quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Sergio Ferrari: Soberania alimentar ou fome soberana?

Num planeta onde uma em cada onze pessoas passará fome em 2023, importantes movimentos sociais do campo consideram a soberania alimentar como o principal antídoto para este drama. No próximo dia 16 de outubro, por ocasião do Dia Internacional de Ação pela Soberania Alimentar dos Povos contra as Corporações Transnacionais, representantes do campesinato global e das comunidades indígenas e migrantes, bem como mulheres, meninos e meninas camponeses, pescadores, pastores e pequenos produtores, convocam para manifestações em todos os continentes. O chamado é em defesa da vida, da alimentação saudável e soberana do povo e dos direitos dos camponeses.

O apelo, divulgado pela Via Campesina, o maior movimento rural a nível global, apresenta o contexto desta convocatória ao protesto cidadão. Segundo a Via Campesina, que reúne cerca de 200 milhões de agricultores de 180 organizações locais e nacionais em 81 países, “diariamente o mundo acorda com notícias sobre como a degradação ambiental está se agravando enquanto as elites do poder corporativo continuam enriquecendo graças à crise que elas mesmo produziram”. Para a Via Campesina, “a vida está sob constante ameaça e muitas políticas públicas estão sendo despojadas de direitos fundamentais como a saúde, a habitação e a alimentação, bem como os direitos coletivos e camponeses, [o que] levou a uma deterioração da justiça social e à monopolização dos bens comuns”.

Neste quadro, o campesinato global, juntamente com outros setores sociais vulneráveis, é confrontado com a desapropriação permanente dos seus meios de vida e de subsistência. Segundo a Via Campesina, esta realidade é agravada pela ocupação militar de territórios que destrói “a biodiversidade e a soberania alimentar, ao mesmo tempo que semeia o terror e ceifa vidas em várias partes do mundo, como Palestina, Líbano, Sudão, Iêmen e Haiti”. Embora os protestos rurais continuem em muitas regiões, são confrontados com a criminalização da luta pela terra e pelo território, uma luta que continua cobrando a vida de ativistas sociais nas Honduras, nas Filipinas, na Colômbia e no Brasil, entre outros países.

Para a Via Campesina, a desapropriação de terras e a repressão sistêmica são expressões do modelo produtivo hegemônico: o agronegócio (ou seja, a grande produção agroindustrial para exportação), a exploração extrativista e a mineração. Um modelo que também agrava a crise climática e coloca em risco o direito dos povos à alimentação. Segundo esta organização internacional, mais de 2 bilhões de pessoas – quase um terço da população mundial – lutam para ter acesso regular a uma alimentação adequada; entretanto, a fome e a insegurança alimentar aguda já afetam outros 864 milhões de pessoas, especialmente mulheres e crianças. Para construir uma verdadeira soberania alimentar, a Via Campesina exige uma mudança profunda nas políticas e no próprio modelo produtivo para que o planeta possa afastar-se “da dependência de produtos agrícolas importados que emitem carbono e da agricultura impulsionada pelas corporações”.

•        Dois conceitos diferentes

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) considera que podemos falar de segurança alimentar quando as pessoas têm acesso a alimentos saudáveis e nutritivos que satisfaçam as suas necessidades nutricionais, sustentem o seu corpo e lhes permitam desfrutar de uma vida saudável e cheia de energia.

De acordo com a Organização Não Governamental Ação Contra a Fome, a segurança alimentar relaciona-se com o custo de uma alimentação saudável e com o acesso a ela. Ou seja, com o poder aquisitivo de uma pessoa para comprar alimentos que garantam uma boa nutrição e assim evitar a desnutrição.

Por sua vez, a Via Campesina destaca o conceito de soberania alimentar, como “o direito que cada povo tem de definir a sua política em matéria de alimentação”. Seu objetivo é devolver ao consumidor a capacidade de decidir e controlar o que coloca na mesa, independentemente dos interesses dos grandes produtores agroindustriais. Esta organização aposta que a soberania de uma região ou país não seja afetada por sua dependência da produção alimentar de outros países e pela sua importação em grande escala.

Como explica a Ação Contra a Fome, até recentemente os conceitos de soberania e segurança eram entendidos da mesma forma, praticamente como sinônimos. Mas a situação mudou quando o comércio de produtos alimentícios e agropecuários foi liberado em favor de grandes empresas que, em muitos casos, absorveram um número significativo de pequenos produtores rurais. “Uma das principais diferenças entre estes termos”, sublinha a Ação Contra a Fome, “é que a segurança alimentar é um conceito neutro que não julga a concentração de poder aos níveis do comércio de alimentos, enquanto a soberania alimentar contrasta a assimetria de poder nos vários mercados mundiais”.

É esta nova realidade que levou a Via Campesina a identificar a soberania alimentar como uma prioridade, e é neste quadro de referência conceitual que a mobilização de 16 de outubro defende “uma transformação sistêmica que proteja a nossa relação simbiótica com a Mãe Terra e que garanta a justiça social, a paz e uma reforma agrária integral que garanta viver com dignidade, livres da pobreza e da fome”.

•        Alternativas são possíveis

Segundo a concepção da Via Campesina, deve-se exigir uma transição agroecológica que proteja os sistemas alimentares locais e promova um novo quadro comercial baseado nos princípios da soberania alimentar. E insta à implementação urgente de políticas públicas que apoiem e promovam esta transição justa para uma produção agroecológica que priorize modelos de economia camponesa, social e solidária.

As políticas agrícolas dirigidas pelas corporações, denuncia a Via Campesina, só pioram a crise climática, e os produtos agrícolas importados estão causando um desespero crescente entre o campesinato, por isso é imperativo “frear o poder crescente das empresas nos espaços políticos dos nossos países e em espaços multilaterais.”

Por esta razão, propõe o desenvolvimento e implementação de um tratado vinculativo das Nações Unidas que regule as empresas transnacionais, ponha fim às violações dos direitos humanos, acabe com a impunidade e garanta o acesso à justiça para as comunidades afetadas.

A mensagem é clara: é urgente estabelecer um sistema de resposta às alterações climáticas que reconheça o campesinato como um ator-chave, especialmente as mulheres camponesas, que em muitos países e culturas ainda carecem de direitos legais. Por isso, é fundamental alterar leis e políticas públicas para garantir-lhes o direito à propriedade da terra, reconhecendo o seu papel histórico na agricultura.

Por outro lado, a defesa e proteção da população camponesa, bem como das pessoas que defendem os direitos humanos, se converte em uma tarefa essencial face à violência que viola esses direitos e promove a estigmatização e a criminalização. Finalmente, o fundamento da Via Campesina reivindica como fundamental a implementação da Declaração das Nações Unidas de 2018 sobre os Direitos dos Camponeses e Outros Trabalhadores Rurais (UNDROP).

•        Debate internacional

Desde a sua fundação em 1993, a Via Campesina não só buscou crescer como uma organização de referência no mundo rural; também tem promovido a disputa por espaços de debate em organismos internacionais, especialmente nas Nações Unidas. Ela continua sendo uma linha de ação prioritária que a levará a participar em diversos eventos com mobilizações setoriais ou regionais nos próximos meses. Entre outros, a convocatória em defesa da biodiversidade no âmbito da Conferência das Partes COP 16, “Paz com a Natureza”, em Cali, Colômbia, de 21 de outubro a 1º de novembro, e o Terceiro Fórum Global Nyéléni pela Soberania Alimentar, Global Justiça e Mudança Sistêmica, na Índia em 2025.

Quanto à Europa, a Coordenação Europeia da Via Campesina volta à luta e insiste que “devemos priorizar a Soberania Alimentar” no próximo ajuste da regulamentação da Política Agrícola Comum (PAC). A PAC é a política comum para todos os países da União Europeia e é gerida e financiada em escala continental através de recursos do orçamento da União.

Comentando o impacto do atual episódio inflacionário, particularmente nos alimentos, desde o início da guerra Rússia-Ucrânia, a Coordenação observou que esta nova situação “deve também levar-nos a reconsiderar a estabilização dos preços dos alimentos como um objetivo em si dentro da Política Agrícola Comum”. E definiu a agenda futura: garantir preços justos e estáveis; aumentar o número de camponeses e de explorações agrícolas; ajustar os volumes de produção à capacidade física dos territórios; enfrentar os atuais problemas climáticos e ambientais; prevenir a desestabilização dos mercados alimentares; minimizar as consequências da monopolização dos elos da cadeia alimentar e dispor de instrumentos regulatórios para intervir eficazmente e reequilibrar os mercados. Tudo isto, apoiando a transição agroecológica e as práticas agrícolas sustentáveis, reforçando a política de prevenção e gestão de crises e aumentando a regulação das importações. Sem dúvida, este é um verdadeiro programa rural alternativo para o Velho Mundo, em busca de novos paradigmas para o futuro.

 

•        Produção do MST no Rio Grande do Sul manteve solo preservado mesmo após enchentes. Por Amanda Audi

Quase três milhões de hectares de terras do Rio Grande do Sul perderam a fertilidade após o impacto das enchentes que devastaram o estado em maio, segundo a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater). A enxurrada levou parte dos nutrientes necessários para o plantio, tornando necessário um plano de recuperação do solo que pode durar meses ou até anos, dependendo do estrago.

Mas isso não aconteceu no assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Integração Gaúcha em Eldorado do Sul, região metropolitana de Porto Alegre.

O local foi tão afetado quanto o resto da cidade, que chegou a ficar 100% submersa. Todo o plantio ficou debaixo da água e foi perdido, assim como toneladas de produtos que estavam armazenados. Mas a produção foi retomada menos de três meses depois do desastre, ao contrário de outras propriedades rurais da região, que ainda tentam se recuperar dos estragos.

A diferença foi o tipo de manejo do solo realizado pelos assentados. Em vez de deixar a terra “pelada”, só com o plantio da estação, o assentamento tem uma cobertura vegetal rica. E, em vez de produzirem só um determinado tipo de produto, eles respeitam as épocas dos alimentos e fazem rotação de culturas. Isso ajudou a brecar a erosão e, consequentemente, a perda de fertilidade.

Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) analisou amostras do solo do local e atestou que a qualidade do solo se manteve quase inalterada.

<><> Por que isso importa?

•        As enchentes de maio deixaram três milhões de hectares improdutivos no Rio Grande do Sul. Mas isso não aconteceu no assentamento do MST em Eldorado do Sul, onde, apenas três meses depois da tragédia, a produção já foi retomada. O segredo está no manejo do solo realizado pelos assentados.

“Nós procuramos fazer uma série de ações de apoio após a catástrofe em Eldorado do Sul. Uma das ações foi a coleta de amostras de solo, para verificar possíveis alterações resultantes da enchente. O que percebemos foi que, na verdade, não houve alteração significativa nas características físicas e químicas”, disse o professor Paulo César do Nascimento, um dos autores. “Os resultados são típicos para aqueles solos que são utilizados para o cultivo de hortas. Por exemplo, o solo não está ácido e temos teores altos de nutrientes como fósforo e potássio”, continua.

Ele explicou que o terreno de Eldorado do Sul é relativamente plano, fazendo com que a enxurrada não tivesse tanta força quanto em outros lugares do estado. Isso ajudou a manter parte da cobertura. Ainda assim, a área ficou quase 30 dias como se estivesse dentro de um grande lago.

“Pode-se avaliar que o manejo também ajudou, principalmente pela manutenção do solo coberto, rotação de culturas, entre outros. Então, pode-se dizer que o manejo característico do sistema de produção orgânico teve uma contribuição para manter as características do solo praticamente inalteradas”, explicou o professor.

Poder-se-ia argumentar que isso faz sentido para a produção familiar, em pequenas propriedades, mas não é o caso. O assentamento tinha a previsão de colher mais de 100 mil sacas de arroz apenas nesta safra – ou 7,5 mil toneladas. A produção de hortaliças também é grande, e abastece as feiras orgânicas da capital.

<><> Assentados querem se mudar

O Integração Gaúcha foi criado no início dos anos 1990, com famílias de várias regiões do Rio Grande do Sul. O local era do Instituto Rio Grandense do Arroz, mas estava abandonado – tinha apenas algumas árvores esparsas. Ao longo das últimas três décadas, os moradores o transformaram em um dos maiores produtores de arroz orgânico do estado, além da produção de leite e de mais de cem tipos de hortaliças que são vendidas em feiras da região de Porto Alegre.

O assentamento fica a mais de cinco quilômetros de distância do rio Jacuí, então, apesar de ser uma região que costuma ter alagamentos, eles não costumavam chegar até a área do MST.

No dia 2 de maio deste ano, porém, a água chegou. As famílias receberam o aviso de que deveriam deixar suas casas, mas estavam descrentes. Treze pessoas que demoraram a sair tiveram que ser resgatadas depois, com um barco comprado com vaquinha dos próprios assentados.

De acordo com os moradores, a prefeitura de Eldorado do Sul não enviou ajuda a tempo – até porque o município inteiro estava em estado de calamidade –, então tiveram que se virar. Ainda assim, o assentamento hoje doa mais de mil marmitas por dia para abrigos na cidade e em Canoas, com alimentos produzidos no local.

José Mariano Matias, um dos assentados, achava que as maiores dificuldades que passaria na vida seriam os cinco anos e meio acampado antes de o terreno ter sido destinado à reforma agrária e, depois, o período da pandemia, quando as vendas caíram e a produção se tornou praticamente para subsistência. Mas nada se comparou à enchente.

“A gente está aqui há 33 anos e nunca tinha vivido nada deste tipo. A maioria saiu com a roupa do corpo, foi uma prova de resistência”, afirma.

Seu filho, Gabriel Matias, que estuda agronomia, diz que, apesar de o impacto ter sido grande, o trabalho agroecológico deixou a terra mais íntegra. “A cobertura do solo formou uma barreira que não deixou a água levar”, diz. “E, por ser um solo rico, formou-se uma ‘casquinha’ na superfície que não deixou a água penetrar.”

Os agricultores acharam que iam demorar um ano para voltar a produzir e se surpreenderam com a resposta rápida do solo. “É muito tempo trabalhando de forma ecológica, então a terra se protegeu”, afirma Rose Porto, outra assentada.

Logo depois do desastre, a maioria das famílias queria reivindicar uma nova terra. Agora, após o início da retomada da produção, o número baixou, e estima-se que menos de um terço ainda tem esse desejo.

Amarildo Mulinari, produtor de arroz, é de uma das famílias que quer deixar o lugar por medo de novas enchentes. Neste caso, as famílias têm que ser inseridas novamente na fila da reforma agrária e aguardar por novas terras destinadas a esse fim.

“Esse desastre tem nome, é a ganância do agronegócio. É descarada a destruição dos biomas. Não temos dúvida que a água vai voltar porque os rios vão assorear, não tem mata ciliar. Nós somos só um pedacinho, não adianta só aqui fazer certo e todo o resto continuar desse jeito”, diz.

“Continuamos apoiando o governo, mas a ajuda não está chegando na ponta”, reclama, sobre a gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que é historicamente alinhado ao MST. Mulinari diz que os assentados receberam os R$ 5,1 mil de auxílio do governo federal, como todos os outros impactados pelas enchentes, mas precisam de ajuda para retomar a produção como era antes. Uma bomba para irrigação de arroz, que foi perdida na enchente, custa R$ 35 mil. “Nós doamos dez caminhões de alimentos durante a pandemia, mais de 54 mil marmitas para os desabrigados só em julho. Queremos colaborar, mas também precisamos de ajuda.”

O governo federal informou, em nota, que está tomando medidas para as áreas de reforma agrária atingidas pelas enchentes através do Incra. Foram abertos um total de R$ 172,8 milhões em créditos extraordinários para essas demandas. Em Eldorado do Sul, 390 famílias serão atendidas com acesso a crédito e 79 pela linha habitacional, para as que tiveram as casas danificadas.

“Paralelamente”, diz a nota, “o Incra também oficiou a Secretaria de Desenvolvimento Rural do Rio Grande do Sul manifestando a intenção de identificar potenciais imóveis rurais de propriedade do governo estadual para aquisição onerosa e destinação ao reassentamento. Além disso, a regional do Incra está realizando avaliações em áreas ofertadas por particulares, e prospectando imóveis junto ao Banco do Brasil e em cadastros de devedores da União.”

 

Fonte: Outras Palavras/Agencia Pública

 

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