uma responsabilidade compartilhada.
Contudo, os
representantes políticos atuais, sejam deputados, senadores, prefeitos,
vereadores, governadores ou o próprio presidente da República, todos escolhidos
por essa vontade popular ou que têm dela grande parte de sua base de governo,
não têm o direito de privar a população das decisões urgentes que precisamos,
do Executivo ao Legislativo. No pleito municipal deste ano, mais de oitenta
parlamentares se lançaram a prefeituras pelo país; destes, cinco se elegeram já
no primeiro turno e catorze passaram para o segundo, que acontecerá no próximo
dia 27 de outubro.
<><> Farol
Verde e a convergência ambiental dos parlamentares federais candidatos nas
eleições municipais
O Farol Verde,
inaugurado em 2022 com o intuito de monitorar a convergência ambiental dos
parlamentares e exigir transparência e accountability da 56ª legislatura
(2018-2022), ofereceu ao eleitorado brasileiro naquela eleição indicadores
estatísticos objetivos para avaliar os candidatos a deputado federal e senador,
baseado em seus posicionamentos em diversas votações chave. O compilado de
votações positivas e negativas para o meio ambiente formou o Índice de
Convergência Ambiental Total (ICAt), com o qual se traçou diversos perfis,
desde aqueles individuais, fundamentais para o eleitorado, como também de
partidos políticos e bancadas regionais.
Em 2024, com vistas às
eleições municipais e com o objetivo de avaliar as candidaturas parlamentares,
o Farol Verde analisou diversas votações nominais na Câmara dos Deputados e no
Senado Federal. Pautas positivas listadas pelas organizações que compuseram a
Virada Parlamentar Sustentável em 2023 e 2024, e as matérias do Pacote da
Destruição foram cruzadas com a apreciação de vetos, destaques e a destinação
de emendas parlamentares para compor o perfil de todos os partidos e
parlamentares.
Desses números totais,
apresentamos a seguir o recorte dos parlamentares candidatos nas eleições
municipais:
<><>
Parlamentares eleitos no 1° turno das eleições municipais de 2024
Entre os parlamentares
eleitos nas eleições municipais em primeiro turno, o cenário é bastante
preocupante, com quatro considerados péssimos. O deputado Washington Quaquá,
eleito em Maricá (RJ), foi o único cuja convergência é considerada boa, com
70%. Os demais deputados, Alberto Mourão, eleito em Praia Grande (SP) pela
sexta vez, Dr. Benjamim, eleito em Açailândia (MA), e Gerlen Diniz, eleito em
Sena Madureira (AC), não chegaram sequer à marca dos 20% de convergência
ambiental – enquanto Hélio Leite, eleito em Castanhal (PA), atingiu a
lamentável marca de 0%. Em outras palavras, com apenas uma exceção, os
parlamentares eleitos a prefeito no primeiro turno se comportaram de forma
inequívoca como adversários do meio ambiente na Câmara dos Deputados.
<><>
Candidatos que passaram para o 2° turno
Entre os parlamentares
que passaram para o segundo turno, apenas três alcançam uma convergência
ambiental satisfatória (acima de 50%): o deputado Guilherme Boulos (Psol),
candidato em São Paulo (SP), com 100% de convergência; a deputada Maria do
Rosário (PT), candidata em Porto Alegre (RS), com 68,75%, e a deputada Natália
Bonavides (PT), candidata em Natal (RN), com 88,89%.
Entre os candidatos
classificados como ruins ou péssimos, destaca-se o deputado Abilio Brunini
(PL), com convergência ambiental nula (0%), candidato em Cuiabá (MT). Os
deputados André Fernandes, candidato em Fortaleza, Capitão Alberto Neto,
candidato em Manaus, Carlos Jordy, candidato em Niterói, e Delegado Éder Mauro,
candidato em Belém (todos do PL), não chegaram a atingir dois dígitos no ICAT.
<><> ICAT
por partido político no Senado e Câmara Federal
Quando analisamos os
partidos, percebemos que apenas aqueles do campo progressista alcançam mais de
50% de convergência ambiental, o piso para serem considerados minimamente
comprometidos com as pautas socioambientais. Na Câmara dos Deputados, o PSOL
lidera com a maior convergência ambiental (98,9%), seguido por PCdoB (94,2%),
REDE (83,3%), PT (73,7%), PV (64,6%), PSB (60,6%) e PDT (56,7%). No Senado,
onde PSOL, PCdoB, REDE e PV não possuem representantes, o PT lidera com 78,5%,
seguido pelo PDT com 73,3%. O PSB, que na Câmara tem uma convergência acima da
média, no Senado registra apenas 34,6%.
Os piores partidos
ambientalmente na Câmara dos Deputados são, por ordem, o NOVO (6,9%), PL
(7,8%), Republicanos (14,1%), PSDB (15,2%), União Brasil (15,6%), PP (16,9%) e
MDB (17,4%). No Senado, o cenário é ainda mais extremado: Republicanos (4,1%),
PL (5,7%) e União Brasil (7,5%), e NOVO, Podemos, PP e PSDB têm vergonhosos 0%
de convergência ambiental.
<><> ICAT
por gênero no Senado e Câmara Federal
Um último dado que
salta aos olhos é o Índice de Convergência Ambiental Total das mulheres
parlamentares, o dobro dos homens no Senado, e 51,38% maior na Câmara. Tamanha
diferença diz muito sobre a maturidade da representação política feminina
perante o desafio imposto pelas mudanças climáticas, e a centralidade da defesa
permanente da participação feminina na política, em tempos de desastres
ambientais e anistias por não cumprimento do mínimo de candidaturas de mulheres
no Congresso.
No cruzamento de dados
com foco na representação política dos biomas, a situação é particularmente
preocupante em relação ao Pantanal e à Amazônia. Estratificando os dados da
Câmara, estes são os dois biomas representados por parlamentares com pior desempenho
no ICAT: a Amazônia pontua 22,39% e o Pantanal, 19,39%. No Senado, os números
são ainda piores para estes que foram os biomas mais atingidos por estiagem,
nuvens de fumaça e incêndios florestais. Os senadores da Amazônia tiveram
21,47% de convergência e os do Pantanal, inacreditáveis 0%, ou seja, atuaram
contra o meio ambiente em absolutamente todas as oportunidades.
<><>
Conclusão
Os municípios ordenam
a ocupação do solo de forma sustentável ou predatória. São eles que adotam
políticas de arborização urbana, de coleta, tratamento e devolução de efluentes
nas bacias hidrográficas, é onde são definidas as políticas de mobilidade urbana
por trem, metrô, ônibus, carro ou bicicleta, e neles se materializam as
políticas públicas definidas em lei no Congresso. Em suma, grande parte da
responsabilidade direta sobre emissões de poluentes, e a quase totalidade da
responsabilidade sobre o planejamento e a adaptação climática recai sobre os
municípios que foram às urnas em 6 de outubro, e voltarão a elas no próximo dia
27.
A análise dos índices
de Convergência Ambiental Total (ICAT) do Congresso Nacional revela a
polarização partidária das pautas socioambientais, reflexo do acirramento
político das eleições de 2022. Os partidos progressistas e de esquerda
demonstram um significativo compromisso legislativo com a agenda ambiental,
enquanto os partidos conservadores de direita registram uma convergência
baixíssima, tanto no Senado como na Câmara. Tais índices são refletidos no
comportamento dos partidos políticos e podem servir de valiosa referência para
a definição do voto, em tempos de choque por mudanças climáticas.
Todavia, o primeiro
turno das eleições municipais de 2024 revelou um aprofundamento das dinâmicas
políticas observadas no Congresso Nacional no cenário municipal. A esquerda
teve derrotas expressivas, mas manteve alguma estabilidade, enquanto o chamado
centrão, que já domina o parlamento, ampliou significativamente sua presença
nas prefeituras do país. Em contrapartida, a direita tradicional sofreu uma
queda acentuada, enquanto a extrema direita consolidou sua influência como
força política que independe de uma única referência personalista.
Um fator determinante
nessa dinâmica foi a influência direta do Congresso na reeleição de prefeitos.
As emendas parlamentares tiveram um papel crucial nas eleições municipais,
elevando a taxa de reeleição para 89,3% nas 178 cidades mais beneficiadas, o que
evidencia o peso da apropriação do orçamento público pelo Legislativo Federal
na reconfiguração política em curso no país. É de se notar que ações relativas
ao meio ambiente não foram prioridade também nesta frente, com apenas 29
destinações, a despeito de 2024 ter sido o ano da maior sucessão de desastres
climáticos da história do país.
Assim como o Congresso
Nacional influenciou decisivamente essas eleições, o novo quadro político
municipal impactará diretamente a próxima composição parlamentar federal,
motivo por que tantos deputados federais e senadores em exercício se
candidataram a prefeituras. A conexão entre eleições parlamentares e municipais
é umbilical no sistema político brasileiro, do que se pode deduzir ser esta
eleição municipal de 2024 determinante para a governabilidade da próxima
Presidência da República, a ser eleita em 2026. Vale lembrar, quase 12% dos
gastos discricionários do orçamento federal são hoje controlados pelo
Congresso, fato enormemente relevante no contexto da emergência climática
atual, sobretudo quando analisamos a convergência ambiental dos partidos a que
pertencem os prefeitos eleitos em 2024, que serão destinatários dessas emendas.
As eleições municipais
deste ano serão também determinantes sobre a forma como o Brasil se posicionará
globalmente diante das mudanças climáticas. A conta é simples: o mundo precisa
do Brasil para conter as mudanças climáticas, de maneira que seja possível à
humanidade se adaptar mantendo algo de sua qualidade de vida, democracia,
direitos e dignidade, e uma parcela enorme do que precisa ser feito passa pela
gestão ambiental dos 5.569 municípios brasileiros.
Não há como separar as
coisas. O eleitorado nas cidades precisa abandonar a postura de negação e raiva
do paciente em crise, aceitar a realidade com maturidade e fazer as escolhas
possíveis, optando por candidaturas lúcidas, que compreendam o desafio das
mudanças climáticas, e que tenham o compromisso de enfrentá-las com todos os
instrumentos disponíveis. Contudo, infelizmente, esse corolário ainda não tem
sido refletido nas urnas, pelo menos não no primeiro turno.
O direito ao meio
ambiente previsto em Constituição deveria ser tratado como prioridade coletiva,
uma vez que afeta a todos independentemente do espectro político, mas tornou-se
vítima do fanatismo ideológico anticientífico, negacionista e autoritário que
tanto degradou as instituições e a democracia brasileira, contaminando o polo
ideológico de direita em sua integralidade, como comprovam os dados do Farol
Verde 2024. É urgente que esse polo ideológico, inerente à história
republicana, resgate suas bases democráticas e seja capaz de dialogar
novamente, não sobre se as mudanças climáticas são realidade ou não, mas sobre
as melhores formas de nos adaptarmos a elas. Democracia, ciência e
sustentabilidade estão intrinsecamente conectadas, e a direita brasileira
precisa entender e respeitar isso se quiser preservar as condições de vida e
desenvolvimento econômico do país.
A conclusão que se
impõe, acima de ideologias, é a necessidade urgente de despolarizar
politicamente a questão ambiental, que não é de esquerda, mas é de toda a
humanidade, e promover a proteção do planeta e de seus recursos naturais
enquanto objetivo compartilhado por todos. Essa despolarização, contudo, não
pode partir de uma postura de concessões a uma agenda “moderada”, mas só poderá
ser efetiva a partir do abandono do extremismo anticientífico que não reconhece
a realidade, por parte dos partidos de direita no Brasil. O tempo é de
emergências, e uma ética científica, ambiental e democrática acima de
conveniências eleitorais precisa ser a linha comum a partir de onde se inicia o
debate público. A alternativa à democracia, à sustentabilidade e à ciência é o
colapso, como nos mostra a história. A nossa está sendo feita neste momento.
Fonte: Por Marcos
Woortmann, Sylvia Bomtempo e Luiza Chaer, no Le Monde
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