Mapa para livrar o Brasil do Agronegócio
O Brasil enfrenta uma
das mais severas secas de sua história. No final de setembro de 2024, 58% do
território nacional estava em situação de seca, e dentro dessa área, uma
parcela significativa sofre com uma escassez hídrica severa. Esta é considerada
a maior seca em 73 anos no Pantanal, e a mais grave em 40 anos na Amazônia.
Além de prejudicar a biodiversidade, a crise hídrica afeta drasticamente o
equilíbrio dos ecossistemas e amplia o risco de incêndios florestais, agravando
ainda mais a vulnerabilidade ambiental do país.
Os impactos cada vez
mais intensos e devastadores de eventos climáticos extremos, têm evidenciado a
urgência de práticas que não só aumentem a resiliência dos ecossistemas, mas
que também promovam uma adaptação a longo prazo, tanto ambiental quanto social,
nas regiões afetadas. Nesse cenário, fica cada vez mais evidente a conexão
entre as práticas do agronegócio e a intensificação dos eventos climáticos
extremos, especialmente considerando os impactos deste setor sobre o
desmatamento, as alterações no uso do solo para a expansão da fronteira
agrícola, o emprego de hidrocarbonetos na síntese de fertilizantes, e a
contaminação ambiental gerada pela aplicação indiscriminada de agrotóxicos e
pelo acúmulo de resíduos derivados desses processos.
A expansão agrícola
intensiva, especialmente nas áreas de monocultura de soja e milho, está ligada
ao desmatamento, à degradação dos solos e à redução da vegetação nativa, que
são barreiras naturais contra enchentes, intensificando a vulnerabilidade do território
a chuvas intensas, levando ao escoamento excessivo de água e ao aumento das
inundações.
As queimadas de
florestas e áreas de pastagem, além de serem crimes ambientais, são alimentadas
por longas estiagens. Em setembro de 2024, o Brasil registrou 7.322 focos de
incêndio, representando 71,9% das queimadas na América do Sul. O Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelou que, ao longo do ano, o país
contabilizou mais de 80 mil focos de queimadas, um aumento de 30% em relação à
média histórica.
A expansão das
fronteiras agrícolas, que destrói biomas como a Amazônia, Cerrado e Pantanal, é
um dos principais fatores que agravam a crise. A falta de controle ambiental e
práticas criminosas de alguns setores do agronegócio intensificam a devastação,
e se beneficiam da devastação de terras para a criação de pastagens e cultivo
de monoculturas. As queimadas, agora mais frequentes e intensas, têm provocado
crises ambientais e de saúde pública, com impactos diretos no regime de chuvas.
O governo federal
reconhece a necessidade de recursos não apenas para mitigar desastres já em
curso, mas também para prevenir eventos futuros. Há um apelo por uma gestão de
risco mais eficaz, que inclua a preparação para desastres relacionados às
mudanças climáticas.
A ministra Marina da
Silva destacou que, atualmente, existem 1.942 municípios vulneráveis a essas
mudanças, de acordo com dados históricos. Portanto, além de lidar com as
emergências em curso, é essencial investir em políticas públicas de prevenção e
adaptação de médio e longo prazo como parte de um esforço contínuo para mitigar
os impactos futuros das crises ambientais.
Entre os grupos mais
vulneráveis às mudanças climáticas estão as (os) agricultoras(es) familiares,
povos e comunidades tradicionais. Ao mesmo tempo, são esses mesmos grupos que
têm demonstrado maior capacidade de adaptação, implementando práticas herdadas
de seus antepassados e desenvolvidas em diálogo com outras famílias, técnicos e
pesquisadores a partir de uma abordagem agroecológica. Neste contexto, a
agroecologia se destaca como uma abordagem transformadora, capaz de enfrentar a
insegurança alimentar e as mudanças climáticas.
Em resposta a esses
desafios, redes de base e instituições de desenvolvimento têm promovido e
sustentado a agroecologia como um modelo viável para enfrentar a crise gerada
pelo modelo agrícola industrializado, ao mesmo tempo em que respeitam a
heterogeneidade socioecológica das regiões. Em busca de inspiração nessas
experiências, e buscando traçar um panorama da agroecologia no estado do Rio de
Janeiro, a Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ) realizou, entre
julho e outubro de 2023, um mapeamento de experiências por meio da plataforma
Agroecologia em Rede. O objetivo foi identificar e qualificar as estratégias
adotadas por agricultoras(es), movimentos sociais, pesquisadoras(es) e redes em
todas as regiões do estado do Rio de Janeiro. Foram mapeadas 260 experiências,
agrupadas em algumas categorias: “produção de alimentos” (180 experiências), Em
seguida, a categoria “comércio, feiras e outras formas de venda de produtos”,
(124 experiências). Destacam-se também o “beneficiamento” (81 experiências) e
as iniciativas relacionadas à “construção do conhecimento” (77 experiências).
O mapeamento revelou
estratégias inovadoras desenvolvidas em um período marcado pela crise de
insegurança alimentar, agravada pela pandemia e pelo desmonte de políticas
públicas federais voltadas à Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Dentre as
iniciativas, 42 foram dedicadas ao acesso a alimentos, como a distribuição de
marmitas e cestas, cozinhas comunitárias, merenda escolar e produção em hortas
para autoconsumo. As experiências evidenciaram a adaptação de algumas
experiências ao contexto sanitário, com o uso de novas tecnologias de vendas
digitais para comercializar cestas de alimentos agroecológicos.
É importante destacar
a retomada das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional no
governo Lula desde 2023. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Fome Zero
revelou que 13 milhões de pessoas deixaram de passar fome entre 2022 e 2023. O
governo lançou iniciativas como a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que
tem como objetivo mobilizar recursos globais para combater a fome, e o Programa
de Cozinhas Solidárias, que busca apoiar a oferta de refeições em comunidades
vulneráveis, promovendo cursos de capacitação e abastecendo essas cozinhas com
alimentos adquiridos por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Além
disso, o Programa Cesta Básica Saudável visa incentivar o consumo de alimentos
in natura e saudáveis. No entanto, essas iniciativas não abordam adequadamente
a necessidade de enfrentar as mudanças climáticas, que representam um dos
principais desafios enfrentados pelos agricultores, e não reconhecem o valor da
agroecologia na abordagem conjunta do combate à fome e às mudanças climáticas.
As experiências
mapeadas pela AARJ destacam as mudanças climáticas como um dos principais
desafios enfrentados pelas comunidades, evidenciando o desenvolvimento de
práticas locais para mitigar seus impactos. Entre essas práticas, a
implementação de Sistemas Agroflorestais (SAFs) se destaca como uma estratégia
eficaz. A diversificação de culturas e a promoção da biodiversidade nos
sistemas agroecológicos aumentam a resiliência dos agroecossistemas a eventos
climáticos adversos, como secas, inundações e variações extremas de
temperatura. Uma maior biodiversidade contribui para a criação de ecossistemas
mais equilibrados, que são menos vulneráveis a pragas e doenças, além de
facilitar a adaptação a condições climáticas variáveis.
Além disso, diversas
tecnologias sociais, como sistemas de captação de água e métodos de redução de
resíduos, foram mencionadas como ferramentas cruciais para enfrentar esses
desafios. A agroecologia também valoriza o conhecimento tradicional e as práticas
locais, oferecendo soluções adaptadas ao contexto específico de cada
comunidade. Essa abordagem fortalece a autonomia dos pequenos agricultores e
promove justiça social ao fornecer alternativas sustentáveis e economicamente
viáveis, especialmente em regiões onde o agronegócio tem contribuído para a
degradação ambiental e o deslocamento de comunidades rurais.
É fundamental
evidenciar essas estratégias como parte do combate à fome e às mudanças
climáticas. Essas experiências demonstram que a agroecologia é um caminho
promissor para incentivar a valorização de sistemas alimentares mais saudáveis
e sustentáveis.
As principais escalas
de abrangência das experiências mapeadas são de âmbito municipal e
intermunicipal, evidenciando a predominância de uma diversidade de iniciativas
“locais” que se conectam com o território. Essa diversidade ressalta a riqueza
das práticas agroecológicas, que podem estabelecer vínculos para além de seus
municípios, através da participação em redes e articulações regionais. No
entanto, as dificuldades e demandas identificadas nesse mapeamento ressaltam a
urgência de projetos e políticas públicas que integrem a construção de
conhecimento—como assessoria técnica, capacitação e suporte à gestão—com o
atendimento às necessidades materiais dessas iniciativas. Também indicam que é
fundamental garantir o acesso a insumos essenciais, equipamentos e tecnologias
sociais, além de oferecer suporte logístico para a comercialização dos produtos
agrícolas. Um exemplo concreto dessa dinâmica é a agricultura urbana, que
enfrenta desafios específicos, como a dificuldade de acesso a insumos básicos,
como sementes, e os entraves para obter financiamento público e acesso à terra
em áreas urbanas. Embora a promulgação da Lei Nº 14.935, que institui a
Política Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana, tenha sido um passo
positivo em julho deste ano, sua implementação ainda enfrenta desafios
significativos. A integração da agricultura urbana ao planejamento urbano tem
sido insuficiente, resultando em conflitos com o uso do solo e na falta de
espaço adequado para o cultivo.
O mapeamento tem
promovido um processo de reflexão e articulação, contribuindo para a construção
da carta política elaborada pela AARJ, que foi apresentada às candidatas e
candidatos nas eleições municipais. Como resultado dos diálogos com
candidaturas, movimentos sociais e a sociedade civil, foi firmado um
compromisso com o fortalecimento dos sujeitos e práticas agroecológicas no
Estado do Rio de Janeiro, coletando 72 assinaturas de candidatos em 26
municípios, sendo 13 para a prefeitura e 59 para a vereança.
No contexto federal,
em 13 de setembro, organizações e movimentos sociais ligados à agroecologia
enviaram uma carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, repudiando o veto
do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) ao Programa Nacional de Redução de
Agrotóxicos (Pronara). Essa decisão inviabilizou o avanço do Plano Nacional de
Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), cujo lançamento já foi adiado
quatro vezes. O documento foi divulgado por integrantes da Comissão Nacional de
Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), que demandam uma posição clara do
Governo Federal sobre a redução de agrotóxicos e a implementação do plano.
Na carta, os
movimentos ressaltam a urgência de fortalecer políticas públicas voltadas à
agroecologia, visando à proteção da saúde das famílias brasileiras e da
biodiversidade. A reunião ocorrida no dia 17 de setembro entre Lula, ministros
e representantes dos outros Poderes discutiu a temática, evidenciando a
crescente pressão social em torno do assunto. Em um vídeo divulgado, o
presidente expressou abertura ao diálogo para encontrar soluções que possam
alterar o atual cenário, embora tenha destacado a forte pressão exercida por
empresários do setor de agrotóxicos no Congresso. A mobilização continua a
ganhar força, com o movimento agroecológico buscando ampliar a conscientização
da sociedade sobre a importância do Pronara.
A agroecologia deve
ser reconhecida como uma estratégia fundamental no combate às mudanças
climáticas, ressaltando os esforços das redes e movimentos para mapear e
compreender experiências de inovação social que representam tanto estratégias
de resiliência quanto de combate à fome. Esse enfoque é particularmente
relevante no contexto da COP 30, onde serão debatidos as falhas que
contribuíram para a crise atual e o papel do Brasil na diplomacia ambiental,
incluindo a promessa do governo de criar uma autoridade climática.
É politicamente
crucial reunir e analisar as contribuições da agroecologia para que ela seja
reconhecida como parte essencial de um plano de adaptação e mitigação das
mudanças climáticas. Essa análise pode orientar os tomadores de decisão a
adotarem políticas mais eficazes, enfrentando os desafios climáticos e
garantindo a sustentabilidade dos sistemas alimentares no país.
• Experiências
O Mutirão Solidário
CEDAC (Centro de Ação Comunitária) é uma experiência de garantia de acesso a
alimentos e enfrentamento à fome, por meio da distribuição de marmitas e
cestas. Iniciado em 2020, é conduzido por uma organização dedicada à Educação
Popular. A gestão dessa iniciativa é coletiva e comunitária, liderada
principalmente por mulheres. Uma ampla gama de atores está envolvida, desde
agricultores familiares e camponeses até agricultores urbanos, assentados de
reforma agrária, educadores, estudantes, profissionais de saúde e membros de
povos e comunidades tradicionais.
A Experiência Ile Axé
Oba Labi, um ponto de cultura, e também uma experiência de saúde, começou em
2023, na cidade do Rio de Janeiro (região Metropolitana). O Quintal das
Pedrinhas Miudinhas representa um resgate das práticas ancestrais de conexão
com a natureza, dedicado à preservação e proteção das plantas tradicionais de
matriz africana. A produção para o consumo livre de agrotóxicos é também uma
prática essencial. Além de ser um espaço de cultivo e preservação, o local é um
centro de atividades socioeducativas e culturais, no qual são promovidos
eventos e encontros. Faz parte do Arranjo Local de Guaratiba, do GT de Combate
do Racismo Ambiental da Frente Parlamentar Ambientalista do Rio de Janeiro e
tem parceria com o Projeto Ará (Fiocruz Mata Atlântica).
A jornada do Sítio
Vinhático, localizado em Bananeiras, município de Silva Jardim (regional
Serramar), teve início em 2020, com a aquisição de uma propriedade por três
mulheres. Atualmente são quatro mulheres, e juntas elas formam um coletivo que
promove a agroecologia na região, revitalizando áreas anteriormente desmatadas
com sistemas agroflorestais (SAFs) e pequenas plantações. Essa experiência
coletiva e comunitária é conduzida principalmente por mulheres brancas, no meio
rural, com alcance municipal. Integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores
(MPA), o Sítio Vinhático tem como espaço de beneficiamento uma cozinha caseira,
onde os produtos são preparados e embalados com rótulos e marca específica.
Fonte: Por Ingrid
Pena, em Outras Palavras
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