quarta-feira, 16 de outubro de 2024

‘Lava jato’ criou sistema clandestino para compartilhar delações em andamento

A “lava jato” de Curitiba criou um sistema compartilhado por procuradores de diversos estados para acesso coletivo aos termos e anexos de delações premiadas, inclusive de acordos não concluídos, a despeito da obrigação de sigilo das colaborações e do princípio do promotor natural.

A ferramenta, mais uma criada para que os procuradores combinassem formas de surpreender investigados e, assim, forçar condenações de réus, funcionava clandestinamente, já que não há previsão legal para sua implementação, nem qualquer registro formal de sua existência.

A armação foi batizada por Deltan Dallagnol, ex-coordenador da autodenominada força-tarefa, de “Sisdelatio”. O sistema foi criado informalmente no Paraná, a pedido do próprio Deltan, e funcionou pelo menos entre 2016 e 2019.

Tanto a Procuradoria-Geral da República quanto a Procuradoria da República no Paraná disseram à revista eletrônica Consultor Jurídico que não há registro sobre a existência do “Sisdelatio”.

“Não existe, no Ministério Público Federal, sistema com essa denominação e/ou finalidade”, disse a Procuradoria da República do Paraná em nota. “Já tentamos confirmar, mas ninguém se lembra de um sistema com esse nome, nem localizamos nenhum registro”, informou o órgão.

Segundo ministros do Supremo Tribunal Federal ouvidos pela ConJur e subprocuradores que atuam no Distrito Federal, o compartilhamento é irregular. “Como a clandestinidade era a regra, não me chegou ao conhecimento tal procedimento”, disse um deles em reserva.

De acordo com eles, a conduta, que, além de antiética, é ilegal, viola os princípios constitucionais da legalidade, da moralidade e do devido processo legal, que garante a imparcialidade e a justiça no processo.

•        ‘Sisdelatio’

O compartilhamento de termos e anexos de delações fechadas e em andamento ocorria pelo menos entre procuradores de Curitiba e do Rio de Janeiro, segundo apontam diálogos aos quais a ConJur teve acesso.

Em 7 de março de 2017, Deltan disse a procuradores do Rio que havia um “super sistema” em que o MPF incluía todos os termos de delação e anexos, “inclusive de acordos não fechados”.

Em seguida, Deltan convidou os colegas do outro estado para que também acessassem o sistema e incluíssem termos de delações, criando uma base de dados unificada.

“Colegas do RJ, temos um super sistema em que colocamos todos os termos de delação e anexos, inclusive de acordos não fechados. Vocês querem se integrar ao sistema? Podemos unificar nossas bases e vocês terem acesso integral também. Que tal?”, disse ele — os diálogos são reproduzidos nesta reportagem em sua grafia original.

“Não sei se todos sabem, mas o Sisdelatio tem também os anexos de acordos não fechados, que não devem ser usados para iniciar investigações, embora possam ser consultados, até para avaliar se a relevância mudou em face de novas informações”, reforçou Deltan.

Eduardo El Hage, então coordenador da “lava jato” no Rio, respondeu: “Acho ótimo, Deltan! Vou falar com os outros colegas aqui”. Também havia no grupo procuradores do Distrito Federal.

•        Desde 2016

O programa começou a funcionar em 2016. E sua criação foi solicitada por Deltan em 2015, segundo o próprio ex-procurador afirmou no livro A Luta Contra a Corrupção.

Em um trecho, ele conta que pediu que fosse feito um sistema para que pudesse buscar palavras-chave em depoimentos. Não há menção, no entanto, ao compartilhamento entre estados.

“A necessidade de pesquisar nomes e palavras nos depoimentos e anexos das delações fez com que, na volta do recesso de Natal de 2015, eu pedisse à equipe da Procuradoria no Paraná a criação de um novo sistema de busca, que foi apelidado de ‘Sisdelatio’”, contou Deltan no livro.

O sistema começou a funcionar em maio de 2016, segundo indica uma mensagem de Deltan a colegas. “Sisdelatio: está operacional, já alimentado com a maior parte das colaborações”, disse ele em uma mensagem de 21 de maio de 2016.

Com o manejo irregular de delações em andamento, a procuradora da “lava jato” de Curitiba Jerusa Viecili pediu que os colegas tratassem o material com cuidado, uma vez que não era bom dar pinta de que o MPF estava utilizando e compartilhando livremente colaborações que não foram homologadas.

“People, cuidado ao usar o sisdelatio: há termos que estão no sistema mas não baixaram formalmente do STF!”, afirmou em mensagem de 26 de julho de 2016, pouco depois da criação da ferramenta.

•        Sigilo das delações

O advogado Gustavo Badaró disse à ConJur que desde 2013 as delações têm caráter sigiloso, em especial aquelas em andamento. Com a lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), explica ele, o sigilo foi reforçado.

O artigo 7º da Lei 12.850/2013 previa que “o acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia”.

Em 2019, a norma passou a vigorar com a seguinte redação: “O acordo de colaboração premiada e os depoimentos do colaborador serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidade em qualquer hipótese”.

De acordo com o advogado, não poderia, portanto, ser dada publicidade aos termos ou haver o compartilhamento de dados de delações entre órgãos do MP.

“O acesso era só para o procurador da República que atuava no caso, ou para os integrantes da força-tarefa responsável pelo caso. Mas não poderia ter compartilhamento, por exemplo, com MPs de outros estados. Nem com outros membros do MPF que não integrassem a força-tarefa”, afirmou Badaró.

O advogado sustenta que a violação do sigilo pode levar até à rescisão de acordos.

“As delações são juntadas nos respectivos processos e têm publicidade restrita. Somente com ordem judicial pode haver o compartilhamento. A violação do sigilo sem ordem judicial, em princípio, pode caracterizar até mesmo a rescisão do acordo por sua violação pelo MP.”

 

•        Moro sugere que procuradores dos EUA recebiam dinheiro em trecho da ‘Vaza Jato’

Um trecho extraído das conversas entre o ex-juiz Sergio Moro, à época titular da 13ª Vara Federal de Curitiba (PR), responsável pela Operação Lava Jato, e a força-tarefa de promotores do Ministério Público Federal (MPF) na capital paranaense, chefiados por Deltan Dallagnol, sugere que procuradores dos EUA poderiam estar recebendo dinheiro para participarem das investigações que transcorriam no Brasil e envolvendo empresas brasileiras. Os dados foram retirados dos conteúdos que vieram a público no chamado escândalo da 'Vaza Jato', que revelaram um conluio entre o MPF e a circunscrição da Justiça Federal no Paraná sob responsabilidade de Moro.

Numa conversa em 4 de novembro de 2015, o então magistrado todo-poderoso pergunta a Dallagnol se ele tomou conhecimento de uma ocorrência envolvendo um determinado processo, que é citado pelo número. Com a negativa do procurador que chefiava a Força Tarefa da Lava Jato, Moro diz que seria o caso “merecedor de um contato direto” com os norte-americanos” para “colocar a procuradoria dos EUA [US Attorney] para trabalhar”.

Na sequência, o hoje senador afirma que as autoridades da nação estrangeira deveriam ser instadas a fazer algo porque até aquele momento não apresentaram ‘niente’ [nada, em italiano] e que elas estariam apenas ‘sugando’.

<><> Veja a transcrição do trecho:

4 NOV

15 18:17:35 - Moro: Caro, estará de férias em janeiro?

18:29:16 - Dallagnol: Provavelmente até o dia 15

18:29:57 - Dallagnol: Obrigado

18:32:04 - Moro: Vc viu a decisão do evento 16 no processo 5048739-91? A diligência merece um contato direto com as autoridades do US.

21:22:08 - Dallagnol: Não tinha visto... creio que não houve intimação nossa ainda. Vamos providenciar...

21:22:16 - Dallagnol: Obrigado por informar

21:24:24 - Moro: Colocar US attorneys para trabalhar pois até agora niente rs.

21:25:16 - Dallagnol: kkkk

21:25:24 - Moro: Eles estão só sugando por enquanto

21:25:32 - Moro: Hoje falei com eles sobre as contas lá da Ode pra ver se fazem algo rs

21:28:16 - Moro: Essa agora talvez seja mais simples e talvez mais relevante.

21:30:36 - Dallagnol: Essa é fácil

 

•        Sisdelatio, o banco de dados clandestino, pode ser a prova de que a Lava Jato agia como polícia secreta. Por Joaquim de Carvalho

A revelação de que o Ministério Público Federal em Curitiba criou um sistema clandestino para compartilhar informações que deveriam ser mantidas sob sigilo tem potencial para anular todos os acordos de delação premiada celebrados pela Lava Jato.

“É gravíssimo”, diz o advogado Antonio Francisco Basto, que representou diversos réus da Lava Jato na 13a. Vara Federal de Curitiba. Seu cliente mais famoso é Alberto Youssef, um dos primeiros presos da força-tarefa.

Youssef é citado em uma conversa dos procuradores que começa em 20 de julho de 2016. Na época, o acordo de delação de Youssef tinha sido homologado pelo então relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), Teori Zavascki.

Mas, segundo o advogado, os anexos não tinham sido liberados para investigação de primeira instância.

No entanto, os procuradores já sabiam do seu conteúdo e a usaram para apurar um caso que envolvia um deputado (com foro privilegiado, portanto) e que hoje é um dos políticos mais poderosos da república, Arthur Lira, presidente da Câmara.

De acordo com as mensagens acessadas por Walter Delgatti Neto e encontradas no seu notebook, durante a Operação Spoofing, o procurador de nome Paulo pergunta:

– Alguém aqui está acompanhando investigação da CÂMARA & VASCONCELOS?

Câmara & Vasconcelos era a empresa que deu dinheiro para um dos três empresários que compraram o avião que caiu em Santos no ano de 2014, em que estava o então candidato a presidente, Eduardo Campos.

O nome do empresário é João Carlos Lyra Pessoa de Mello Filho, que seria um agiota em Pernambuco. Outros Liras, sem o y, também estavam envolvidos na história, segundo um anexo da delação de Youssef que era mantido sob sigilo no STF.

De acordo com esse anexo, Arthur, atual presidente da Câmara, e seu pai, o senador Benedito Lira, ambos do PP, tinham dívidas de campanha contraídas com o suposto agiota.

Segundo Youssef, Benedito Lira deu ordem para que ele, operador do partido, transferisse R$ 100 mil para a conta da Câmara & Vasconcelos.

A empresa fez, então, o repasse ao suposto agiota, seu verdadeiro controlador, que pagou pelo avião usado por Eduardo Campos.

Nesse caso, tão grave quanto a triangulação financeira é o que os procuradores da Lava Jato estavam fazendo. O Sisdelatio era um banco de dados com delações que não poderiam ser compartilhadas.

Além disso, ainda que o anexo de Youssef estivesse liberado para investigação, procuradores de primeira instância não poderiam usá-la para no caso de políticos com foro privilegiado.

Em resposta ao colega Paulo, o procurador Andrey Mendonça faz um resumo do caso:

– A câmara vasconcelos tá envolvida com pgtos pros lira em bsb [sigla de Brasília (já teve denúncia pelo PGR)] e no caso do aviao do eduardo campos q caiu. Houve deflagracao de operacao , q acho q rodrigo telles ta cuidando, em que houve a morte do dono da empresa. Nao sei de outras frentes envolvendo a empresa.

Os procuradores discutem outras delações e, no dia 26, a procuradora Jerusa Burmann Viecili adverte os colegas para tomar cuidado com o banco de dados clandestino, o Sisdelatio, numa aparente confissão de ilegalidade no sistema.

“People, cuidado ao usar o sisdelatio: há termos que estão no sistema mas não baixaram formalmente do STF!”. diz.

Ou seja, os procuradores de primeira instância não poderiam ter acesso a esses termos, de acordo com a lei 12.850/2013, que determina sigilo dos depoimentos obtidos em acordo de delação até que a denúncia seja recebida por um magistrado.

“O acordo de colaboração premiada e os depoimentos do colaborador serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidade em qualquer hipótese”, disse o advogado Gustavo Badaró em entrevista ao Conjur.

“O acesso era só para o procurador da República que atuava no caso, ou para os integrantes da força-tarefa responsável pelo caso. Mas não poderia ter compartilhamento, por exemplo, com MPs de outros estados. Nem com outros membros do MPF que não integrassem a força-tarefa”, acrescentou.

Assim como Figueiredo Basto, Badaró entende que o compartilhamento indevido por levar à anulação dos acordos. A existência do Sisdelatio é um fato de extrema gravidade e pode ser uma prova da corrupção judicial da Lava Jato.

Talvez seja por isso que os atuais integrantes do Ministério Público Federal em Curitiba tenham negado a existência do sistema.

“Não existe, no Ministério Público Federal, sistema com essa denominação e/ou finalidade”, afirmou a Procuradoria da República do Paraná em nota.

“Já tentamos confirmar, mas ninguém se lembra de um sistema com esse nome, nem localizamos nenhum registro”, informou o órgão.

Uma investigação pode revelar que o Ministério Público não fala a verdade ou que os antigos integrantes da Lava Jato tenham destruído provas, apagando os registros do Sisdetatio. Nesse caso, teria havido crime de obstrução de justiça.

No próprio chat encontrado pela Operação Spoofing, os procuradores revelam o nome de um dos técnicos que abasteciam o sistema. É Rafael Sasaki, cujo Linkedin informa: “Analista de Informática at Ministério Público Federal”. Sasaki trabalha no órgão desde outubro de 2006. Atualmente, está lotado em Brasília.

Se quiser encontrar a verdade, a Corregedoria do MPF pode tomar o depoimento de Sasaki. Ou, havendo provocação, o Conselho Nacional do Ministério Público pode fazer a investigação. Talvez a própria Polícia Federal possa entrar no caso, a depender de autorização de tribunais regionais.

O procurador Paulo é quem cita Sasaki e elogia o sistema. “Pessoal, quem é responsável por alimentar o sisdelatio, como ficou isso? vi que temos mtos depoimentos que não estão lá. O próprio sasaki está fazendo isso aos poucos? (apesar disso, top o sistema)”

Os procuradores Andrey e Paulo falam várias vezes sobre termos de delação encontrados no sistema, e o que chama mais a atenção é que estavam focados na família Lira.

“Esses pgtos do lira envolveram prc e ay”, diz Andrey. PRC é Paulo Roberto Costa e AY é Alberto Youssef.

“O ay pagou o lira por meio da camara (a empresa do susposto agiota). Talvez ela esteja envolvida na transposicao do sao francisco. Ela pagava pra empresas de fachada. Mas posso estar errado”, comenta Andrey.

Paulo, por sua vez, revela que encontrou no banco de dados anexos que não tinham sido liberados pelo Supremo. “Tem os anexos antigos, achei no sisdelatio... mas só coisa q subiu e não desceu”, disse.

O interesse dos procuradores da Lava Jato na primeira instância é mais do que suspeito, é ilegal, e pode ser a brecha que as instituições democráticas brasileiras precisam para comprovar que a força-tarefa de Curitiba, que teve Sergio Moro como seu grande líder, foi, na verdade, uma política secreta, como a Stasi, na extinta Alemanha Oriental, ou a CIA, nos Estados Unidos.

A pergunta que não quer calar: O que os lavatistas faziam com informações que não podiam usar em processos judiciais regulares?

 

Fonte: Conjur/Fórum/Infomoney/Brasil 247

 

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