Eleições americanas — os consórcios de
doadores
Após o anúncio da
saída de Joe Biden da corrida presidencial, vem emergindo com cada vez mais
clareza um conflito dentro do capitalismo financeiro norte-americano. Tentarei
aqui resumi-lo e talvez até simplificá-lo.
Após a escolha de
James D. Vance como candidato a vice-presidente e a tomada de posição de Elon
Musk, as fileiras de apoiadores (e financiadores) de Donald Trump vêm
crescendo. Isso pode ser atribuído a um segmento do capitalismo que busca
conter o poder desmesurado dos Três Grandes, ou seja, os superfundos Vanguard,
Black Rock e State Street, agora decididamente vinculados aos Democratas.
Tanto Joe Biden quanto
Kamala Harris tiveram e têm figuras-chave em suas equipes que vêm da Black
Rock. Um personagem como Jamie Dimon, o CEO do JP Morgan, o superfundo
bancário, há muito cortejado por Donald Trump, está prestes a ser arregimentado
pelos Democratas. O presidente da Reserva Federal nomeado por Donald Trump,
Jerome Powell, com o apoio da Secretária do Tesouro democrata Janet Yellen,
seguiu as estratégias dos mesmos superfundos, comprando seus ETFs [Exchange-traded
Funds, fundos de investimento negociados em bolsa, que acompanham o
desempenho do índice NDR ̵ Net Dollar Retention].
·
O condomínio trumpista
Frente a essa
simbiose, formou-se um grupo de figuras que querem usar o poder político da
presidência de Donald Trump para combater ou limitar o poder excessivo dos Três
Grandes. Nesse elenco aparecem alguns grandes fundos de hedge, como
o de John Paulson, preocupado com sua marginalização progressiva em um
“mercado” dominado pelos superfundos, algumas empresas petrolíferas não
diretamente ligadas aos gigantes da energia já nas mãos dos Três Grandes — como
Timothy Dunn e Harold Hamm da Continental Resources —, bem como bilionários de
longa tradição como os Mellons, irritados com o poder excessivo de Larry Fink
(CEO da Black Rock), além de personagens como Bernie Marcus, fundador da Home
Depot, gigante com 500 mil funcionários, hostil ao modelo sem fábrica das big
tech, cuja criação foi vendida pela Vanguard, Black Rock e State Street.
Entre os capitalistas
de Donald Trump estão também donos de cassinos, como Steve Wynn e Phil Ruffin,
assustados com o avanço de grandes fundos até mesmo em seus setores, além de
personagens típicos do mundo trumpista, como Linda McMahon, fundadora, junto
com o marido, da empresa promotora de luta livre e esportes Wold
Wrestling Entertainment. Em suma, a possibilidade de sucesso de Donald
Trump acabou desencadeando um duro choque dentro do capitalismo americano, que
pode provocar uma mudança no seu equilíbrio interno e até mesmo enfraquecê-lo.
Por casualidade, ao
percorrermos a lista dos financiadores de Kamala Harris, encontramos numerosos
expoentes das finanças, vinculados, em diferentes medidas, aos grandes fundos.
Com efeito, destacam-se nomes como o de Reid Hoffman, criador do LinkedIn, vendido
em 2016 à Microsoft por 26 bilhões de dólares e, desde então, membro do
Conselho de Administração da própria Microsoft, da qual, como se sabe,
Vanguard, Black Rock e State Street controlam mais de 20%.
O mesmo Reid Hoffman
detém hoje uma participação significativa na Airbnb, onde os Três Grandes são
os principais acionistas. Ao lado de Hoffman, está Roger Altman, um financista
democrata de longa data, colaborador de Jimmy Carter e Bill Clinton em papéis
sutis, e que passou pela holding financeira Lehman Brothers,
pelo grupo Blackstone, e hoje é diretor do banco Evercore, do qual a Vanguard
detém 9,46%; a Black Rock, 8,6%; e a State Street, 2,6%.
Além deles, temos Reed
Hastings, presidente da Netflix, onde a Vanguard tem 8,5%; a Black Rock, 5,75%;
e a State Street, 3,8%. E também temos Brad Karp, advogado de confiança de
longa data do JP Morgan; Ray McGuire, presidente da Lazard Inc, onde a Vanguard
é a maior acionista, com 9,5%, seguida pela Black Rock, com 8,5%. Temos também
Marc Lasry, CEO do Avenue Capital Group, o fundo de hedge próximo
aos Três Grandes, e Frank Baker, proprietário de uma private equity.
Um lugar de destaque entre os doadores de Kamala Harris é ocupado por vários
membros da família Soros e vários protagonistas das principais consultorias
americanas, como Jon Henes e Ellen Goldsmith-Vein.
Em suma, a nova
candidata reuniu um vasto consórcio de doadores que vêem o horizonte das
finanças trumpistas como uma ameaça ao monopólio “tranquilizador”,
cuidadosamente cultivado pelos superfundos, acionistas chave que são das
principais empresas do índice Standard & Poor’s 500. Pode-se reconhecer
nesse consórcio uma tropa de defesa dos grandes agentes da gestão global de
ativos e da participação acionária daqueles gigantes, contra eventuais choques
produzidos por uma vitória republicana, ainda que sob a égide de condicionantes
“cruzados”.
·
A “rédea curta” em
Kamala Harris
Kamala Harris
apresentou-se na Carolina do Norte como patrocinadora de um programa de defesa
da classe média — identificada como aquela de rendimentos anuais de até 400 mil
dólares —, comprometida com uma iniciativa de apoio à casa própria popular e
sinalizando uma estratégia de contenção da especulação de preços. Em suma, um
programa muito genérico, que a candidata democrata definiu como a “economia das
oportunidades”. A insinuação de uma iniciativa de impedir a especulação de
preços, no entanto, assustou os Três Grandes, que haviam investido nos
Democratas, visando evitar um “outro capitalismo” domiciliado no clã Trump.
Assim, o New
York Post saiu pouco depois de 15 de agosto, com uma manchete ruidosa,
em que Harris era definida como “comunista” precisamente por querer controlar
os preços e aumentar os gastos federais. A este respeito, vale a pena sublinhar
que o New York Post é propriedade da News Corp., cuja
participação inclui Rupert Murdoch e os Três Grandes, estes últimos com mais de
20% de controle. Parece evidente que os superfundos foram rápidos em utilizar
um veículo reconhecidamente trumpista para fazer Kamala Harris entender o que
não pode fazer. Na prática, ela não pode fazer política contra o monopólio da
especulação. De fato, há quem chegue a pensar que Kamala Harris é mesmo um
pouco “comunista”.
·
Mal-entendidos
interessados
No La
Repubblica, de Roma, de 21 de agosto de 2024, Paolo Mastrolilli
entrevistou, muito satisfeito, Bernie Sanders, “o único senador socialista” dos
Estados Unidos. A satisfação de Mastrolilli foi resultado da declaração de
Sanders de apoio convicto, quase adorador, a Kamala Harris. Partindo do
pressuposto de que Donald Trump é um fascista perigoso, Bernie Sanders elogiou
Joe Biden, o presidente mais “progressista” da história moderna dos Estados
Unidos, e instou as pessoas a votarem em Kamala Harris para continuar o seu
trabalho.
É claro, acrescentou
Bernie Sanders, que teremos de superar a resistência de 1% da população
composta pelos super-ricos que, argumentou ele com franqueza, “nunca estiveram
tão bem”. Seria porque os presidentes recentes tenham feito de tudo para lhes
facilitar a vida? Bernie Sanders escreveu um livro sobre o sistema econômico
norte-americano, atacando os grandes fundos. Parece que em algum movimento ele
acabou sofrendo um lapso de esquecimento.
Estamos, portanto, de
fato diante de um conflito intestino de um capitalismo que, por um lado,
constrói sua fortuna sobre o monopólio financeiro (entendido como uma
ferramenta para reduzir o risco para os cidadãos que, agora, teriam idealmente
se tornado sujeitos financeiros, por meio de suas políticas), e, por outro,
vemos a formação de um bloco que visa debilitar aquele monopólio, na esperança
de não ser excluído da bolha inflante, mas que precisa de política, a começar
pela política monetária, com taxas decididamente mais favoráveis, com que possa
dispor. Para além das narrativas populares triviais, estas eleições comportam
uma dura guerra entre grupos financeiros.
O esquema
político-econômico dos Democratas tem sido, até agora, muito compreensível.
Jerome Powell, presidente do Fed, anunciou diversas vezes que as taxas de juro
americanas permaneceriam elevadas. A história de Jerome Powell, nesse sentido,
é muito interessante. Colaborador de Nicholas Brady, secretário do Tesouro de
Bush (pai), ligou-se ao Grupo Carlyle e criou o seu próprio banco de
investimento privado, antes de ingressar no conselho da Reserva Federal,
juntamente com Jeremy Stein, por nomeação do presidente Barack Obama.
Nomeado por Donald
Trump em fevereiro de 2018 para presidir a Reserva Federal, em substituição a
Janet Yellen — considerada demasiado próxima dos democratas —, foi confirmado
por Joe Biden e, durante sua presidência, abraçou a linha de combate à inflação
com uma política monetária restritiva, que certamente favoreceu os grandes
detentores de ativos geridos — os Três Grandes, na verdade — removendo a
liquidez dos mercados e, ao mesmo tempo, ajudando a apoiar a dolarização
seguida pelo próprio Joe Biden para financiar os seus enormes gastos federais,
construídos sobre dívida.
·
Altas taxas e
geopolítica
É claro que os Estados
Unidos querem realmente continuar drenando poupanças de todo o mundo para
financiar a sua economia, mas para pagarem taxas tão elevadas, a fim de atrair
poupadores globais, necessitam que o dólar seja a única moeda mundial, aceita
tanto em termos financeiros como em termos geopolíticos. Nessa perspectiva, Joe
Biden preferiu o caminho do aumento dos gastos federais para financiar a
recuperação de uma economia doméstica produtiva, fomentada pelo dólar forte, em
lugar de uma dinâmica competitiva facilitada por taxas de juro mais baixas.
Também por esta razão,
na cúpula da OTAN de junho de 2024, proclamou-se a possibilidade de adesão da
Ucrânia, com o apoio imediato de uma Europa feliz com o seu atlantismo que lhe
impõe o dólar como meio de financiamento aos Estados Unidos, às custas dos
europeus. Se os Estados Unidos mostrarem os seus músculos e os “aliados”
europeus se alinharem, o dólar continuará a ser a única moeda do Ocidente, e a
economia americana poderá voltar a produzir, em lugar de ser apenas movida a
papel.
No entanto, as
agências de classificação, propriedade dos grandes fundos, baixaram a
classificação da dívida da França “socialista” porque é melhor prevenir do que
remediar. A OTAN, os boletins das agências de classificação e a política
externa agressiva são três elementos-chave do “modelo” Democrata, que não pode
admitir qualquer forma de isolacionismo e deve perseguir a primazia militar
mundial, de acordo com as declarações da própria Kamala Harris.
A hostilidade de
Donald Trump com a OTAN é, pelo contrário, sinal de uma oposição política
plausível ao projeto Democrata, e expressa a ideia de que a aliança militar não
pode ser usada para fins econômicos e monetários, para os quais seriam
necessárias outras estratégias. O candidato republicano, na conferência dos “mineradores digitais” de
Nashville, declarou seu apoio ao bitcoin e
às criptomoedas, anunciando o estabelecimento de uma reserva estratégica ad
hoc e de um Conselho Presidencial sobre o tema.
Ele argumentou,
alterando suas antigas posições, que as criptomoedas podem representar um
recurso para a economia americana, capaz de proteger o próprio dólar dos riscos
do progressivo abandono internacional. Donald Trump não gosta da política de
taxas elevadas da Reserva Federal, que gera um dólar demasiado forte para as
exportações das empresas de bandeira americana, sobrecarregadas pelo custo do
crédito, e que correm o risco de limitar o spread do dólar,
porque é excessivamente oneroso para os seus usuários, especialmente em países
emergentes.
·
Donald Trump e o
projeto de uma nova centralidade monetária norte-americana
Nesta perspectiva,
o bitcoin e as criptomoedas tornam-se não apenas um objeto
sobre o qual construir operações especulativas, talvez lideradas por fundos
de hedge próximos do próprio Donald Trump, mas também um meio
para definir um novo instrumento monetário “ideologicamente” mais popular e
antiestatal, que possa manter a centralidade monetária americana, passando-a
para o nível digital.
Neste sentido, Donald
Trump quer “americanizar” a criptografia monetária e, coerente com uma atitude
semelhante, fez saber que não voltará a colocar em circulação as criptomoedas
apreendidas pelas autoridades federais, que somam quase nove bilhões de dólares,
para constituir a reserva estratégica acima mencionada e evitar choques aos
cerca de 50 milhões de americanos detentores desse tipo de ativo.
Mais que tudo,
declarou que substituirá os dirigentes da SEC (Securities and Exchange
Commission), autoridade supervisora da bolsa, a começar por Gary Genser,
que sempre foi hostil a esse tipo de instrumentos de pagamento. O próprio
Donald Trump também mencionou a possibilidade de unir logisticamente sistemas
de Inteligência artificial altamente intensivos em energia com mineradores
digitais, para otimizar a exploração de picos de energia que, de outra forma,
seriam dispersados, lutando, ao mesmo tempo, pela liderança mundial em inteligência
artificial e mineração.
Nessa mesma linha,
Donald Trump indicou que as compras governamentais de bitcoin devem
atingir 4 ou 5% do volume total disponível. A estratégia das stablecoins também
se coloca em uma perspectiva semelhante: as empresas que emitem stablecoins atreladas
ao dólar devem comprar o equivalente em títulos do governo norte-americano.
Assim, ao substituir o circuito do eurodólar pelo das stablecoins,
os Estados Unidos recuperariam, de fato, o controle dessa monstruosa massa
monetária de dólares espalhada por todo o globo, que agora é predominantemente
controlada pelos mercados de valores.
Uma posição tão clara
pode ser lida como mais uma controvérsia do capitalismo desenfreado contra os
Três Grandes que usam bitcoin para criar ETFs, mas sempre
demonstraram grande desconfiança em relação ao cenário criptográfico geral,
porque o bitcoin e as criptomoedas reduziriam o monopólio de
liquidez detido pelos próprios Três Grandes, graças à poupança gerenciada.
A multiplicação dos
instrumentos de pagamento favorece aqueles que estão fora do monopólio de
liquidez e abre espaços, mesmo em termos especulativos, fora das escolhas da
Vanguard, da Black Rock, da State Street e do seu braço armado, o JP Morgan. A
posição assumida por Donald Trump em Nashville visou, mais uma vez, construir
um consenso em relação ao candidato republicano por parte daquela vasta parcela
dos americanos que não se reconheciam no modelo “Democrata” dos grandes fundos,
capazes de reduzir os riscos por conta do seu status de monopólio e, portanto,
capaz de garantir políticas de saúde e segurança social não apoiadas pelo
Estado a milhões de americanos.
As criptomoedas são
uma parte do paradigma libertário e do espírito “competitivo” do capitalismo
que Donald Trump que, apoiada pelo candidato Vance, se dispõe a invectivar em
tom patriótico contra a Wall Street da elite. É provável, à luz disto, que além
de Gary Genser, da SEC, Trump, se vitorioso, também afaste Jerome Powell,
precisamente por conta da sua política de taxas elevadas, atualmente alimentada
por uma enorme quantidade de emissões de curto prazo, acionadas para manter
altas as taxas de longo prazo sem depreciar os títulos.
Assim, a vitória de
Donald Trump seria um verdadeiro terremoto financeiro, institucionalmente
motivado, que forçaria “os senhores do mundo” a lidar com a política, talvez
modificando a estrutura superior do capital financeiro; uma “remodelação”
necessária para enfrentar as tensões com a economia comunista chinesa; coisa
por agora completamente inconciliável com o pacto Democratas-Três Grandes.
·
Progressismo não é
sinônimo de “esquerda”
Quase toda a imprensa
italiana, incluindo Il Manifesto, celebrou a candidatura de Tim
Walz como vice-presidente em termos de escolha “de esquerda”. Esta é uma
definição decididamente arriscada para um personagem que está substancialmente
alinhado com Kamala Harris em questões de política econômica e financeira. Não
é por acaso que, para corroborar aquela proposição, os meios de comunicação
italianos citaram as declarações de Donald Trump e o apoio de um Bernie Sanders
cada vez mais confuso.
A verdadeira questão é
que para a imprensa italiana “esquerda” é um sinônimo estrito de
“progressismo”; uma categoria que, na verdade, combina amplas aberturas em
direitos e liberdades com uma profunda fé capitalista. Portanto, Harris-Walz vs
Trump-Vance deveria ser definido em termos do choque entre capitalismos, sem
introduzir o termo “esquerda” e sem ter que mencionar o apoio de Dick Cheney a
Harris, que até mesmo se declarou a favor do fracking.
Fonte: Por Alessandro
Volpi, em A Terra é Redonda
Nenhum comentário:
Postar um comentário