BR-319, a estrada da discórdia na Amazônia
O governo federal está
com uma estrada atravessada na garganta. O plano de retomar a pavimentação da
BR-319, rodovia de 877 quilômetros que já ligou as capitais de Porto Velho (RO)
e Manaus (AM) e que hoje se resume a um caminho esburacado e engolido pela
mata, expõe a dualidade e a falta de consenso sobre o que fazer com uma das
áreas mais sensíveis de toda a Amazônia.
Em tempo de recordes
de queimadas e eventos climáticos extremos impulsionados pela queda da
floresta, o projeto transformou a BR-319 na estrada da discórdia, opondo alas
do próprio governo. Neste jogo de força, a tendência é que a corda estoure,
mais uma vez, do lado mais fraco: o meio ambiente. As resistências, porém, não
dão trégua.
O Comitê Gestor do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) acaba de incluir, nas prioridades
do pacote, a pavimentação de um trecho de 52 km da rodovia, em território
amazonense. Em setembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu seu
veredito. Sem meias palavras, Lula disse que quer a estrada de volta e que isso
não é mais uma hipótese. “Vamos preparar o Estado, para que a gente possa
entregar, definitivamente, a ligação entre Manaus e Porto Velho” disse Lula,
mandando um recado claro para dentro e para fora do governo: “É preciso parar
com essa história de achar que a companheira Marina [Silva, ministra do Meio
Ambiente] não quer construir a BR-319.”
Não se trata de
“história”. Nos últimos anos, a BR-319 se tornou o bode na sala do Palácio do
Planalto. Marina Silva tem posicionamento contrário à pavimentação da estrada.
Pressionada por todos os lados, a ministra tenta adotar uma postura de cautela
para segurar o projeto. Sem esticar a corda ao extremo, Marina defende a
necessidade de se ter um “estudo baseado em dados e evidências científicas”,
mas não para liberar a reconstrução da rodovia, e sim para “ter uma resposta
definitiva” sobre sua viabilidade ou não. É algo bem diferente do que propõe
Lula, o Ministério dos Transportes e o Ministério da Agricultura.
O impasse remonta a
décadas. Construída entre 1968 e 1973, a BR-319 faz parte das investidas
militares que rasgaram a Amazônia durante os anos que ficariam conhecidos como
“milagre econômico”. A ligação das capitais de Rondônia e Amazonas se somava a
outras vias que prometiam a “integração nacional”, como a Transamazônica
(BR-230), que atravessou o país de leste a oeste, restando inacabada, e a
Cuiabá-Santarém (BR-163), que partiu do Mato Grosso rumo ao Norte do país,
chegando ao Pará.
Em seus primeiros anos
de operação, a BR-319 chegou a ser plenamente transitável, com viagens
regulares de carros e linhas de ônibus entre Porto Velho e Manaus. Nos anos
seguintes, porém, a rodovia entraria em um crescente processo de abandono e, já
em meados de 1988, apenas 15 anos após sua conclusão, estava completamente
inviável, tomada pela vegetação que avançou sobre o asfalto.
Diversas tentativas
ocorreram, com o propósito de reabrir a via, mas nenhuma avançou, devido à
resistência ambiental e ao temor de que a BR-319 repetisse o cenário de
devastação e invasões que tomou conta das demais estradas abertas pelos
militares.
Entre os
ambientalistas, o entendimento é o de que a estrada teve o desfecho necessário.
“A reconstrução e asfaltamento do trecho do meio da BR 319 é um empreendimento
que, hoje, não tem viabilidade socioambiental. Levará a uma explosão do
desmatamento numa região que é marcada pela ausência do Estado. Sem garantia de
governança regional, não há como licenciar esta obra”, diz Suely Araújo,
coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima.
A especialista lembra
que o próprio Ibama, órgão que ela já comandou, mostra em pareceres constantes
no processo de licenciamento os sérios problemas que ela pode causar. “A
licença prévia concedida pelo governo Bolsonaro é nula. Atestou a viabilidade
de um empreendimento inviável no contexto atual. A liminar concedida pela
Justiça Federal suspendendo a LP é correta e juridicamente robusta”, afirma
Araújo.
O fim do asfalto
acabou estancando ações humanas em uma área sensível da floresta e evitou que a
BR-319 repetisse o que hoje se vê ao longo de boa parte das estradas federais
abertas nos anos 1970, obras que impulsionaram o desmatamento ilegal, a grilagem
de terras e o garimpo, em meio à completa falta de estrutura e presença do
poder público para fiscalizar e coibir os crimes.
Políticos locais e
membros do governo afirmam, porém, que se trata de uma dívida social e que a
população de Manaus e região está isolada do país, dependendo de um barco ou
avião para deixar a capital do Amazonas.
Hoje, os primeiros 200
km da rodovia, a partir de Porto Velho, possui asfalto em boas condições, até
chegar a Humaitá (AM). Do outro lado da rodovia, a partir de Manaus, há outros
250 km em boas condições. O cenário muda completamente, porém, no chamado “trecho
do meio”, (do km 250 ao km 656), que corta uma das áreas mais conservadas da
região amazônica.
A retomada da rodovia
sempre esteve nos planos de Lula, uma promessa que já tinha feito em seu
segundo mandato, entre 2007 e 2010, dentro do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), mas que não conseguiu cumprir. Dessa vez, porém, o núcleo do
governo parece empenhado em concretizar a missão, nem que para isso dê
andamento a ações polêmicas tomadas pela gestão de Jair Bolsonaro, marcada pelo
esvaziamento do Ibama e da proteção ambiental.
Em julho, o
Observatório do Clima, uma coalizão de organizações da sociedade civil,
conseguiu uma liminar na Justiça para suspender a licença prévia ambiental que
o Ibama havia concedido para avançar com a retomada das obras no trecho central
da rodovia. A autorização foi emitida em julho de 2022, nos últimos meses da
gestão Bolsonaro, quando o Ibama era comandado por Eduardo Bim, sob a batuta do
então ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite.
Na semana passada, o
desembargador Flávio Jardim, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1),
derrubou a decisão liminar, sob a justificativa de que a rodovia se tornou “uma
verdadeira estrada de barro, que permanece em atividade e que demanda urgente
revitalização, sob pena de manutenção do isolamento das populações que vivem
nas regiões”.
Os dados colhidos pelo
Observatório do Clima comprovam que a troca de governo promoveu uma guinada na
gestão ambiental e nos índices de desmatamento do país. O posicionamento
oficial do Ibama em relação à BR-319, no entanto, segue o mesmo da gestão Bolsonaro.
Hoje, mesmo debaixo do
guarda-chuva de Marina Silva, o Ibama, comandado por Rodrigo Agostinho, atua
para defender o licenciamento da obra, rejeitando os argumentos de organizações
civis e os próprios apontamentos já feitos pelo instituto, cobrando a revalidação
da licença prévia que foi emitida em 2022.
• Alertas e compromissos ignorados
Nos últimos anos, o
próprio Ibama alertou, em pareceres e vistorias, sobre os riscos de explosão do
desmatamento na região, caso a pavimentação da BR-319 avançasse. Na Amazônia, a
história mostra que a exploração predatória e gradual a partir da abertura de
estradas é uma escola.
Após a abertura da
rodovia, cresce a procura por terras, estimulando a grilagem. A fase seguinte é
marcada pela construção de ramais e estradas particulares, abrindo “espinhas de
peixe” ao longo da faixa central. Depois da retirada ilegal da madeira nobre,
ocorre o plantio de mato para formação de pastagens e entrada do gado. O ciclo
se fecha, com a busca de anistia para as invasões ilegais. É assim. Sempre foi.
“O ecossistema
envolvido é frágil. Qualquer fator de indução à ação humana na região seria um
estopim para a destruição da floresta. O direito de ir e vir não está sendo
obstruído. O que está em jogo é a avaliação da proteção ambiental da área, onde
facilidades de acesso levariam a enormes prejuízos ambientais”, diz o
presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), Carlos
Bocuhy.
No caso da BR-319, o
cenário se agrava porque, com ou sem licença, a rodovia já tem sido alvo de
intervenções e invasões. Nos últimos anos, denúncias do Ministério Público
Federal deram conta do avanço das obras de pavimentação na região, ainda sem
expedição de licença ambiental. Grupos interministeriais foram criados para
buscar uma solução sobre a obra. Em 2009, o Ibama chegou a concluir que o
processo de licenciamento só poderia avançar se, antes de qualquer pá de piche
ser lançada no chão, fosse implantado um conjunto de ações e políticas públicas
de controle, monitoramento e fiscalização para o combate ao desmatamento, além
da criação de unidades de conservação para contenção de atividades ilegais,
ordenamento territorial e fundiário, com restrições à ocupação irregular e
grilagem de terras.
Os dados sobre o
desmatamento da região, porém, revelam a ausência de qualquer controle efetivo.
Entre 2008 e 2014, a área de uso e ocupação no trecho do meio chegava a 10.228
hectares. Em 2015 e 2016, porém, houve o incremento de ocupação em mais 3.716 hectares.
As taxas só aumentaram, chegando ao desmatamento total de 25.595 hectares até
2021.
A despeito desse
cenário, em 2022 o Ibama decidiu emitir a licença prévia da obra, transformando
ações prévias de controle ambiental em medidas a serem tomadas durante o
andamento do próprio projeto. Na prática, abriu-se o caminho para a
pavimentação, sem se ter a garantia de que algo será feito, efetivamente.
“Diante da constatação
de que a sua implementação não estava ao alcance do empreendedor (Dnit), tais
medidas foram simplesmente suprimidas, como se o instrumento de licenciamento
se prestasse apenas a mitigar os danos ambientais evitáveis e controláveis pelo
empreendedor e não a avaliar se um empreendimento deve mesmo ser implantado a
qualquer custo – no caso, às custas de danos ambientais graves e irreparáveis”,
afirma o Observatório do Clima, em sua ação judicial. “A bem da verdade, o
Ibama deu um cheque em branco ao empreendimento, mesmo reconhecendo a ausência
de governança ambiental para conter os impactos e danos ambientais relacionados
ao desmatamento e à grilagem de terras.”
• Impactos irreversíveis
Na ação que moveu para
pedir a nulidade da licença prévia emitida pelo Ibama, o Observatório do Clima
reuniu uma série de informações sobre impactos já ocorridos no entorno da
BR-319, após o anúncio da pretensão de pavimentar o trecho do meio, além de projeções
sobre o crescimento do desmatamento, a partir do histórico já acumulado em
estradas semelhantes.
A mera expectativa de
pavimentação da BR-319, anunciada pelo governo Bolsonaro, aumentou em 122% o
desmatamento no entorno da rodovia, entre 2020 e 2022. Pesquisadores da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) calculam que a pavimentação da
BR-319 poderia quadruplicar o desmatamento na Amazônia, ao longo das próximas
três décadas.
A projeção é de que 40
unidades de conservação, 6 milhões de hectares de terras públicas e 50 terras
indígenas estariam vulneráveis pelo empreendimento. Simulações apontam que a
pavimentação da estrada, até o ano de 2050, poderia resultar no desmatamento
acumulado de 170 mil quilômetros quadrados, quatro vezes acima do que está
projetado com a média histórica da região.
As emissões acumuladas
de CO2 também mais que quadruplicaram, alcançando 8 bilhões de toneladas, o
equivalente à emissão de 22 anos de desmatamento na Amazônia, com base na taxa
de 2019. “Isso mais que inviabilizaria o alcance das metas assumidas pelo Brasil
no Acordo de Paris”, diz o Observatório do Clima.
A perda de vegetação
nativa pode afetar ainda mais a regulação de chuvas, mexendo com regiões
estratégicas para o agronegócio brasileiro, num prejuízo acumulado de US$ 350
milhões por ano.
“A consolidação de um
eixo rodoviário da importância e extensão da BR-319, atravessando uma região
muito sensível do ponto de vista socioambiental, requer um plano consistente de
proteção e de desenvolvimento sustentável para região e, também, a presença
efetiva do poder público para dar suporte a esse plano, com bases de
fiscalização permanente e condições de mobilidade”, diz Márcio Santilli, sócio
fundador e presidente do Instituto Socioambiental (ISA). “Se se repetir, ao
longo desse eixo, o mesmo padrão de grilagem e de desmatamento da BR-163, o
Amazonas sofrerá ainda mais com o fogo e a devastação, e o Brasil não cumprirá
as metas climáticas assumidas.”
O atual processo de
licenciamento também tem ignorado a necessidade de se fazer a consulta prévia,
livre e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais da região que
seriam diretamente impactadas pela obra.
O Observatório BR-319,
uma rede de organizações da sociedade civil que atuam na área de influência da
rodovia, afirma que, em 2022, o Departamento Nacional de Infraestrutura de
Transportes (Dnit) e o Ibama realizaram apenas apresentações do Componente Indígena
do Estudo de Impacto Ambiental para comunidades localizadas em territórios
Apurinã, Mura e Parintintin, sem efetivar uma consulta a respeito do que pensam
e querem os povos indígenas da região.
As comunidades não
tiveram acesso prévio e em linguagem acessível aos documentos relevantes. O
formato das audiências não permitiu a participação de moradores de todas as
comunidades. Ao longo da rodovia, somente nos 13 municípios monitorados pelo
Observatório BR-319, existem mais de 18 povos indígenas. “Alguns nem sequer
sabem em que estágio está o processo de licenciamento das obras”, afirmou a
organização.
• Ibama em transe
Na tentativa de
defender a decisão tomada durante a gestão Bolsonaro, a procuradoria-geral
federal do Ibama afirma que todas as ações previstas na emissão da licença
prévia são estruturais para o empreendimento e que a autorização não permite o
avanço da obra em si, atestando apenas a sua viabilidade.
A respeito do fato de
que essa licença já serviu para impulsionar o desmatamento na região, a defesa
jurídica do Ibama chega a agir com ironia. “Trata-se de uma conjectura genérica
que poderia ser utilizada como argumento para impedir toda e qualquer obra de
infraestrutura a ser realizada na região do bioma amazônico”, afirma o
procurador federal do Ibama, Ricardo Mendes Ferreira.
A defesa do Ibama
afirma que, desde 2006, foram criadas diversas unidades de conservação na
região, além das já existentes, totalizando 11 áreas de conservação federais,
dez unidades no estado do Amazonas e oito no estado de Rondônia, sob influência
direta da BR-319.
“A afirmação de que ‘a
mera expectativa de asfaltamento da BR-319 ocasiona o aumento da ocupação de
novas áreas de floresta desconsidera não apenas a criação, demarcação e
sinalização de diversas Unidades de Conservação na área de influência da
BR-319, mas também os dados mais recentes sobre o monitoramento do desmatamento
da Amazônia e, ainda, a edição de ato normativo que demonstra a atuação
concreta do Poder Público em prol da melhoria da governança ambiental na
região”, diz a procuradoria.
Ao criticar a decisão
liminar que suspendeu a licença, a defesa sustenta que isso “acaba por impedir
a continuidade dos estudos e a execução das condicionantes ambientais
determinadas pelo Ibama, retardando injustificadamente a fase preparatória de
um projeto considerado estratégico para o país”.
Pelo viés econômico, o
Ibama fala ainda dos “vultosos recursos públicos que são despendidos
regularmente com serviços de manutenção e conservação” na rodovia, com valor
médio anual de R$ 221 milhões por ano na manutenção do trecho do meio. E faz as
contas.
Considerando-se que o
valor previsto para a repavimentação do trecho é de R$ 1,751 bilhão,
“conclui-se que, a cada oito anos, o poder público gasta o valor total da obra
com medidas paliativas de recuperação da trafegabilidade”, diz a procuradoria.
“A suspensão do procedimento acarreta um alto custo administrativo, já que as
informações do licenciamento são dinâmicas e precisam ser atualizadas com o
passar do tempo.”
Apesar dos
apontamentos feitos pela defesa do Ibama, questionando desde os argumentos
sobre impactos ambientais até efeitos de ordem financeira sobre o
empreendimento, o presidente do órgão, Rodrigo Agostinho, disse ao ((o))eco que
não houve “análise de mérito” na ação.
“O jurídico do Ibama é feito pela AGU, que tem
atribuição constitucional de defender, de ofício, os atos praticados pela
administração pública. Não foi feita análise de mérito e, muito menos, uma
decisão foi tomada pela administração do Ibama”, comentou. “A licença prévia
também não autoriza nenhuma obra ou intervenção. O Dnit chegou a protocolar
alguns estudos incompletos e insuficientes para qualquer análise”, disse
Agostinho.
Por meio de nota, o
Dnit, que também recorreu à Justiça contra a suspensão da licença, declarou que
está analisando as providências a serem tomadas, para então se manifestar sobre
a decisão.
“Esclarecemos que seguem em curso os estudos e
projetos necessários para a continuidade da licença ambiental, seguindo todos
os requisitos prévios para avançar no empreendimento, cumprindo as
condicionantes e respeitando as premissas ambientais”, afirmou.
A ministra Marina
Silva foi procurada pelo ((o))eco, mas não se manifestou até a publicação deste
texto. No início de setembro, o presidente Lula assinou uma ordem de serviço
autorizando a pavimentação de mais 52 km da rodovia. A previsão é de serem investidos
R$ 157,5 milhões nesta parte da obra. Essas áreas ainda não integram o trecho
do meio. Aos poucos, porém, as obras avançam. O desmatamento, também.
Fonte: ((O))eco
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