‘A
esquerda não tem nada a dizer à periferia’, diz Vladimir Safatle
Em entrevista ao UOL,
Safatle, que é filiado ao PSOL e suplente de deputado federal pelo partido, diz
que o primeiro turno de 2024 foi um “alerta vermelho” para o PT.
“Se as coisas
continuarem como estão, a extrema direita volta ao poder em 2026, com certeza”,
declara.
O filósofo, que vem
insistindo na tese de que a esquerda brasileira está morta, diz que a política
deve caminhar para os extremos não apenas no Brasil, como em todo o mundo.
“Quem dá a pauta do
debate hoje é a extrema direita. O que nos resta até agora é ficar
desesperadamente tentando construir frentes amplas para tentar barrar a ascensão
da extrema direita. Com isso, as pautas da esquerda vão se descaracterizando.”
• A esquerda nas periferias
As regiões periféricas
da cidade de São Paulo se dividiram entre os três principais candidatos que
disputaram a prefeitura: Ricardo Nunes (MDB), Guilherme Boulos (PSOL) e Pablo
Marçal (PRTB). Para Safatle, a esquerda “não tem o que dizer para a periferia”.
A esquerda não chegou
à periferia porque não tem o que dizer para a periferia. O que tem para dizer
para a população periférica? Serão criadas macroestruturas de proteção social,
grandes estruturas de educação pública, vamos fazer o ensino secundário totalmente
gratuito para que as pessoas não sejam obrigadas a pagar, ou um investimento
sólido no sistema educacional? Não tem nada disso acontecendo. Nada disso está
na pauta do dia.
A extrema direita diz:
‘Agora é cada um por si.’ E isso tem um nome, que é empreendedorismo. O
problema é que a esquerda integrou o discurso do empreendedorismo, e isso é uma
lógica suicida. Porque se esse é o jogo, se essa é a gramática, a esquerda não tem
nada para oferecer”.
Hoje o nosso papel [da
esquerda] é a defesa do Judiciário, defesa dos direitos morais, defesa das
instituições, defesa da normalidade democrática, defesa dos contratos. Como é
que a gente pode ser antissistema? Isso não tem o menor sentido. Por isso que a
esquerda morreu. Essa é a razão pela qual ela morreu.
• A derrota da esquerda nas urnas
Nessas eleições, o PT
elegeu 248 prefeitos. É um aumento em relação às eleições de 2020 e 2016. Mas
uma diminuição em comparação com 2012, quando a sigla registrou seu melhor
momento nos municípios, conquistando 629 prefeituras, segundo dados do TSE.
Já o PSOL não elegeu
nenhum prefeito no primeiro turno de 2024. E perdeu a cidade de Belém (PA),
única capital sob sua administração.
“Essa eleição foi um
alerta vermelho mais forte para o PT. Se as coisas continuarem como estão, a
extrema direita volta ao poder em 2026, com certeza. A extrema direita tem uma
lista de candidatos que têm possibilidades eleitorais. Essa eleição mostrou que
o governo federal ainda não tem pautas robustas que poderiam mostrar uma
mudança estrutural na vida das pessoas.”
“As primeiras
prefeituras da esquerda brasileira pós-ditadura tinham um modelo de gestão com
práticas que eram copiadas. Entre elas, uma tecnologia de poder que desapareceu
por completo. Não há um elemento para ser memorizado. Nessa eleição, a esquerda
teve um discurso gerencial”
• “O lulismo destruiu o PT”
Questionado sobre como
a esquerda deve fazer frente às candidaturas de direita e extrema direita que
se projetam para disputar a Presidência em 2026, Safatle alerta para o
“envelhecimento dos quadros” do PT e afirma que não há renovação das lideranças
do partido.
“Quando o Lula volta,
não tem mais pauta. Não tem aquelas ideias-diretrizes, como o Bolsa Família, o
Ciência Sem Fronteiras. O PT virou um partido populista de esquerda. Ele
coordena uma série de equivalências entre demandas contraditórias. O resultado
é uma esquizofrenia. Há uma paralisia porque uma demanda vai anulando a outra,
não se consegue avançar”.
“Não havia no PT um
tipo de estrutura onde o protagonismo deveria ser móvel, mas o Lula era o
protagonismo imóvel. O que acontece é que, de certa maneira, o Lula fagocitou
todas as outras lideranças para se preservar. Nenhuma outra liderança ganhou
autonomia dentro do PT e não houve renovação.”
“O PT deve tentar –ou
Lula deve tentar– o Fernando Haddad. Isso mostra um envelhecimento muito brutal
dos partidos de esquerda. Anteriormente, os vínculos orgânicos eram da igreja
progressista, das universidades e da estrutura sindical. Essa era uma tríade
que não funcionava mais.”
• A disputa com a extrema direita
Para explicar as
raízes históricas da extrema direita no país, Safatle afirma que a Ação
Integralista Brasileira chegou a cerca de 1,2 milhão de membros na década de
1930. “Essas pessoas não desapareceram”, diz. Para fazer frente ao crescimento
desse campo, o filósofo afirma que a esquerda defende a forma “ferrenha” de
pautas relacionadas aos trabalhadores.
“Um dos grandes erros
das universidades foi ignorar a matriz fascista do desenvolvimento da história
brasileira. A extrema direita tem uma base, mas não tinha uma organização. Ela
cria sua organização vampirizando estruturas existentes. Não tem nada mais
hilário do que uma coligação pela qual Lula ganha a eleição pela primeira vez
—era uma coligação entre o PT e o PL, o partido de José Alencar.”
“É importante mostrar
para a sociedade uma revogação da reforma trabalhista, da reforma
previdenciária, uma luta pela jornada de trabalho de 35 horas, uma luta para
que em toda empresa tenha pelo menos 30% de representantes dos trabalhadores
nos comitês decisórios. Sinalizar claramente que se quer novas relações no
trabalho.
• A morte da esquerda
Satafle afirma que a
esquerda brasileira vive um “horizonte recuado” de ideias. Apesar disso,
defende que as bandeiras de igualdade social defendidas pela esquerda continuam
necessárias.
“Há um horizonte
recuado de ideias políticas na esquerda brasileira. Significa que a capacidade
de enunciar políticas organicamente vinculadas a esses dois princípios, da
igualdade radical e soberania popular, estão travadas”.
“Lutar pela igualdade
não é um discurso datado. Muito pelo contrário: foi algo nunca realizado de
maneira plena. Ninguém, em sã consciência, vai admitir que uma sociedade
desigual é uma sociedade desejada. Todos nós queremos uma sociedade cada vez
mais radicalmente humanitária. Esse horizonte não pode ficar obsoleto. Não tem
como ele ficar arcaico. Arcaica, na verdade, é a nossa realidade social”.
• Ruas e movimentos sociais
O filósofo afirma que
a esquerda que ocupa espaços de poder e a que organiza protestos nas ruas se
tornaram “coisas distintas”. Para Safatle, o que se espera das legendas deste
campo político quando chegam ao poder “é que elas realizem o que prometeram nas
ruas”. Ele afirma ainda que os movimentos sociais deveriam ter mais autonomia
em relação ao governo.
“A esquerda se tornou
uma forma de traição. Quando assumimos o governo, nunca realizamos aquilo que
falamos nas ruas. Sempre tem aquela coisa: ‘Mas a configuração de forças não
nos permite fazer aquilo que a gente quer’. Essa confissão da impotência política
é uma coisa terrível, que a extrema direita não faz. Mesmo não conseguindo
realizar aquilo que prometeu nas ruas, ela continua tentando. Isso é uma
sinalização muito importante para o seu eleitorado.”
“Os movimentos sociais
são completamente integrados ao quadro político-partidário. Não tem um
movimento social que seja autônomo em relação aos partidos de esquerda. Basta
pegar os dois mais importantes, o MST e o MTST. Isso mostra um vínculo
orgânico. Talvez fosse até melhor que os movimentos tivessem força de pressão
externa e mais autonomia em relação aos partidos. A política brasileira carece,
especialmente a esquerda, carece de pressões externas”
• Novos rumos da esquerda no país
Safatle afirma que o
governo precisa de uma oposição à esquerda. Para ele, o PSOL poderia ter
exercido essa função, mas o fato de ocupar ministérios no governo [a ministra
dos Povos Indígenas é filiada ao PSOL] comprometeria a autonomia da legenda
como oposição. Na atual configuração política brasileira, o filósofo diz que
quem pauta o debate é a extrema direita e que resta à esquerda construir
frentes amplas.
“Teria sido bom para o
PSOL que fosse uma oposição à esquerda no governo Lula. Essa era a nossa
função. O governo Lula precisa de uma oposição à esquerda. Não existe oposição
quando você integra a base do governo. Se há uma radicalização, a primeira coisa
que o governo fala é ‘quer perder o seu ministério?’. A função do PSOL não foi
sucessora do PT, foi um aliado incômodo. O PSOL deveria estar ocupando uma
posição de oposição de esquerda.”
“A esquerda, enquanto
força motriz do debate político, morreu. Quem dá a pauta do debate hoje é a
extrema direita. O que nos resta até agora é ficar desesperadamente tentando
construir frentes amplas para tentar barrar a ascensão da extrema-direita.
Com isso, as pautas da
esquerda vão se descaracterizando. A esquerda precisa radicalizar o discurso.
Só quem se radicaliza sobreviveu. Não existe mais centro, isso é uma ilusão”.
• Retornar às raízes ou ceder à direita,
eis a questão. Por Moisés Mendes
Se juntassem num mesmo
espaço analógico, e não na internet, nesses dias pós-eleição, um grupo variado
de militantes de esquerda, incluindo dirigentes, quadros intermediários com
capacidade de intervenção em falas e ações políticas e mais a base histórica e
recente dos partidos, teríamos uma babel pré-PT, do tempo dos DCEs, das Libelus
e dos MR-8.
De um lado, ficariam
os que desejam radicalizar discurso e ação, num esforço para compensar até a
data da eleição do segundo turno, daqui a duas semanas, o que não foi feito
cotidianamente durante anos.
Do outro lado,
estariam os que entendem que a base política formada em nome da governabilidade
deve ser ampliada com a ajuda de Kassab e Arthur Lira, sempre pensando em 2026,
ou a vaca, o boi e os bezerros vão pro brejo, levando todas as emendas PIX.
A primeira turma, a da
volta às raízes, acredita ser possível retomar a conversa com o povo e as
periferias sobre os valores envolvidos na defesa dos trabalhadores, mesmo que
esses tenham sido cooptados como futuros mensageiros de Deus ou da prosperidade
de Pablo Marçal.
Na mesma linha,
intensifica-se o apelo para que o PT e as esquerdas reconquistem as almas
coletivas da classe média, que também estão na origem do partido e do lulismo,
apesar de dispersas e cada vez mais infiéis.
Os defensores da volta
às raízes estão incomodados com os que se agarram à salvação pelo alargamento
da base de sustentação de Lula. Porque essa base seria expandida, é claro, pela
direita.
O PT se fragilizou nas
grandes e médias cidades, os trabalhadores do século 20 não existem mais com as
mesmas feições, os estudantes e os professores se distraíram e os sindicalistas
foram aniquilados pela competência das reformas dos que agora venceram a
eleição. Não há mais a UNE de tempos idos e nem padres progressistas existem
mais.
Nas bordas dessa
conversa em que existem mais do que diferenças, com alguns conflitos profundos
sobre a compreensão do que aconteceu e sobre as possíveis saídas, apresenta-se
ainda a controvérsia sobre o avanço da militância e das candidaturas identitárias,
que teriam desfigurado a pregação classista histórica das esquerdas.
Com uma ressalva: se
não fossem as candidaturas identitárias, algumas cidades teriam anunciado o fim
das esquerdas locais. O que talvez empurre o debate para outra abordagem
possível, a de que o problema não é dos identitarismos, mas da fragilidade dos
‘outros’ mais antigos que não os compreendem, que perderam terreno e ficaram
para trás.
O que temos é quase
uma guerra de versões sobre o retrato do cenário pós-eleição, com muitos
desencontros sobre as estratégias do que e como fazer para reconstruir raízes e
atacar, ou criar uma frente ampla com a direita de centro e conviver numa boa e
moderar.
Como 2026 fica depois
da esquina, logo saberemos o que prevaleceu, o que deu certo e o que deu
errado. Se é que teremos forças e liberdade para o debate, depois de 2026, se
tudo der errado.
Fonte: IHU/Brasil 247
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