Sergio Ferrari: Soberania alimentar ou fome
soberana?
Num planeta onde uma
em cada onze pessoas passará fome em 2023, importantes movimentos sociais do
campo consideram a soberania alimentar como o principal antídoto para este
drama. No próximo dia 16 de outubro, por ocasião do Dia Internacional de Ação
pela Soberania Alimentar dos Povos contra as Corporações Transnacionais,
representantes do campesinato global e das comunidades indígenas e migrantes,
bem como mulheres, meninos e meninas camponeses, pescadores, pastores e
pequenos produtores, convocam para manifestações em todos os continentes. O
chamado é em defesa da vida, da alimentação saudável e soberana do povo e dos
direitos dos camponeses.
O apelo, divulgado
pela Via Campesina, o maior movimento rural a nível global, apresenta o
contexto desta convocatória ao protesto cidadão. Segundo a Via Campesina, que
reúne cerca de 200 milhões de agricultores de 180 organizações locais e
nacionais em 81 países, “diariamente o mundo acorda com notícias sobre como a
degradação ambiental está se agravando enquanto as elites do poder corporativo
continuam enriquecendo graças à crise que elas mesmo produziram”. Para a Via
Campesina, “a vida está sob constante ameaça e muitas políticas públicas estão
sendo despojadas de direitos fundamentais como a saúde, a habitação e a
alimentação, bem como os direitos coletivos e camponeses, [o que] levou a uma
deterioração da justiça social e à monopolização dos bens comuns”.
Neste quadro, o
campesinato global, juntamente com outros setores sociais vulneráveis, é
confrontado com a desapropriação permanente dos seus meios de vida e de
subsistência. Segundo a Via Campesina, esta realidade é agravada pela ocupação
militar de territórios que destrói “a biodiversidade e a soberania alimentar,
ao mesmo tempo que semeia o terror e ceifa vidas em várias partes do mundo,
como Palestina, Líbano, Sudão, Iêmen e Haiti”. Embora os protestos rurais
continuem em muitas regiões, são confrontados com a criminalização da luta pela
terra e pelo território, uma luta que continua cobrando a vida de ativistas
sociais nas Honduras, nas Filipinas, na Colômbia e no Brasil, entre outros
países.
Para a Via Campesina,
a desapropriação de terras e a repressão sistêmica são expressões do modelo
produtivo hegemônico: o agronegócio (ou seja, a grande produção agroindustrial
para exportação), a exploração extrativista e a mineração. Um modelo que também
agrava a crise climática e coloca em risco o direito dos povos à alimentação.
Segundo esta organização internacional, mais de 2 bilhões de pessoas – quase um
terço da população mundial – lutam para ter acesso regular a uma alimentação
adequada; entretanto, a fome e a insegurança alimentar aguda já afetam outros
864 milhões de pessoas, especialmente mulheres e crianças. Para construir uma
verdadeira soberania alimentar, a Via Campesina exige uma mudança profunda nas
políticas e no próprio modelo produtivo para que o planeta possa afastar-se “da
dependência de produtos agrícolas importados que emitem carbono e da
agricultura impulsionada pelas corporações”.
• Dois conceitos diferentes
A Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) considera que podemos
falar de segurança alimentar quando as pessoas têm acesso a alimentos saudáveis
e nutritivos que satisfaçam as suas necessidades nutricionais, sustentem o seu corpo
e lhes permitam desfrutar de uma vida saudável e cheia de energia.
De acordo com a
Organização Não Governamental Ação Contra a Fome, a segurança alimentar
relaciona-se com o custo de uma alimentação saudável e com o acesso a ela. Ou
seja, com o poder aquisitivo de uma pessoa para comprar alimentos que garantam
uma boa nutrição e assim evitar a desnutrição.
Por sua vez, a Via
Campesina destaca o conceito de soberania alimentar, como “o direito que cada
povo tem de definir a sua política em matéria de alimentação”. Seu objetivo é
devolver ao consumidor a capacidade de decidir e controlar o que coloca na mesa,
independentemente dos interesses dos grandes produtores agroindustriais. Esta
organização aposta que a soberania de uma região ou país não seja afetada por
sua dependência da produção alimentar de outros países e pela sua importação em
grande escala.
Como explica a Ação
Contra a Fome, até recentemente os conceitos de soberania e segurança eram
entendidos da mesma forma, praticamente como sinônimos. Mas a situação mudou
quando o comércio de produtos alimentícios e agropecuários foi liberado em
favor de grandes empresas que, em muitos casos, absorveram um número
significativo de pequenos produtores rurais. “Uma das principais diferenças
entre estes termos”, sublinha a Ação Contra a Fome, “é que a segurança
alimentar é um conceito neutro que não julga a concentração de poder aos níveis
do comércio de alimentos, enquanto a soberania alimentar contrasta a assimetria
de poder nos vários mercados mundiais”.
É esta nova realidade
que levou a Via Campesina a identificar a soberania alimentar como uma
prioridade, e é neste quadro de referência conceitual que a mobilização de 16
de outubro defende “uma transformação sistêmica que proteja a nossa relação
simbiótica com a Mãe Terra e que garanta a justiça social, a paz e uma reforma
agrária integral que garanta viver com dignidade, livres da pobreza e da fome”.
• Alternativas são possíveis
Segundo a concepção da
Via Campesina, deve-se exigir uma transição agroecológica que proteja os
sistemas alimentares locais e promova um novo quadro comercial baseado nos
princípios da soberania alimentar. E insta à implementação urgente de políticas
públicas que apoiem e promovam esta transição justa para uma produção
agroecológica que priorize modelos de economia camponesa, social e solidária.
As políticas agrícolas
dirigidas pelas corporações, denuncia a Via Campesina, só pioram a crise
climática, e os produtos agrícolas importados estão causando um desespero
crescente entre o campesinato, por isso é imperativo “frear o poder crescente
das empresas nos espaços políticos dos nossos países e em espaços
multilaterais.”
Por esta razão, propõe
o desenvolvimento e implementação de um tratado vinculativo das Nações Unidas
que regule as empresas transnacionais, ponha fim às violações dos direitos
humanos, acabe com a impunidade e garanta o acesso à justiça para as comunidades
afetadas.
A mensagem é clara: é
urgente estabelecer um sistema de resposta às alterações climáticas que
reconheça o campesinato como um ator-chave, especialmente as mulheres
camponesas, que em muitos países e culturas ainda carecem de direitos legais.
Por isso, é fundamental alterar leis e políticas públicas para garantir-lhes o
direito à propriedade da terra, reconhecendo o seu papel histórico na
agricultura.
Por outro lado, a
defesa e proteção da população camponesa, bem como das pessoas que defendem os
direitos humanos, se converte em uma tarefa essencial face à violência que
viola esses direitos e promove a estigmatização e a criminalização. Finalmente,
o fundamento da Via Campesina reivindica como fundamental a implementação da
Declaração das Nações Unidas de 2018 sobre os Direitos dos Camponeses e Outros
Trabalhadores Rurais (UNDROP).
• Debate internacional
Desde a sua fundação
em 1993, a Via Campesina não só buscou crescer como uma organização de
referência no mundo rural; também tem promovido a disputa por espaços de debate
em organismos internacionais, especialmente nas Nações Unidas. Ela continua
sendo uma linha de ação prioritária que a levará a participar em diversos
eventos com mobilizações setoriais ou regionais nos próximos meses. Entre
outros, a convocatória em defesa da biodiversidade no âmbito da Conferência das
Partes COP 16, “Paz com a Natureza”, em Cali, Colômbia, de 21 de outubro a 1º
de novembro, e o Terceiro Fórum Global Nyéléni pela Soberania Alimentar, Global
Justiça e Mudança Sistêmica, na Índia em 2025.
Quanto à Europa, a
Coordenação Europeia da Via Campesina volta à luta e insiste que “devemos
priorizar a Soberania Alimentar” no próximo ajuste da regulamentação da
Política Agrícola Comum (PAC). A PAC é a política comum para todos os países da
União Europeia e é gerida e financiada em escala continental através de
recursos do orçamento da União.
Comentando o impacto
do atual episódio inflacionário, particularmente nos alimentos, desde o início
da guerra Rússia-Ucrânia, a Coordenação observou que esta nova situação “deve
também levar-nos a reconsiderar a estabilização dos preços dos alimentos como
um objetivo em si dentro da Política Agrícola Comum”. E definiu a agenda
futura: garantir preços justos e estáveis; aumentar o número de camponeses e de
explorações agrícolas; ajustar os volumes de produção à capacidade física dos
territórios; enfrentar os atuais problemas climáticos e ambientais; prevenir a
desestabilização dos mercados alimentares; minimizar as consequências da
monopolização dos elos da cadeia alimentar e dispor de instrumentos
regulatórios para intervir eficazmente e reequilibrar os mercados. Tudo isto,
apoiando a transição agroecológica e as práticas agrícolas sustentáveis,
reforçando a política de prevenção e gestão de crises e aumentando a regulação
das importações. Sem dúvida, este é um verdadeiro programa rural alternativo
para o Velho Mundo, em busca de novos paradigmas para o futuro.
• Produção do MST no Rio Grande do Sul
manteve solo preservado mesmo após enchentes. Por Amanda Audi
Quase três milhões de
hectares de terras do Rio Grande do Sul perderam a fertilidade após o impacto
das enchentes que devastaram o estado em maio, segundo a Empresa de Assistência
Técnica e Extensão Rural (Emater). A enxurrada levou parte dos nutrientes necessários
para o plantio, tornando necessário um plano de recuperação do solo que pode
durar meses ou até anos, dependendo do estrago.
Mas isso não aconteceu
no assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Integração Gaúcha em Eldorado do Sul, região metropolitana de Porto Alegre.
O local foi tão
afetado quanto o resto da cidade, que chegou a ficar 100% submersa. Todo o
plantio ficou debaixo da água e foi perdido, assim como toneladas de produtos
que estavam armazenados. Mas a produção foi retomada menos de três meses depois
do desastre, ao contrário de outras propriedades rurais da região, que ainda
tentam se recuperar dos estragos.
A diferença foi o tipo
de manejo do solo realizado pelos assentados. Em vez de deixar a terra
“pelada”, só com o plantio da estação, o assentamento tem uma cobertura vegetal
rica. E, em vez de produzirem só um determinado tipo de produto, eles respeitam
as épocas dos alimentos e fazem rotação de culturas. Isso ajudou a brecar a
erosão e, consequentemente, a perda de fertilidade.
Um estudo realizado
por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) analisou
amostras do solo do local e atestou que a qualidade do solo se manteve quase
inalterada.
<><> Por
que isso importa?
• As enchentes de maio deixaram três
milhões de hectares improdutivos no Rio Grande do Sul. Mas isso não aconteceu
no assentamento do MST em Eldorado do Sul, onde, apenas três meses depois da
tragédia, a produção já foi retomada. O segredo está no manejo do solo
realizado pelos assentados.
“Nós procuramos fazer
uma série de ações de apoio após a catástrofe em Eldorado do Sul. Uma das ações
foi a coleta de amostras de solo, para verificar possíveis alterações
resultantes da enchente. O que percebemos foi que, na verdade, não houve
alteração significativa nas características físicas e químicas”, disse o
professor Paulo César do Nascimento, um dos autores. “Os resultados são típicos
para aqueles solos que são utilizados para o cultivo de hortas. Por exemplo, o
solo não está ácido e temos teores altos de nutrientes como fósforo e
potássio”, continua.
Ele explicou que o
terreno de Eldorado do Sul é relativamente plano, fazendo com que a enxurrada
não tivesse tanta força quanto em outros lugares do estado. Isso ajudou a
manter parte da cobertura. Ainda assim, a área ficou quase 30 dias como se
estivesse dentro de um grande lago.
“Pode-se avaliar que o
manejo também ajudou, principalmente pela manutenção do solo coberto, rotação
de culturas, entre outros. Então, pode-se dizer que o manejo característico do
sistema de produção orgânico teve uma contribuição para manter as características
do solo praticamente inalteradas”, explicou o professor.
Poder-se-ia argumentar
que isso faz sentido para a produção familiar, em pequenas propriedades, mas
não é o caso. O assentamento tinha a previsão de colher mais de 100 mil sacas
de arroz apenas nesta safra – ou 7,5 mil toneladas. A produção de hortaliças
também é grande, e abastece as feiras orgânicas da capital.
<><>
Assentados querem se mudar
O Integração Gaúcha
foi criado no início dos anos 1990, com famílias de várias regiões do Rio
Grande do Sul. O local era do Instituto Rio Grandense do Arroz, mas estava
abandonado – tinha apenas algumas árvores esparsas. Ao longo das últimas três
décadas, os moradores o transformaram em um dos maiores produtores de arroz
orgânico do estado, além da produção de leite e de mais de cem tipos de
hortaliças que são vendidas em feiras da região de Porto Alegre.
O assentamento fica a
mais de cinco quilômetros de distância do rio Jacuí, então, apesar de ser uma
região que costuma ter alagamentos, eles não costumavam chegar até a área do
MST.
No dia 2 de maio deste
ano, porém, a água chegou. As famílias receberam o aviso de que deveriam deixar
suas casas, mas estavam descrentes. Treze pessoas que demoraram a sair tiveram
que ser resgatadas depois, com um barco comprado com vaquinha dos próprios
assentados.
De acordo com os
moradores, a prefeitura de Eldorado do Sul não enviou ajuda a tempo – até
porque o município inteiro estava em estado de calamidade –, então tiveram que
se virar. Ainda assim, o assentamento hoje doa mais de mil marmitas por dia
para abrigos na cidade e em Canoas, com alimentos produzidos no local.
José Mariano Matias,
um dos assentados, achava que as maiores dificuldades que passaria na vida
seriam os cinco anos e meio acampado antes de o terreno ter sido destinado à
reforma agrária e, depois, o período da pandemia, quando as vendas caíram e a
produção se tornou praticamente para subsistência. Mas nada se comparou à
enchente.
“A gente está aqui há
33 anos e nunca tinha vivido nada deste tipo. A maioria saiu com a roupa do
corpo, foi uma prova de resistência”, afirma.
Seu filho, Gabriel
Matias, que estuda agronomia, diz que, apesar de o impacto ter sido grande, o
trabalho agroecológico deixou a terra mais íntegra. “A cobertura do solo formou
uma barreira que não deixou a água levar”, diz. “E, por ser um solo rico, formou-se
uma ‘casquinha’ na superfície que não deixou a água penetrar.”
Os agricultores
acharam que iam demorar um ano para voltar a produzir e se surpreenderam com a
resposta rápida do solo. “É muito tempo trabalhando de forma ecológica, então a
terra se protegeu”, afirma Rose Porto, outra assentada.
Logo depois do
desastre, a maioria das famílias queria reivindicar uma nova terra. Agora, após
o início da retomada da produção, o número baixou, e estima-se que menos de um
terço ainda tem esse desejo.
Amarildo Mulinari,
produtor de arroz, é de uma das famílias que quer deixar o lugar por medo de
novas enchentes. Neste caso, as famílias têm que ser inseridas novamente na
fila da reforma agrária e aguardar por novas terras destinadas a esse fim.
“Esse desastre tem
nome, é a ganância do agronegócio. É descarada a destruição dos biomas. Não
temos dúvida que a água vai voltar porque os rios vão assorear, não tem mata
ciliar. Nós somos só um pedacinho, não adianta só aqui fazer certo e todo o
resto continuar desse jeito”, diz.
“Continuamos apoiando
o governo, mas a ajuda não está chegando na ponta”, reclama, sobre a gestão
Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que é historicamente alinhado ao MST. Mulinari
diz que os assentados receberam os R$ 5,1 mil de auxílio do governo federal, como
todos os outros impactados pelas enchentes, mas precisam de ajuda para retomar
a produção como era antes. Uma bomba para irrigação de arroz, que foi perdida
na enchente, custa R$ 35 mil. “Nós doamos dez caminhões de alimentos durante a
pandemia, mais de 54 mil marmitas para os desabrigados só em julho. Queremos
colaborar, mas também precisamos de ajuda.”
O governo federal
informou, em nota, que está tomando medidas para as áreas de reforma agrária
atingidas pelas enchentes através do Incra. Foram abertos um total de R$ 172,8
milhões em créditos extraordinários para essas demandas. Em Eldorado do Sul,
390 famílias serão atendidas com acesso a crédito e 79 pela linha habitacional,
para as que tiveram as casas danificadas.
“Paralelamente”, diz a
nota, “o Incra também oficiou a Secretaria de Desenvolvimento Rural do Rio
Grande do Sul manifestando a intenção de identificar potenciais imóveis rurais
de propriedade do governo estadual para aquisição onerosa e destinação ao reassentamento.
Além disso, a regional do Incra está realizando avaliações em áreas ofertadas
por particulares, e prospectando imóveis junto ao Banco do Brasil e em
cadastros de devedores da União.”
Fonte: Outras
Palavras/Agencia Pública
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