Operação policial no Pará mata dois
sem-terra, e presos denunciam torturas
UMA OPERAÇÃO POLICIAL
na Fazenda Mutamba, em Marabá, no sudeste do Pará, resultou na morte de dois
trabalhadores rurais. A ação ocorreu na madrugada da última sexta-feira (11) e
foi conduzida pela Delegacia Especializada em Conflitos Agrários (DECA), da Polícia
Civil do Pará. Outros quatro trabalhadores rurais foram presos e afirmam terem
sido torturados pelos policiais.
A polícia argumenta
que foi ao local cumprir mandados de prisão preventiva e de busca e apreensão
contra ocupantes da fazenda, que pertence aos Mutran. A família é conhecida na
região por seu histórico de conflitos fundiários, desmatamento e por resgates
de trabalhadores em condições análogas à escravidão.
O complexo Mutamba tem
diferentes ocupações, a primeira delas iniciada em 2013 e a última em abril
deste ano. As ocupações são justificadas pelos sem-terra em razão da suspeita
de que terras públicas teriam sido griladas e anexadas à propriedade.
Segundo a versão
policial, ao chegarem ao local, os agentes teriam sido recebidos a tiros, e
então reagiram e mataram Adão Rodrigues de Souza, de 53 anos, casado e pai de 5
filhos, e Édson Silva e Silva.
Os trabalhadores
rurais, no entanto, contam outra história. Eles dizem que aproximadamente 18
pessoas dormiam em redes em um barracão coletivo quando foram surpreendidas às
4h da madrugada pelos gritos de “perdeu, perdeu” dos policiais, seguidos de
rajadas de tiros.
“No desespero e na
escuridão, cada um tentou escapar como pôde dos tiros. O resultado foram dois
mortos, vários feridos a bala e quatro presos”, detalha uma nota assinada por
sete movimentos sociais, entre eles a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e a Sociedade Paraense de Defesa dos
Direitos Humanos (SDDH).
Os movimentos sociais
pedem uma apuração independente das mortes e prisões, além de solicitar à
Corregedoria da Polícia Civil que apure as denúncias de torturas feitas pelos
presos. Um dos policiais teria colocado uma faca no pescoço de um jovem e o
ameaçado de morte, caso não dissesse onde se encontrava o coordenador do grupo,
detalha a nota.
A Repórter Brasil teve
acesso aos vídeos das audiências de custódia. Um dos presos relatou ter
recebido chutes na barriga e pancadas na cabeça dos policiais. Os
representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública pediram que os
relatos fossem enviados para a Corregedoria da Polícia Civil.
Após a audiência, a
advogada de um dos presos solicitou que exames de raio-x e receitas de
medicamentos fossem anexados ao processo. “Lesões pelo corpo do requerido
também podem ser visualizadas, como tiro de raspão na nádega direita, hematomas
nas costelas e próximo ao peito”, detalha ela.
Questionada a respeito
das denúncias de tortura, a Polícia Civil do Pará não respondeu. Na
sexta-feira, a corporação afirmou em nota que investiga o envolvimento de um
grupo nos crimes de “organização criminosa majorada, porte ilegal de arma de
fogo, dano qualificado, furto qualificado, extração ilegal de madeira, incêndio
e queimadas de área de preservação e desobediência a ordem judicial”. O texto
diz ainda que “dois homens morreram após troca de tiros” e que foram
apreendidas “armas de fogo, munições e celulares”.
Os movimentos sociais
questionam os crimes imputados e alegam que foram apreendidas apenas
espingardas cartucheiras e munições. “Nenhuma arma pesada, nenhuma motosserra,
nenhum caminhão de madeira, nenhum gado roubado, nada mais [foi apreendido]”,
diz a nota, que ressalta ainda que os dois homens mortos não tinham passagem
pela polícia nem prisão decretada.
Palco de massacres
históricos de trabalhadores rurais sem terra cometidos por policiais, como os
de Eldorado dos Carajás e de Pau D’Arco, a região sudeste do Pará tem pelo
menos 200 ocupações em fazendas e propriedades improdutivas ou situadas em
terras da União. Há ainda 516 projetos de assentamentos, totalizando quase 5
milhões de hectares em disputa – uma área maior que países como Holanda e Suíça
–, segundo dados da CPT, entidade ligada à Igreja Católica.
• Trabalho escravo e suspeita de grilagem:
o histórico da fazenda Mutamba
A fazenda Mutamba é
ocupada por três grupos de trabalhadores rurais sem-terra, sendo que um deles é
organizado por meio de uma associação independente, a Terra Prometida. A
organização não faz parte de nenhum dos movimentos de luta pela terra mais
atuantes na região, como o MST, a Federação dos Trabalhadores Rurais na
Agricultura (Fetagri) ou a Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura
Familiar (Fetrafi).
Em 2002, 25
trabalhadores em condições análogas à escravidão foram libertados da
propriedade. Outras duas propriedades da família Mutran também foram palco de
resgate de trabalhadores escravizados na mesma época.
Uma delas, a
Cabaceiras, chegou a ser desapropriada e destinada à reforma agrária, na
primeira decisão do tipo no país. A fazenda pertencia à empresa Jorge Mutran
Exportação e Importação Ltda, que foi condenada em 2004 a pagar R$ 1,3 milhão
por dano moral coletivo, a maior indenização da época por trabalho escravo no
Brasil.
No caso da Mutamba,
uma das ocupações, iniciada em 2013, já conta com casas e plantações e está
distante da sede da fazenda. Em abril deste ano, uma nova parte do complexo foi
ocupada, distante 500 metros da sede. Em maio, o juiz da Vara Agrária de Marabá,
Amarildo José Mazutti, determinou a retirada imediata das famílias do local.
Mas a decisão foi
suspensa pelo ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que
determinou o cumprimento de medidas obrigatórias a serem tomadas antes de uma
desocupação coletiva, como a criação de comissões de conflito fundiário dentro do
Tribunal de Justiça para assessorar o juiz, a realização de inspeções judiciais
e audiências de mediação, entre outros pontos.
A nota dos movimentos
sociais também critica o Judiciário paraense, que não teria tomado as
precauções necessárias para evitar o conflito, já que emitiu os mandados “sem
estabelecer critérios mais objetivos”.
“Com esse tipo de
mandado em mãos, o delegado poderia entrar em mais de uma centena de casas dos
moradores que residem nessas localidades com a truculência que lhe é
característica”, diz a nota. “Não estamos dizendo que não tenha, entre os
ocupantes, pessoas envolvidas em algum tipo de crime, mas essas pessoas têm que
ser presas conforme a lei determina, e não executadas”, continua o documento.
Os movimentos criticam
ainda recentes decisões da Justiça do Pará, que estaria proferindo “sentenças
em áreas públicas federais e estaduais, áreas objeto de grilagem, áreas que não
cumprem com a função social, áreas em processo de aquisição pelo INCRA”. Segundo
a nota, há 40 liminares para serem cumpridas no sudeste do Pará, envolvendo
quase 10 mil famílias.
Procurado, o Tribunal
de Justiça do Pará (TJPA) não respondeu aos questionamentos da reportagem.
• ‘Aqui não tem assassino não’
O delegado da DECA,
Antônio Mororó, responsável pela operação policial, classifica as acusações dos
movimentos sociais de levianas. “Aqui não tem assassino não”, reagiu, ao ser
informado das denúncias dos movimentos sociais.
Mororó negou que os
presos tenham sido torturados, disse que os policiais reagiram aos tiros e que
os depoimentos colhidos sustentam a hipótese investigada pela polícia da
atuação de uma organização criminosa no acampamento.
“Tenho vários minutos
de vídeo, desses caras ostensivamente armados, usando balaclavas e
patrulhando”, detalha. Contudo, após a operação, os policiais não encontraram o
forte armamento descrito pelo delegado. Foram apreendidas sete espingardas
velhas e nenhum policial ficou ferido.
Segundo o delegado,
esse grupo cobrava taxas de R$ 1.400 dos sem-terra. “Um grupo extremamente
armado, que estava constrangendo outras pessoas, outros posseiros”, detalha. “O
objetivo da operação é defender o hipossuficiente (população mais vulnerável)”,
complementa
Para os movimentos
sociais, a alegação do delegado de que se tratava de uma operação para cumprir
mandados de prisão e de busca e apreensão era apenas um pretexto para: “cometer
uma sucessão de crimes”.
Os depoimentos citados
por Mororó, segundo avaliação dos movimentos sociais, não devem ser
considerados válidos, pois os presos teriam sido torturados e ameaçados. “Se
não confirmassem, com o cano de fuzil encostado no ouvido, eram ameaçados de
execução imediata”, afirmam os movimentos na nota.
Fonte: Reporter Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário