quarta-feira, 16 de outubro de 2024

‘A esquerda não tem nada a dizer à periferia’, diz Vladimir Safatle

Em entrevista ao UOL, Safatle, que é filiado ao PSOL e suplente de deputado federal pelo partido, diz que o primeiro turno de 2024 foi um “alerta vermelho” para o PT.

“Se as coisas continuarem como estão, a extrema direita volta ao poder em 2026, com certeza”, declara.

O filósofo, que vem insistindo na tese de que a esquerda brasileira está morta, diz que a política deve caminhar para os extremos não apenas no Brasil, como em todo o mundo.

“Quem dá a pauta do debate hoje é a extrema direita. O que nos resta até agora é ficar desesperadamente tentando construir frentes amplas para tentar barrar a ascensão da extrema direita. Com isso, as pautas da esquerda vão se descaracterizando.”

•        A esquerda nas periferias

As regiões periféricas da cidade de São Paulo se dividiram entre os três principais candidatos que disputaram a prefeitura: Ricardo Nunes (MDB), Guilherme Boulos (PSOL) e Pablo Marçal (PRTB). Para Safatle, a esquerda “não tem o que dizer para a periferia”.

A esquerda não chegou à periferia porque não tem o que dizer para a periferia. O que tem para dizer para a população periférica? Serão criadas macroestruturas de proteção social, grandes estruturas de educação pública, vamos fazer o ensino secundário totalmente gratuito para que as pessoas não sejam obrigadas a pagar, ou um investimento sólido no sistema educacional? Não tem nada disso acontecendo. Nada disso está na pauta do dia.

A extrema direita diz: ‘Agora é cada um por si.’ E isso tem um nome, que é empreendedorismo. O problema é que a esquerda integrou o discurso do empreendedorismo, e isso é uma lógica suicida. Porque se esse é o jogo, se essa é a gramática, a esquerda não tem nada para oferecer”.

Hoje o nosso papel [da esquerda] é a defesa do Judiciário, defesa dos direitos morais, defesa das instituições, defesa da normalidade democrática, defesa dos contratos. Como é que a gente pode ser antissistema? Isso não tem o menor sentido. Por isso que a esquerda morreu. Essa é a razão pela qual ela morreu.

•        A derrota da esquerda nas urnas

Nessas eleições, o PT elegeu 248 prefeitos. É um aumento em relação às eleições de 2020 e 2016. Mas uma diminuição em comparação com 2012, quando a sigla registrou seu melhor momento nos municípios, conquistando 629 prefeituras, segundo dados do TSE.

Já o PSOL não elegeu nenhum prefeito no primeiro turno de 2024. E perdeu a cidade de Belém (PA), única capital sob sua administração.

“Essa eleição foi um alerta vermelho mais forte para o PT. Se as coisas continuarem como estão, a extrema direita volta ao poder em 2026, com certeza. A extrema direita tem uma lista de candidatos que têm possibilidades eleitorais. Essa eleição mostrou que o governo federal ainda não tem pautas robustas que poderiam mostrar uma mudança estrutural na vida das pessoas.”

“As primeiras prefeituras da esquerda brasileira pós-ditadura tinham um modelo de gestão com práticas que eram copiadas. Entre elas, uma tecnologia de poder que desapareceu por completo. Não há um elemento para ser memorizado. Nessa eleição, a esquerda teve um discurso gerencial”

•        “O lulismo destruiu o PT”

Questionado sobre como a esquerda deve fazer frente às candidaturas de direita e extrema direita que se projetam para disputar a Presidência em 2026, Safatle alerta para o “envelhecimento dos quadros” do PT e afirma que não há renovação das lideranças do partido.

“Quando o Lula volta, não tem mais pauta. Não tem aquelas ideias-diretrizes, como o Bolsa Família, o Ciência Sem Fronteiras. O PT virou um partido populista de esquerda. Ele coordena uma série de equivalências entre demandas contraditórias. O resultado é uma esquizofrenia. Há uma paralisia porque uma demanda vai anulando a outra, não se consegue avançar”.

“Não havia no PT um tipo de estrutura onde o protagonismo deveria ser móvel, mas o Lula era o protagonismo imóvel. O que acontece é que, de certa maneira, o Lula fagocitou todas as outras lideranças para se preservar. Nenhuma outra liderança ganhou autonomia dentro do PT e não houve renovação.”

“O PT deve tentar –ou Lula deve tentar– o Fernando Haddad. Isso mostra um envelhecimento muito brutal dos partidos de esquerda. Anteriormente, os vínculos orgânicos eram da igreja progressista, das universidades e da estrutura sindical. Essa era uma tríade que não funcionava mais.”

•        A disputa com a extrema direita

Para explicar as raízes históricas da extrema direita no país, Safatle afirma que a Ação Integralista Brasileira chegou a cerca de 1,2 milhão de membros na década de 1930. “Essas pessoas não desapareceram”, diz. Para fazer frente ao crescimento desse campo, o filósofo afirma que a esquerda defende a forma “ferrenha” de pautas relacionadas aos trabalhadores.

“Um dos grandes erros das universidades foi ignorar a matriz fascista do desenvolvimento da história brasileira. A extrema direita tem uma base, mas não tinha uma organização. Ela cria sua organização vampirizando estruturas existentes. Não tem nada mais hilário do que uma coligação pela qual Lula ganha a eleição pela primeira vez —era uma coligação entre o PT e o PL, o partido de José Alencar.”

“É importante mostrar para a sociedade uma revogação da reforma trabalhista, da reforma previdenciária, uma luta pela jornada de trabalho de 35 horas, uma luta para que em toda empresa tenha pelo menos 30% de representantes dos trabalhadores nos comitês decisórios. Sinalizar claramente que se quer novas relações no trabalho.

•        A morte da esquerda

Satafle afirma que a esquerda brasileira vive um “horizonte recuado” de ideias. Apesar disso, defende que as bandeiras de igualdade social defendidas pela esquerda continuam necessárias.

“Há um horizonte recuado de ideias políticas na esquerda brasileira. Significa que a capacidade de enunciar políticas organicamente vinculadas a esses dois princípios, da igualdade radical e soberania popular, estão travadas”.

“Lutar pela igualdade não é um discurso datado. Muito pelo contrário: foi algo nunca realizado de maneira plena. Ninguém, em sã consciência, vai admitir que uma sociedade desigual é uma sociedade desejada. Todos nós queremos uma sociedade cada vez mais radicalmente humanitária. Esse horizonte não pode ficar obsoleto. Não tem como ele ficar arcaico. Arcaica, na verdade, é a nossa realidade social”.

•        Ruas e movimentos sociais

O filósofo afirma que a esquerda que ocupa espaços de poder e a que organiza protestos nas ruas se tornaram “coisas distintas”. Para Safatle, o que se espera das legendas deste campo político quando chegam ao poder “é que elas realizem o que prometeram nas ruas”. Ele afirma ainda que os movimentos sociais deveriam ter mais autonomia em relação ao governo.

“A esquerda se tornou uma forma de traição. Quando assumimos o governo, nunca realizamos aquilo que falamos nas ruas. Sempre tem aquela coisa: ‘Mas a configuração de forças não nos permite fazer aquilo que a gente quer’. Essa confissão da impotência política é uma coisa terrível, que a extrema direita não faz. Mesmo não conseguindo realizar aquilo que prometeu nas ruas, ela continua tentando. Isso é uma sinalização muito importante para o seu eleitorado.”

“Os movimentos sociais são completamente integrados ao quadro político-partidário. Não tem um movimento social que seja autônomo em relação aos partidos de esquerda. Basta pegar os dois mais importantes, o MST e o MTST. Isso mostra um vínculo orgânico. Talvez fosse até melhor que os movimentos tivessem força de pressão externa e mais autonomia em relação aos partidos. A política brasileira carece, especialmente a esquerda, carece de pressões externas”

•        Novos rumos da esquerda no país

Safatle afirma que o governo precisa de uma oposição à esquerda. Para ele, o PSOL poderia ter exercido essa função, mas o fato de ocupar ministérios no governo [a ministra dos Povos Indígenas é filiada ao PSOL] comprometeria a autonomia da legenda como oposição. Na atual configuração política brasileira, o filósofo diz que quem pauta o debate é a extrema direita e que resta à esquerda construir frentes amplas.

“Teria sido bom para o PSOL que fosse uma oposição à esquerda no governo Lula. Essa era a nossa função. O governo Lula precisa de uma oposição à esquerda. Não existe oposição quando você integra a base do governo. Se há uma radicalização, a primeira coisa que o governo fala é ‘quer perder o seu ministério?’. A função do PSOL não foi sucessora do PT, foi um aliado incômodo. O PSOL deveria estar ocupando uma posição de oposição de esquerda.”

“A esquerda, enquanto força motriz do debate político, morreu. Quem dá a pauta do debate hoje é a extrema direita. O que nos resta até agora é ficar desesperadamente tentando construir frentes amplas para tentar barrar a ascensão da extrema-direita.

Com isso, as pautas da esquerda vão se descaracterizando. A esquerda precisa radicalizar o discurso. Só quem se radicaliza sobreviveu. Não existe mais centro, isso é uma ilusão”.

 

•        Retornar às raízes ou ceder à direita, eis a questão. Por Moisés Mendes

Se juntassem num mesmo espaço analógico, e não na internet, nesses dias pós-eleição, um grupo variado de militantes de esquerda, incluindo dirigentes, quadros intermediários com capacidade de intervenção em falas e ações políticas e mais a base histórica e recente dos partidos, teríamos uma babel pré-PT, do tempo dos DCEs, das Libelus e dos MR-8.

De um lado, ficariam os que desejam radicalizar discurso e ação, num esforço para compensar até a data da eleição do segundo turno, daqui a duas semanas, o que não foi feito cotidianamente durante anos.

Do outro lado, estariam os que entendem que a base política formada em nome da governabilidade deve ser ampliada com a ajuda de Kassab e Arthur Lira, sempre pensando em 2026, ou a vaca, o boi e os bezerros vão pro brejo, levando todas as emendas PIX.

A primeira turma, a da volta às raízes, acredita ser possível retomar a conversa com o povo e as periferias sobre os valores envolvidos na defesa dos trabalhadores, mesmo que esses tenham sido cooptados como futuros mensageiros de Deus ou da prosperidade de Pablo Marçal.

Na mesma linha, intensifica-se o apelo para que o PT e as esquerdas reconquistem as almas coletivas da classe média, que também estão na origem do partido e do lulismo, apesar de dispersas e cada vez mais infiéis.

Os defensores da volta às raízes estão incomodados com os que se agarram à salvação pelo alargamento da base de sustentação de Lula. Porque essa base seria expandida, é claro, pela direita.

O PT se fragilizou nas grandes e médias cidades, os trabalhadores do século 20 não existem mais com as mesmas feições, os estudantes e os professores se distraíram e os sindicalistas foram aniquilados pela competência das reformas dos que agora venceram a eleição. Não há mais a UNE de tempos idos e nem padres progressistas existem mais.

Nas bordas dessa conversa em que existem mais do que diferenças, com alguns conflitos profundos sobre a compreensão do que aconteceu e sobre as possíveis saídas, apresenta-se ainda a controvérsia sobre o avanço da militância e das candidaturas identitárias, que teriam desfigurado a pregação classista histórica das esquerdas.

Com uma ressalva: se não fossem as candidaturas identitárias, algumas cidades teriam anunciado o fim das esquerdas locais. O que talvez empurre o debate para outra abordagem possível, a de que o problema não é dos identitarismos, mas da fragilidade dos ‘outros’ mais antigos que não os compreendem, que perderam terreno e ficaram para trás.

O que temos é quase uma guerra de versões sobre o retrato do cenário pós-eleição, com muitos desencontros sobre as estratégias do que e como fazer para reconstruir raízes e atacar, ou criar uma frente ampla com a direita de centro e conviver numa boa e moderar.

Como 2026 fica depois da esquina, logo saberemos o que prevaleceu, o que deu certo e o que deu errado. Se é que teremos forças e liberdade para o debate, depois de 2026, se tudo der errado.

 

Fonte: IHU/Brasil 247

 

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