O racismo como determinação social da saúde
Na última semana,
estive na cidade de Recife para oferecer pela Fiocruz o curso Racismo como
determinação social da saúde. O tema era no mínimo curioso para quem lê o
racismo por lentes sociológicas, afinal, como uma tecnologia de controle,
nascida no seio de uma nascente formação social – a modernidade –, poderia ser
pensada no campo da saúde?
Se a questão vem
acompanhada por um certo escândalo, certamente é porque se ignora todas as
estatísticas da exclusão do acesso à saúde por parte dos racializados mesmo
diante de um sistema universal como é o SUS. Esse era um possível caminho a ser
seguido: pensar a relação estatística e a diferença entre acesso da população
branca e não branca. Entretanto, com esses dados em mãos, preferi não me
atentar aos números, mas buscar suas causas. A sala estava repleta de pessoas
da área da saúde que sabiam muito bem de seus dilemas e do racismo impregnado
na prática cotidiana do acesso.
Nesse caso, eu poderia
sair da posição de um mestre e passar à posição do ignorante. Então, propus uma
torção: pensar o racismo como uma patologia social. Em seu livro, Silvio de
Almeida afirma que o racismo não é uma patologia, mas a normalidade de uma sociedade
legatária do colonialismo. Propus uma volta nesse parafuso: a normalidade de
uma sociedade herdeira do colonialismo é em si uma patologia. O que isso
significa? Que a normalidade, excludente pela ordem normativa, é doente e
adoecedora.
Para chegar nessa
conclusão, no entanto, me baseio principalmente nas grandes contribuições de
Fanon para o campo da saúde. Quando lembramos que Fanon era um
médico/psiquiatra – que fez sua residência com ninguém menos que Tosquelles –
também lembramos que as questões levantadas por ele sempre se mediavam pelo
fetichismo mistificador da noção racial principalmente no discurso médico.
Fanon foi um homem que viu, nos hospitais que esteve, médicos medindo crânios
de argelinos e negros para comprovar a suposta “inferioridade” destes. Não
esquecer isso é fundamental para o entendimento de sua obra.
Com efeito, uma das
grandes questões fanonianas, por exemplo, está na demonstração de como essa
singularidade, esse indivíduo racializado e produto da superexploração,
constrói sua subjetividade no interior da realidade demarcada por espaços e
lugares cabíveis à experiência vivida e traduzida pela noção de raça.
Assim, sendo a noção
de raça uma operação de controle e produção de sociabilidade marcada pela
exclusão do outro (o não branco), sua força estrutural iria moldar a forma de
construção da subjetividade do indivíduo racializado. Isso organiza não só a
maneira como o adoecimento é pensado, mas também como a tênue linha divisória
entre o normal e o patológico não foge à essa determinação. E é aqui que reside
a investigação de construção da subjetividade do negro realizada por Fanon.
Tateando o labirinto
da formação da subjetividade a partir da relação entre psiquiatria, psicanálise
e filosofia, Fanon tem um grave problema em vista: o que significa a raça? Se o
negro é um produto como torná-lo um sujeito? Para responder tais questões seria
necessária uma sessão que possibilitasse ao indivíduo negro reconhecer-se no
confinamento de seu próprio corpo como uma construção histórica demarcada por
uma ultraexploração e por uma exclusão radical.
E é por isso que um
dos aspectos centrais sobre os quais o martinicano se debruça em Pele negra,
máscaras brancas é justamente a linguagem. É nela — na construção de um
registro simbólico que me permite identificar o que sou e o mundo à minha volta
— que está o lugar em que é possível assumir minha identidade. Se a linguagem é
devedora da relação sociocultural, logo o racismo, impregnado numa sociedade
fundada na escravização, organiza a forma pela qual o indivíduo pensa a si
mesmo e se reconhece.
A identidade, apesar
de sua relação com a fantasia de si – uma ilusão necessária, como afirmo sempre
–, é aquilo que permite uma estruturação simbólica responsável pela capacidade
de organização egóica do indivíduo. Ela é essa possibilidade de um conhecimento
de si através da imersão num idioma que garante a entrada no mundo social. O
problema observado por Fanon é que o modo próprio pelo qual a linguagem circula
é imerso na vida social da qual ela faz parte.
Então, no interior de
um mundo colonizado, para indivíduos que são marcados pelo processo de
racialização, essa construção do próprio eu fica vedada: o processo de
identificação de si por meio da linguagem está interrompido, porque a hegemonia
da racialização configura uma estrutura simbólica (através da linguagem) que
responde por um imaginário branco.
Esse imaginário
impede, portanto, o reconhecimento. Sendo assim, o mundo que não superou as
estruturas formais e imaginárias do mundo colonial é um mundo no qual os
processos de circulação da linguagem, entendida aqui em suas diversas
dimensões, responderão por essa herança.
O não-outro do branco
para ser, numa sociedade como essa, tem que negar-se. E aqui reside o processo
de uma normalização da patologia colonial: a naturalização de um discurso,
legitimado pela ciência, de uma desigualdade racial fetichista (envolta de várias
mitificações sobre a diferença), que serve para a produção e reprodução da vida
social e baliza de maneira sobredeterminada o discurso médico.
Não é difícil
rapidamente perceber que as formas culturais de construção do imaginário
colonial são dominadas pela figura branca que responde pelos espaços de
organização da vida social como um todo. O complexo de autoridade, pensado por
Fanon, anima a relação do discurso médico ante à diferença que o não-branco lhe
dá. E, portanto, não há espaço para a circulação das subjetividades que não se
identifiquem com esse imaginário. Quando vemos as estatísticas do acesso à
saúde, essas conclusões reverberam.
Então, para além de
subordinação material desse indivíduo, demarcado pela raça e pela epiderme, a
colonização fornece ainda os mecanismos pelos quais as pessoas são capazes de
se compreender a si e organizar sua subjetividade. Ou seja, o colonialismo é também
uma ideologia que condiciona a realidade material marcando o processo de
exclusão através de uma ordem simbólica que coloca os racializados como
subalternos e cidadãos de segunda classe.
Isso implica ainda um
sofrimento (o do não-branco) invisibilizado pela lógica do diagnóstico clínico
e medido pelo universal: o branco. O racismo, como sofrimento subjetivo e
organizador de traumas, é simplesmente ignorado, jogado para debaixo do tapete e
afirmado na súmula médica como frescura.
Assim, esquece-se do
processo de despersonalização dos racializados e do sofrimento que ele organiza
por meio do trauma de ser posto no lugar da exclusão. Enfim, tudo isso dá
enorme pano para manga – coisa que não poderei estender por aqui. A linha do debate
no curso da Fiocruz em Pernambuco seguiu durante mais de uma semana nessa
toada, utilizando vários arsenais dispostos por Lélia Gonzalez, Neusa Santos,
Isildinha Baptista, Achille Mbembe, Denise Ferreira, etc., etc.
De repente, quase
finalizando a semana, um acontecimento muito interessante se deu. Eu passo a
narrá-lo, tal como narrei no último encontro do curso.
Do debate à rua
Passei esses cinco
dias repetindo a desgraça que é o racismo, suas armadilhas, suas limitações,
suas fronteiras. Ontem, aconteceu algo fundamental. Depois de ouvir a
apresentação dos trabalhos, todas pesquisas interessantes que retratam a
impregnação do racismo na nossa experiência social, eram mais ou menos umas
cinco e meia da tarde quando Diego e eu nos sentamos no bar, que eu vou chamar
de bar da sopa. Um bar com paredes amarelas e espaço agradável pra tomar uma
cervejinha.
De repente, chegou um
senhor acompanhado por um rapaz. Notei que o rapaz, negro, tinha um caderninho
onde fazia algumas anotações. O senhor ficou olhando para nossa cara, carregava
uma correntinha no pescoço com um grande crucifixo, três anéis nos dedos,
camisa regata, bermuda, chinelo e boné. Puxou conversa com a gente, primeiro
através de um enigma:
– Qual o céu que não
tem estrelas? – perguntou, ao que feliz por saber a resposta imediatamente
respondi:
– O céu da boca. –
Remoendo a resposta que dei, o velho então mandou outro:
– O que tem em tudo? –
perguntou em tom de enigma. Cocei a cabeça, essa eu não sabia. “O que tem em
tudo?”, refleti. Até que de repente ele disse:
– O nome!
Não me fiz de rogado,
porém, e devolvi com outro enigma, pedante como só alguém formado em filosofia
pode ser. Meu enigma era o da esfinge:
– O que de manhã tem
quatro patas, a tarde duas e a noite três?
O velho coçou a
cabeça. Parou um instante, com reflexões profundas, mas foi interrompido pelo
rapaz que o acompanhava e disse:
– Você! Sim, de manhã
é a criança, de tarde é o adulto e de noite é o velho com a bengala. Um velho
como tu, visse!
Enquanto os enigmas
iam e vinham, a cachaça descia e o velho ficava mais solto. Falou de seu filho;
um campeão brasileiro de kickboxing. Fez Diego encontrá-lo no Instagram. Falou
onde morava, e que detestava morar em apartamento. Dali a pouco perguntou se
Diego e eu gostávamos de mulher. Ante a surpresa da pergunta, levamos um tempo
para dizer que sim. Os olhos do velho brilharam e ele disse:
– Então, vocês
precisam ir no Bar das calcinhas. Vamos lá? – Pergunta. Não entendemos de
início, ao que ele insiste: – O bar das
calcinhas é igual aqui! A cerveja é o mesmo preço! Com o detalhe que se as
moças gostarem de tu, tiram a calcinha, esfregam o dedo na xana e passam na tua
cara! Querem ir lá? – pergunta novamente – Eu tenho até um apartamento, vocês
podem dormir lá. Podem ficar de boa!
Bem, naquele momento,
comecei a ter a impressão que eu tinha acabado de entrar num filme de Kleber
Mendonça. Senti que me deparava com um outro Recife, o da ficção, sabendo o
quanto de real há na ficção, o quanto a ficção organiza a realidade. Saía de uma
universidade e a poucos passos me deparava com um outro Recife.
– Vocês precisam ir no
bar das calcinhas! Tem todo tipo de mulher: mulheres muito gostosas de treze,
quatorze, quinze anos! – encerrou tomando um gole de sua cachaça e muito embora
eu estivesse constrangido com a informação, o velho não notou, já que insistiu:
– Querem ir lá? Tem um quarto pra vocês dormirem, fiquem tranquilos.
– Não! – insistimos
mais enfaticamente.
Por não ser o peixe
que ele arrastaria, o velho já bêbado mudou de assunto. Passou a falar que o
dono do bar devia a ele três mil reais e que ele nem cobrava mais, porque tinha
perdoado a dívida. De repente, tudo me fez algum sentido: o rapaz com o caderninho
de anotações; o velho insistindo pra que bebêssemos ou comêssemos alguma coisa
de graça; a quentinha que ele levou, e, por fim; os enigmas. O velho era um
agiota e, ao mesmo tempo, um cafetão…
Tudo isso poderia ter
parado aí. Essa seria só uma história do que eu tinha ido fazer em Recife:
promover um debate sobre o racismo como determinação social de saúde. Mas algo
aconteceu — uma mulher negra entrou no recinto. Vestia um short curto jeans, uma
camisa preta, estava perfumada e bem maquiada. Assim que entrou, brincou com um
cachorro à porta do estabelecimento. O incômodo do velho foi visível e
constrangedor.
Primeiro, ele tentou
constrangê-la dizendo que quando o cachorro estava morrendo ninguém se
preocupou em ajudar. A mulher talvez nem tenha ouvido, e se ouviu fingiu que
não. Quando ela retornou de dentro do bar, sentou-se numa cadeira e cruzou as
pernas, o velho disse como querendo que ela ouvisse:
– Tem uns tipos de
mulher que é cilada! São vagabundas e a gente tem que ficar de olho! – falava
alto se dirigindo à mulher negra: – Olha o tipo de roupa! Tá na cara que é
pistoleira! – de repente, o homem que nos oferecia meninas impúberes, que
sacaneava pessoas em aflição econômica, tinha se tornado o defensor da moral e
dos bons costumes; o homem de bem da família brasileira. Um retrato do racismo
de denegação apresentava-se ali. E falava alto para que ela escutasse,
constrangia-a, esperando que nós concordássemos com ele.
Olhei para cara de
Diego, visivelmente constrangido, simplesmente nem mexia mais a cabeça. Agora
vou fazer o balanço com o hipotético-leitor desse texto: esse acontecimento se
deu no quarto dia de debate sobre o racismo. A poucos passos dali, víamos o corpo
da mulher negra sendo constrangido pelo olhar de um racista que lhe dirigia um
misto de lascívia e ódio ao mesmo tempo.
Aliás, é esse misto de
lascívia e ódio que sempre recai sobre esse corpo fenomenológico marcado por
uma herança colonial. Era o quarto dia de debate e na nossa frente ocorriam
muitas coisas bastante representativas do que horas e dias antes havíamos debatido.
O ódio no olhar e a impotência do velho, ambos demonstravam o quão derrotada
era aquela figura. O medo da mulher negra que cruza as pernas e da qual ele não
é dono – como provavelmente diz ser de meninas de treze, quatorze e quinze anos
–, uma fobia diante da impotência e diante da completa ignorância que a mulher
negra lhe dedicava.
Ela ficou impassível.
Se ouviu os impropérios, fingiu de maneira muito convincente que não. Mas
aquela cena marcaria minha noite. A quantos constrangimentos somos afinal
submetidos? O quanto essa mulher teve que aguentar durante sua vida? Esse
racismo, que organiza uma violência atmosférica, fere e marca, estabelece uma
lição fundamental dada por Fanon: a saída não pode ser individual. Não dá para
resolver esse problema no divã – ainda que ele não seja descartável.
Por mais que
alcancemos os algumas mudanças, muita coisa ainda resta a ser feita e só
podemos nos contentar quando esses corpos puderem entrar como quiseren em
qualquer lugar sem serem vilipendiados. Angela Davis insiste na ideia de que a
liberdade é uma luta constante, agora veja: e quando bate o cansaço? E quando
não se quer mais o combate? E quando a luta se torna insuportavelmente
dolorosa? E quando somos, por defesa, obrigados a fingir que não ouvimos ou
vemos essas palavras e esses olhares?
Enfim, não se trata de um problema estrutural
que possa ser remediado. É preciso acabar com o mundo onde isso se tornou algo
normal.
Fonte: Por Douglas
Barros, para Outra Saúde
Nenhum comentário:
Postar um comentário