quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Rôney Rodrigues: Elitismo intelectual precisa parar de “matar a esquerda”

Em entrevista para Uol, o filósofo da USP, Vladmir Safatle afirmou novamente que a “esquerda morreu”. De maneira reiterada, Safatle tem feito esta afirmação, pautado por preocupações legitimas quanto ao posicionamento ideológico recuado dos partidos de esquerda, seja no processo eleitoral, seja na atuação do governo Lula. Há de se concordar, que sim, o recuo tático dos partidos de esquerda e sua postura reativa frente ao avanço da extrema-direita, é sim uma preocupação. Contudo, algumas afirmações de Safatle são bastante preocupantes, tanto por seu conteúdo, quanto pelo momento em que estão sendo feitas.

O resultado do 1º turno das eleições de 2024, mostrou que a centro-direita e a extrema direita, tiveram avanços significativos, seja na quantidade de prefeitos e vereadores eleitos, seja nas vitórias ocorridas nas grandes cidades (acima de 200 mil habitantes). Isso reflete, que a tática dos partidos de esquerda em adotar, discursos ideologicamente recuados, foi fracassada. Essa ideia apregoada pelas grandes empresas de marketing eleitoral, de que a esquerda precisaria moderar o seu discurso para não ser vista como “radical”, para supostamente conquistar o eleitor médio, foi o grande derrotado nestas eleições! Os partidos de esquerda escutaram o conto da carochinha de marketeiros ultrapassados, que tiveram a única intenção de abocanhar o fundo eleitoral e não em fazer enfretamento político. Esta tática acéfala e cunhada em dados estatísticos vazios e sem análise crítica da realidade, custou caríssimo aos partidos de esquerda, seja pelos volumes vultuosos de recursos do fundo eleitoral despejado com marketing eleitoral, seja pelas derrotas colhidas na eleição.

Entretanto, insistir na afirmação que isso representa a morte da esquerda, é um erro crasso! Este derrotismo de Safatle, nos leva ao mais puro imobilismo, nos leva a assistir as dificuldades do campo da esquerda, de braços cruzados, como se fossemos expectadores da desgraça ou profetas do fim do mundo. É necessário sair dos bancos mofados da FFLCH-USP, sair desta postura derrotista e elitista, e reconhecer que sim há dificuldades, mas nunca, jamais, haverá vitória, sem luta! É necessário apoiar os “renascimentos” dos ideais de esquerda e não apontar insistentemente sua morte, e muito menos “chutar cachorro morto”.

“Ah, mas naquele tempo de fundação do PT, a esquerda funcionava com uma tríade juntando a academia, os sindicatos e igrejas progressistas e isso precisa ser renovado”

Estamos em 2024, com outros fatores conjunturais e estruturais, no meio de uma eleição municipal disputadíssima, e este “Sebastianismo de Esquerda”, definitivamente não contribui em nada.

Safatle afirma, que a esquerda está envelhecida… Em São Paulo, Boulos é candidato do PSOL, apoiado pelo PT, e tem 42 anos. A vereadora mais votada do PT, Luna Zarattini, tem 30 anos, outro novo vereador do partido, Dheison Silva tem 36 anos, um jovem de periferia. No PSOL, Luana Alves da luta da educação popular, Amanda Paschoal da pauta LGBTQIAPN+, Keit Lima da pauta das periferias e da participação popular, todos, abaixo de 35 anos.

Ao menos, na cidade de Vladmir, São Paulo, esta afirmação de que a esquerda estaria envelhecida, é absolutamente falsa! Objetivamente, citamos jovens vereadores eleitos, e com discurso atuais e avançados, ligados a pauta das mulheres, das periferias, da participação popular na política. Por que Vladmir Safatle “assassina” a esquerda, mesmo enxergando estas novidades em São Paulo?

Além disso, Vladmir afirma que a esquerda não tem proposta para as periferias e ignora o fato de que movimentos populares, fóruns e redes dos 5 cantos da Capital paulista, se reuniram para realizarem o “Encontro das Periferias” no dia 25 de agosto de 2024, movimento autônomo, que reivindica voz política e direitos. Lutar por voz política não é lutar por Soberania Popular? Reconhecer as feridas da escravidão, o efeito nefasto do capitalismo na formação proposital das periferias urbana, e lutar por mobilidade urbana e empregabilidade nas periferias, não é uma luta pela igualdade?

O movimento entregou em suas mãos, em Itaquera, o Manifesto das Periferias. Por que este documento foi ignorado em sua análise? Dia, inclusive que, membros do Movimento o interpelaram sobre sua ideia de “Morte das esquerdas”. O documento sintetizou 98 propostas para as periferias, assinada por diversas candidaturas a vereador e pelo próprio candidato a prefeito, Guilherme Boulos. Por que novamente, Safatle insiste em “assassinar” a esquerda, mesmo com este evidente surgimento de um movimento popular autônomo?

Afirmar, que a esquerda não tem proposta para periferia e que está envelhecida, é absolutamente falso. É possível afirmar sim, que os Movimentos Populares poderiam ter sido mais ouvidos pelas campanhas eleitorais, que mais candidaturas avançadas poderiam ter tido mais espaço. É possível sim, afirmar que membros da Elite Intelectual, como ele próprio, ignoram a existência de novos Movimentos Populares nas periferias. Mas dizer que a esquerda está morta, sinceramente, é um equívoco!

Me parece, que sim, há uma esquerda morrendo, a esquerda burocrata, a esquerda dos gabinetes, a esquerda dos simpósios e congressos mofados da USP, a esquerda que ainda cai em contos da carochinha de marqueteiros.

A elite intelectual deste país, especialmente de esquerda, precisa perceber o nascimento de novos movimentos populares, novas ideias em disputa, novas propostas de organização partidária. É possível sair do banco confortável do niilismo, mas definitivamente não será fazendo ilações no meio de uma disputa eleitoral acirrada. Não há projeto legitimamente de esquerda que não seja construído com o povo e com as periferias… Cadê os intelectuais, membros das direções partidárias construindo novos projetos nacionais junto com as periferias? É necessário descer do salto e vir aqui pra base e construir junto! Há momentos adequados para autocrítica, hoje, dia 14 de outubro, não é o momento, agora temos que ir para cima de Ricardo Nunes, ir pras ruas e disputar uma eleição dificílima, em que esquerda precisa de apoio e não de gente do nosso campo atirando pedras!

 

•        A esquerda precisa se redefinir. Por Maurício Rands

Daqui a dois anos o país já tem encontro marcado. Vários temas hoje nos dividem. Entre eles, o modelo de democracia que queremos. Um polo abrange todos os que defendem o Estado Democrático de Direito. Nesse campo, há forças que se identificam com a esquerda, com o centro e com a direita. Mas que convergem no compromisso democrático. Um outro polo, identificado com o populismo autoritário de direita, agrupa aqueles que não se importam muito com os limites do constitucionalismo democrático. Aqueles que, para interditar as bandeiras e forças progressistas, não se importam em quebrar as regras do regime democrático. Mesmo depois de todas as evidências de que o 8/1 não foi apenas uma baderna. Mesmo depois das provas de que a ocupação das sedes dos poderes tinha o objetivo de forçar o Alto Comando das FFAA a fazer uma intervenção militar para reverter o resultado das urnas de outubro de 2022. Essas forças marcharam unidas nas últimas presidenciais, estiveram unidas nas articulações e mobilizações para o golpe. E somaram esforços para emplacar a narrativa de que o 8/1 foi mero vandalismo.

O polo progressista foi derrotado nas eleições municipais. Para ser viável nas presidenciais daqui a dois anos, a esquerda vai precisar se reafirmar. Não se trata de simplesmente saber fazer alianças com o centro e a direita democrática. Como alguns propõem (v. por ex., as sugestões de Marcelo Freixo, O Globo, 12/10/24). Nem se trata de disputar eleições escondendo o seu ideário, como fizeram campanhas vitoriosas como as de João Campos e Eduardo Paes, nas recentes eleições do Recife e do Rio. Campanhas anódinas, inspiradas apenas por marqueteiros e pelo senso de oportunidade. Esconderam o DNA de suas tradições políticas, não apenas a figura simbólica do presidente Lula. Para ganhar assim, fica difícil justificar a sintonia com um projeto de cidade, de país e uma visão de mundo. Ganhar disfarçado, a que serve além dos projetos pessoais de poder? Ganhar escondendo valores e princípios pode ter um custo mais na frente. Porque isso pode ser visto como uma renúncia aos projetos políticos coletivos e transformadores. Resumir o debate apenas a mostrar que o candidato é um bom gestor, ou que é “do bem”, equivale a abrir as portas para que amanhã, um outro, com visão de mundo oposta, ocupe o seu lugar. Com as consequências graves de empoderamento de projetos autocratas, elitistas e concentradores de poder e renda. Afinal, o mero culto à personalidade não produziu bons resultados na história.

Para contornar essa tentação oportunista, a esquerda vai ter que expressar seus valores. Não se deixar definir pela caricatura que é feita pelos seus adversários. Ou pelos que ignoram as categorias da ciência política e são presas ingênuas ou interesseiras dos conservadores e reacionários ideologizados. Que simplificam, distorcem e esvaziam os conteúdos. O desafio não é o das obviedades tipo “o trabalhador não sonha mais em ser CLT”. Ou “as novas tecnologias mudaram o perfil do trabalho”. Ou simplesmente “a defesa do empreendedorismo dos jovens da periferia”. Trata-se de encontrar um equilíbrio desafiador. Manter, valorizar e desenvolver os princípios fundantes do pensamento de esquerda. A maior igualdade possível, a solidariedade social, a ética republicana, a democracia participativa, o compromisso com os pobres, excluídos e deserdados, a revolução educacionista, a inclusão digital, a paz mundial, a emancipação humana e a justiça social para as gerações futuras através do respeito ao meio-ambiente. Mas a esquerda vai precisar ir além da reafirmação de seus valores. Vai precisar retomar ou reforçar a conexão com os trabalhadores e os demais grupos sociais vulneráveis. Inclusive com um novo cardápio de propostas que respondam aos novos anseios através de uma nova concepção de desenvolvimento.

 

•        As lições das eleições municipais e os desafios políticos da esquerda. Por Edson Santos

Fomos derrotados e houve um encolhimento do campo de esquerda nas eleições municipais em todo o país. Em número de prefeituras, a esquerda aumentou, embora bem menos do que a direita e a extrema-direita. Porém, em número absoluto de votos e em termos da importância dos municípios em que venceu, a esquerda viu seu capital político minguar ou, no máximo – na visão do mais otimista dos militantes – ter uma discreta recuperação em comparação com as eleições de 2020. Ao que se deve?

Em nossa formação política, aprendemos a dirigir nosso discurso ao setor formal da economia, sobretudo aos trabalhadores organizados em sindicatos, associações e movimentos sociais. Só que o mundo mudou.

Vivemos a quarta revolução industrial, com as máquinas literalmente tomando os lugares antes reservados à classe operária, vide a expansão do modelo das fábricas chinesas de automóveis que chegam ao Brasil. Nelas, os poucos operários que ainda participam da produção, substituídos aos milhares por robôs e pela inteligência artificial, não serão capazes de reviver, por exemplo, o fenômeno protagonizado pelos metalúrgicos do ABC Paulista na década de 1980.

Em “Multidão: Guerra e democracia na era do Império”, o filósofo marxista Antonio Negri e seu aluno Michael Hardt discorrem sobre o advento de um novo setor, o dos desorganizados. Setor que aqui no Brasil é formado por motoristas de aplicativos, entregadores de plataformas digitais, moto-taxistas, bronzeadoras e toda uma gama de trabalhadores que lutam pela sobrevivência em ocupações, em geral, precarizadas, intermitentes e sem vínculos.

Empolgantes em seu otimismo, Negri e Hardt consideram que estes grupos podem vir a convergir numa comunidade global interligada em redes, uma nova matriz de resistência à ordem mundial vigente e ao imperialismo dos Estados Unidos.

Ao analisar a conjuntura, porém, o que vemos é que estes setores desorganizados estão sendo capturados pela extrema direita, que com o discurso do empreendedorismo e da prosperidade incute falsas utopias nas cabeças das pessoas, sem que nós, do campo de esquerda, tenhamos um contraponto a apresentar. Esta é a principal fonte do nosso afastamento dos setores populares.

Além da redução substancial da classe trabalhadora clássica e do crescimento de novos setores proletários, a revolução tecnológica fez emergir também uma nova classe média. Setor que é igualmente atraído pelo discurso da prosperidade e pelas pautas de costumes da extrema direita, que vende sonhos ao invés de políticas objetivas. E, o que é pior, um setor que forma opinião e que defende figuras nefastas que hoje simbolizam esta distopia no campo político. 

É possível traçar um rápido paralelo com o momento que era vivido, no início da década de 1930, na Alemanha, país europeu mais afetado pela grande depressão de 1929 – que marcou a decadência do liberalismo econômico, tendo como principais causas a superprodução e a especulação financeira. A esquerda social democrata e o comunismo alemão faziam um discurso distante do sentimento das massas. Enquanto isso, o social nacionalismo prometia recuperação econômica, soberania e prosperidade com o enfrentamento às duras penalidades impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes – acordo de paz assinado em 1919, que encerrou a I Guerra Mundial. Com esse discurso, o nazismo foi vitorioso na disputa por hegemonia política e, mesmo que por meio de um golpe de Estado, Hitler chegou ao poder.

Cabe ressaltar que no período entre Versalhes e a ascensão do nazismo, a República de Weimar foi um dos mais democráticos da história da Alemanha, inclusive do ponto de vista da igualdade de gênero e outros avanços sociais. Porém, os setores camponeses e parte da classe média não entendiam e não aceitavam esses avanços, muito parecido com o que vivemos hoje em relação aos movimentos identitários.

Temos no Brasil uma extrema direita com expressão e força na sociedade, uma centro-direita expressiva e uma esquerda sem rumo do ponto de vista da orientação política. Espero que não caiamos naquilo que resultou a disputa na Alemanha, onde mesmo a centro-direita foi derrotada, porque os nazistas não admitiam opiniões contrárias.

Será que teremos condições de reagir a tempo a essas ameaças com a formulação de políticas e estratégias capazes de reverter o esvaziamento do campo de esquerda? Será que conseguiremos separar o joio do trigo, a saber, a direita democrática da extrema-direita raivosa, para encaminhar a construção de um projeto de nação que atenda aos atuais anseios da sociedade? Será que conseguiremos, como propõe o sociólogo Jessé de Souza, ir às favelas e periferias explicar ao eleitor pobre as razões das injustiças sociais e de “sua escolha momentânea equivocada por um moralismo repressor”?

Como o maior partido de esquerda da América Latina, e como o grande aglutinador das forças democráticas e populares, o PT e o presidente Lula, respectivamente, têm a grande responsabilidade de pensar e colocar em prática políticas voltadas a esses setores hoje invisibilizados. Só assim seremos capazes de impedir que a “nova classe trabalhadora” seja capturada pelo discurso pretensamente antissistema da extrema-direita hoje em ascensão no Brasil.

 

Fonte: Outras Palavras/Brasil 247

 

Nenhum comentário: